“Mestres de cerimônias”, de Bárbara Wagner

Com um consistente trabalho que começa antes das manifestações de junho de 2013, sobre poder de consumo, mudanças econômicas e acesso à mídia e novas tecnologias, Bárbara Wagner retrata, em Mestres de cerimônia, o jogo simbólico entre realidade e fantasia vivido por jovens que se tornaram MCs e assim, porta-vozes da economia de desejos de toda uma geração da periferia. Na indústria informal do brega em Recife e do funk ostentação em São Paulo, anseios que espelham o poder adquirido por jovens de classes emergentes que não mais aceitam subempregos para ajudar na renda familiar e enxergam na produção cultural e artística uma nova e legítima ocupação profissional. Em seus retratos, que têm como referência mestres como Jean Rouch e Malick Sidibé, não uma denúncia, mas uma fantasia, uma nova vida e a possibilidade de serem aceitos como cidadãos pela primeira vez.

//

Leia a entrevista com a artista:

Como você foi atrás dos seus personagens? Como foi o primeiro contato com eles?

Bárbara Wagner: Eu acompanhei durante algum tempo a realização de clipes musicais do brega em Recife, feitos por uma produtora chamada Rec – dirigidos pelo Ítalo Monteiro – e passei a conhecer toda a equipe de cinegrafistas, técnicos, MCs, dançarinos e dançarinas. Em São Paulo fiquei próxima de uma produtora chamada KL, da Zona Leste. Não tive que criar por conta própria uma estratégia de alcance a essas pessoas, pois elas agenciam o próprio trabalho de uma forma que é acessível a qualquer pessoa que tenha interesse. Os próprios clipes mostram, no final, o telefone de contato do empresário ou do próprio cantor ou MC, e da empresa que fez o vídeo. A produção e a circulação dessas imagens é transparente no sentido da economia, você consegue acompanhar a cadeia produtiva deles. Este meu trabalho não é, em nenhum sentido, um trabalho alinhado com um tipo de tradição etnográfica, ir para um lugar remoto, mostrar pessoas que estão à margem ou invisibilizadas. Pelo contrário, são pessoas que estão muito visíveis e, para além disso, capazes de produzir a própria visibilidade.

E como foi a relação que você criou com eles a partir disso?

BW: Eu acompanho a produção do brega desde 2008 e sempre tive interesse em trabalhar com pessoas que fazem parte de uma outra imaginação artística. Em meu trabalho, quero colaborar com outros artistas, artistas de uma tradição popular e que se atualiza. No caso, esses que têm acesso a novas tecnologias e produzem um tipo de música muito próxima de um pop global, que vão acompanhando o mainstream no sentido da música. Mas eu não estou querendo falar por essas pessoas, trazê-las à luz, quero trabalhar com elas. A ideia do lugar de fala está presente em meu trabalho e muda essa relação completamente. Estou falando junto com elas. O que tenho que construir é essa negociação para que essas pessoas tenham vontade de trabalhar comigo, essa metodologia da colaboração que acho tão fundamental. No caso dos MCs, eles tiveram interesse também que seus trabalhos chegassem a outros circuitos que não o deles. Tento sempre construir essa relação muito horizontal, uma troca de igual pra igual, aprendo muito por um lado e, de outro, contribuo como posso. É uma troca no sentido colaborativo do processo. E, do meu lado, procuro entender a linguagem, o trabalho, o tipo de articulação que eles criam.

E como você decidiu retratá-los? Com uma luz de estúdio, mas nos espaços deles, certo? Por que?

BW: A luz artificial está presente em meu trabalho desde 2005, desde a minha série Brasília Teimosa. É um tipo de manejo da linguagem fotográfica que tem a ver com a minha formação em jornalismo, o retrato da realidade nas ruas no momento presente. Ao mesmo tempo, está embutida aí uma compreensão da potência de se trabalhar com a performance de quem está sendo retratado. É um pouco além de uma observação passiva ou contemplativa do outro, é o trabalho em que você engaja o outro na produção da própria imagem. Essa é grande questão discutida na fotografia desde sempre: forma e conteúdo caminham para o mesmo lugar. Se eu quero discutir o quanto essas pessoas têm um agenciamento na construção da própria imagem, eu uso isso na própria feitura da foto, as pessoas retratadas participam da construção de tudo aquilo: como a fotografia é feita, o que está em primeiro plano, qual é o tipo de movimento contido ali, se tem ação ou não, senso de humor, etc, tudo isso é negociado. No caso dos mestres de cerimônia, a situação toda já estava sendo dada pela mis-en-scène construída entre a equipe do videoclipe e os artistas. Eu estava ali muito mais observando o que era criado, todo aquele mundo de desejos e aspirações do universo ostentação, que sabemos que é uma certa manifestação estética que tem tudo a ver com o momento da economia e da política do país no começo dos anos 2010.

E como falar dessas pessoas sem estigmatizá-las? Sem colocá-las nesse lugar onde a sociedade coloca o funk e o brega, sobretudo ostentação, de um modo geral? De que forma (para além da estética, mas política) você queria falar dos seus personagens?BW: Todo o sentido da minha produção, do meu trabalho enquanto fotógrafa e no cinema, com a imagem e com imagens em movimento, retrata corpos que representam uma certa ideia de brasilidade, no sentido do que é o popular, exatamente para analisar e estudar como esses estigmas são construídos. Então não é que eu estou lidando com o espectador das artes, o problema é outro. A própria razão desse trabalho existir é o questionamento constante: como esses estigmas, estereótipos e preconceitos são construídos e, ao longo do trabalho, junto com as pessoas, tentamos entender como eles também podem ser desconstruídos, desfeitos, rarefeitos. Eles são os mestres de cerimônia do próprio trabalho, mediam o ritual. Assim, quero trazer o sentido de que essa manifestação do contemporâneo, do brega em Recife e do funk em São Paulo, são, na verdade, rituais do presente. Nesse sentido relaciono o universo deles com ideias de manifestações populares, de folclore, quero desmistificar esse entendimento e mostrar que na verdade isso está vivo nos corpos das pessoas que estão reinventando essas tradições.///

Confira também:

Bárbara Wagner (Brasília, 1980). Vive em Recife. Participou da 58a Bienal de Veneza (2019), do 33o e 35o Panorama de Arte Brasileira (São Paulo, Brasil) e da 32a Bienal de São Paulo (2016). Suas obras integram as coleções do MASP e MAM-SP.