Por dentro do Kyotographie 2019, um dos principais festivais de fotografia da Ásia
Quioto, cidade sede da 7ª edição do festival de fotografia Kyotographie, foi capital do Japão por mais de mil anos (de 794 a 1868) e tornou-se símbolo do “espírito” japonês. Isso é percebido em suas diversas instituições que exaltam a cultura do país, como as escolas de cerimônia do chá (cha-no-yu ) e de arranjos florais (ikebana); a arte do teatro Noh e Kabuki e da dança tradicional; ou as obras-primas de caligrafia, pintura, escultura e arquitetura que podem ser encontradas por toda a cidade. Existe no ar um forte sentimento de pertencimento à tradição, o que faz com que todos os japoneses queiram ir para lá pelo menos uma vez na vida.
Realizado durante a primavera, o Kyotographie, que teve como inspiração primeira o Festival de Arles na França, é um dos poucos eventos artísticos verdadeiramente internacionais que ocorrem no Japão. Criado pela fotógrafa francesa Lucille Reyboz e pelo diretor de iluminação japonês Yusuke Nakanishi, com quem conversamos durante uma das exibições, a ideia do festival surgiu em 2011, após o grande terremoto que atingiu o leste do Japão e causou o colapso da usina nuclear de Fukushima. Perceberam ali a necessidade de realizar algo pelo país e construírem uma plataforma própria para o fomento, valorização e divulgação de artistas locais, já que, segundo o casal, a fotografia japonesa contemporânea tem pouca visibilidade fora e dentro do país. “Também ficou evidente, na época do acidente nuclear, o quanto a informação dentro do país é controlada pelo Governo e, com isso, a necessidade de se criar canais independentes e autônomos”, comentou Reyboz.
Um festival fundado por uma francesa e um japonês já nasce internacional e desde de seu início os diretores buscaram independência financeira do Governo, por meio de patrocínios junto a empresas de outros países e embaixadas. Segundo Nakanishi, é um evento feito por artistas, para artistas, sem nenhuma relação direta com o meio acadêmico. A escolha de Quioto se deve ao fato de a cidade ser um dos locais mais atraentes do Japão, “um palco perfeito”. Seu tamanho se assemelha a uma cidade grande europeia, com cerca de 1,5 milhão de habitantes, o que torna possível incorporar diferentes bases para o festival. “Pensamos que poderíamos não só apresentar o valor da fotografia em um contexto internacional, mas, ao mesmo tempo, comunicar várias mensagens, como a magnificência da cultura e da arquitetura japonesa, a estética da tecnologia e as tradições artísticas do país”, ressalta o diretor.
O Kyotographie se coloca como um festival democrático, sempre em movimento, sem tabus ou restrições. De 2013 (ano de sua criação) para cá, cresceu muito e hoje se tornou referência na Ásia, não só expondo jovens fotógrafos japoneses, mas também grandes nomes da fotografia internacional. Um tanto abstrato, o tema do evento este ano é Vibe, e, nas palavras de Lucille e Yusuke, está diretamente relacionado a uma sensação de algo que “está no ar” nesse atual momento na sociedade japonesa, algo que não se vê, um clima pesado onde os indivíduos se calam e o silêncio prevalece. “Se há insatisfação, as coisas devem ser faladas, a sociedade como um todo deve ser mais aberta, seguir seus sentimentos”, acredita Yusuke.
Falar abertamente sobre sentimentos não é algo comum no Japão. Por isso, um dos trabalhos que chama a atenção é o do fotógrafo Kosuke Okahara. No projeto Ibasyo – Autoflagelação / Prova de existência, Okahara documenta a vida de seis jovens japonesas que se autoflagelam. Em japonês, ibasyo refere-se ao espaço físico e emocional onde se pode existir. Violência doméstica, estupro e intimidação são algumas das razões por trás desse tipo de autopunição. A cultura da vergonha, inerente à sociedade japonesa, impede muitas vezes que essas histórias sejam contadas. Segundo Okahara, a violência doméstica e casos de estupro ocorrem em muitas famílias, mas, na maioria dos casos, as vítimas optam por permanecer em silêncio. Diante da depressão e distúrbios relacionados ao pânico, são incapazes de viver uma vida normal e o ato de molestarem a si mesmas se torna uma forma de punição, ao mesmo tempo em que alivia a ansiedade e o estresse. Esse comportamento destrutivo se tornou o caminho para reafirmarem sua própria existência. Quando vêem suas cicatrizes, a sensação de desprezo se reforça e o ciclo vicioso entra em marcha. Para o fotógrafo, as meninas perderam contato com seu ibasyo.
O espaço expositivo escolhido para mostrar o trabalho de Okahara é dividido em seis pequenas salas, cada uma narrando uma história, interligadas por portas pequenas e baixas, que obriga os visitantes a se curvarem para entrar. Ambientes escuros, paredes cinza e luzes pontuais iluminam as imagens que estão fixadas nas paredes apenas com alfinetes. A experiência no espaço se torna desagradável e claustrofóbica, tentando nos aproximar, em alguma instância, da sensação de não pertencimento que essas meninas experimentam. Do lado de fora estão seis livros com as imagens do projeto que durou cerca de oito anos. Metade das páginas mostra as fotografias e a outra metade Okahara deixou em branco. Ao longo do tempo, tais páginas foram preenchidas por visitantes das exposições realizadas com mensagens para as meninas. Uma vez completo o livro, o fotógrafo deu um exemplar para cada uma das participantes do projeto.
Outra exposição do festival que investiga o comportamento em sociedade é a da fotógrafa polonesa Weronica Gesicka, jovem artista selecionada no Foam Talent 2017 e que vem ganhando destaque em mostras europeias e asiáticas. A exposição What a wonderful world faz alusão à composição interpretada pelo músico norte-americano Louis Amstrong no fim da década de 1960, um período turbulento da história dos Estados Unidos, onde a segregação racial, as lutas pelos direitos civis, a guerra do Vietnã e os assassinatos de Martin Luther King e John F. Kennedy faziam do país um lugar de extremos. Gesicka constrói suas imagens a partir de fotografias de famílias, cenas de férias e da vida cotidiana de lares americanos dos anos 1950-1960, todas elas compradas em bancos de imagens. Fotos de famílias que aparentam viver o “sonho americano”, com suas casas de subúrbio, gramados verdes e um permanente sorriso no rosto. Não conhecemos a identidade das pessoas nas imagens, a relação entre elas ou o propósito da foto, tampouco o fotógrafo que as retratou. A impressão que fica é que os gestos e olhares dos retratados parecem falsos e encenados, um cenário quase perfeito demais para ser verdade.
Quando Gesicka aplica suas técnicas de fotomontagem e manipula as imagens com seu olhar crítico, parece haver mais vida e realidade nelas do que as fotografias originais poderiam revelar, deixando espaço para o espectador projetar suas próprias histórias e experiências nas imagens construídas. Como parte de seu processo criativo, a artista polonesa incorpora a computação gráfica e a impressão 3D ao seu trabalho, mas não deixa de evocar, ao mesmo tempo, estéticas do dadaísmo e do surrealismo. Em uma segunda sala da exposição, ela transforma objetos cotidianos domésticos em objetos não-funcionais e perturbadores – como uma corda feita de arame farpado ou um berço construído com cerca pontiaguda – materializando, em parte, o que vemos nas fotografias. Essa linha tênue entre a percepção e a memória é um tema chave em seu trabalho, nos lembrando que o que nos resta é sempre a interpretação e não os fatos, que tudo é construção e, principalmente, no caso da fotografia, representação. Seguindo a ideia do festival de ocupar espaços da cidade não convencionais para exibições, a sua mostra toma um prédio construído em 1608 inicialmente para o comércio de seda e o transforma no interior de uma casa de família americana dos anos 1960.
Um rastro latino
A fotografia foi a linguagem mais presente na realidade cubana a partir de 1959 (pós-revolução) e assumiu o papel de comunicadora por excelência das novas reformas sociais e de seus protagonistas. O mundo estava voltado para Cuba, que transmitiu suas mensagens ao mundo por meio da fotografia. Na mostra Sobre ela, sobre mim, sobre eles: Cuba através da arte e da vida de três fotógrafos, o festival oferece um recorte de três gerações diferentes da fotografia cubana, com obras de Alberto Korda, Alejandro González e René Peña, que ocupam um prédio de bares e galerias no bairro de Gyon.
Alberto Korda, maior nome da fotografia cubana, é o principal destaque da mostra. Mas o que vemos aqui não são imagens vinculadas à política, tampouco o retrato icônico que fez de Che Guevara. Em sua maioria, vemos fotos que Korda realizou em seu estúdio comercial em Havana no período pré-revolução, principalmente campanhas de moda e publicidade. São retratos de mulheres (daí o Sobre ela do título), tudo muito diferente do imaginário que cerca seu trabalho. Se por um lado é curioso ver essa outra faceta do fotógrafo, que ajuda a compreender um contexto mais amplo de sua carreira e todo processo de transformação de seu trabalho junto à Revolução Cubana, fica faltando justamente esse contraponto, para traçar assim seu real percurso e importância dentro da fotografia. Ao olhar tais imagens isoladamente fica difícil a associação com o que habitualmente conhecemos sobre o fotógrafo e assim compreender as mudanças que ocorreram tanto no país como em sua fotografia.
Incorporando o Sobre eles, o trabalho de Alejandro González, o mais novo dos três, explora as lacunas de histórias não contadas e parcelas da sociedade que não estão representadas na fotografia oficial cubana. Em Quioto, González apresenta duas séries: Reconstrução, onde constrói maquetes de papelão de momentos famosos da história socialista cubana e depois os fotografa; e Conduta imprópria, composta por retratos da comunidade LGBT do país, alvo de forte discriminação. Duas séries interessantes, que mostram um momento mais atual de Cuba e uma fotografia que dialoga diretamente com uma linguagem mais contemporânea. Infelizmente, o espaço expositivo restrito impede que vejamos as duas séries completas e a apresentação do trabalho do artista acaba fragmentada.
Finalizando a exposição, o Sobre mim apresenta o trabalho de René Peña, que usa seu próprio corpo como pano de fundo, mas diz não fazer autorretratos. Segundo o artista, a questão central de seu trabalho é a relação que se estabelece entre indivíduos e instituições – família, educação, partidos políticos e religião. Traz questões relacionadas à individualidade e à identidade e como lidamos com nós mesmos enquanto entidades sociais. Dos três trabalhos apresentados, foi o que se mostrou mais coeso e bem resolvido como exposição.
KG+ 2019
Realizado em paralelo ao Kyotographie desde o primeiro ano, o KG+ é um evento voltado para a descoberta de novos artistas. Dirigido por Philippe Bergonzo, curador francês que há 20 anos mora no Japão, o evento é realizado nas mesmas datas do festival, mas seu calendário possui programação e locações diferentes. Dividido em dois, é composto pela frente KG+ Satellite, que incentiva artistas inscritos a exporem pela cidade de maneira independente, ocupando cafés, livrarias e outros espaços alternativos de Quioto com centenas de trabalhos que passaram pela curadoria do festival. A segunda frente, e mais importante, é a KG+ Select, em que 12 artistas inscritos são selecionados para uma mostra especial, com verba para produção de suas exibições e com um fotógrafo escolhido para participar do programa oficial do Kyotographie no ano seguinte.
Nos últimos dois anos, o KG+ Select acontece na Junpu, uma antiga escola primária da cidade que deixou de funcionar por falta de alunos. O local está desativado, mas segue intacto, com laboratórios e salas de aula equipadas. Para o festival, suas classes são desmontadas e cada artista planeja a montagem de seu espaço. Este ano, além de fotógrafos japoneses como Tsubasa Fujikura e Keiji Fujimoto, a seleção trouxe artistas de países como França (Armelle Kergall), Estados Unidos (Garrett O. Hansen) e Coreia do Sul (Sangsun Bae). A escolha do júri, entretanto, foi para o país sede.
O projeto A marmita está pronta, do japonês Atsushi Fukushima, faz uma reflexão delicada e atual sobre a maneira como a sociedade trata seus idosos. O Japão é hoje a nação com maior percentual de idosos acima de 65 anos, cerca de 25% dos seus 126 milhões de habitantes. Se, na maioria das vezes, eles ocupam lugar de respeito e refletem a sabedoria ancestral, também sofrem com o abandono e a solidão. Durante meses, Fukushima trabalhou como entregador de marmitas a alguns destes idosos solitários e passou a registrar seus dias, casas e vida cotidianas. Na sala de aula que abriga a exposição, suas fotografias são exibidas no chão, em formatos retangulares que lembram bentōs, as marmitas japonesas.///
Daniel Salum é fotógrafo e professor, bacharel em fotografia pelo Senac-SP. Ministra aulas no MAM-SP e na Escola Panamericana de Arte e coordena grupos de estudos voltados ao desenvolvimento da linguagem fotográfica. Desde de 2014 desenvolve pesquisa sobre a fotografia japonesa do pós-guerra e contemporânea. Participou de diversas exposições coletivas e individuais no Brasil e no exterior.
Camila Alam é jornalista de cultura e produtora de conteúdo, especialista em História da Arte. Nos últimos treze anos, passou pelas redações das revistas CartaCapital, Trip e Tpm. Atualmente realiza projetos de conteúdo digital para marcas.