“A água é uma máquina do tempo”, de Aline Motta


Aline Motta (1974, Niterói, RJ). “A água é uma máquina do tempo (Jogo da memória)”, 2020. Boneco de livro. Acervo Instituto Moreira Salles.

A carioca Aline Motta une audiovisual, fotografia e texto em Jogo da Memória, livro de artista que tratar de relações familiares e, ao mesmo tempo, coletivas. O livro faz parte do projeto de longa duração A água é uma máquina do tempo, que contou com o apoio da Bolsa ZUM/IMS, e trata dos apagamentos e memórias que acompanham as travessias atlânticas de pessoas e famílias negras.//

Formada em comunicação social e em cinema, a carioca Aline Motta trabalhou como continuísta em sets de filmagem por mais de 15 anos. Assim, não conseguia se aprofundar em um trabalho mais consistente nas artes visuais. Afirma que passou décadas tentando dar forma ao que tinha para dizer. Com bolsas e editais, vem realizando um trabalho de fôlego nos últimos anos. Em 2015, depois de ter participado do programa AfroTranscendence, organizado pela curadora Diane Lima, cristalizou algumas ideias acerca da vontade que tinha de abordar certas questões familiares. Guiada pela fala da intelectual norte-americana Audre Lorde, criou coragem e foi: “Meus silêncios não me protegeram. O seu silêncio não irá te proteger”. Rompeu o silêncio e a partir de um mergulho na memória pessoal e familiar, construiu um retrato da memória coletiva da brutal formação das famílias brasileiras, incluindo aí o processo de escravização.

No projeto enviado para a Bolsa de Fotografia ZUM/IMS, Aline propõe realizar um livro de duas partes: a primeira, um experimento usando técnicas literárias para contar algumas histórias inspiradas em sua família; e a segunda um ensaio fotográfico a partir dos temas tratados nestas narrativas.

O que você descobriu de mais marcante ao longo da pesquisa para o desenvolvimento do projeto?

Aline Motta: Eu descobri que ninguém ficou mais branco no Brasil por amor. Descobri que o processo de embranquecimento de toda uma população no Brasil foi política pública e atingiu nossas famílias no momento pós-abolição de forma perversa e sistemática.

O que a história da sua família e de sua tataravó diz sobre nós brasileiros de forma geral? E sobre o papel da mulher mais especificamente?

AM: Que somos um país violentamente racista e que as poucas medidas reparatórias que foram implantadas, apesar de óbvias, são duramente contestadas, porque a maior parte da população é alijada das decisões históricas e políticas, das quais na verdade deveriam ser protagonistas. E que não há um aprofundamento e contextualização do que levou a este terrível conjunto de tragédias que vivemos atualmente, sendo os negros ainda os mais vulneráveis. E sobre a mulher, que somos um país violentamente machista e que o patriarcado é componente estruturante em nossa sociedade sem qualquer perspectiva de mudança à frente.

O que sua obra diz sobre as mulheres de sua família e sobretudo sobre a Aline? O que você descobriu sobre si mesma ao longo de todos esses anos de trabalho com o tema?

AM: O que gostaria que a minha obra reverberasse de alguma forma é que todos estão implicados, que todos deveriam fazer parte da luta antirracista, não apenas os negros. O que descobri sobre mim é que para trabalhar questões coletivas eu precisei fazer um mergulho muito pessoal e íntimo dentro de mim mesma. Ainda que sentisse medo, deveria continuar. Ainda que não soubesse nem como começar, eu não poderia me dar ao luxo de desistir. Apesar de a arte ter um alcance restrito, ainda é uma forma de resistir e dizer que não nos esquecemos.

Como foi esse processo de lidar com a escravidão e com esse tipo de violência como Aline, como artista visual e como mulher?

AM: Existem muitas formas de enfrentamento destas questões, a que eu encontrei foi através do cinema, das artes visuais, da literatura. Então, pessoalmente falar desses assuntos é uma maneira de honrar a memória dos que vieram antes de mim. Eles deram a vida para que eu pudesse estar hoje com condições psíquicas e financeiras para poder falar sobre esse legado. Espero que não seja isso visto como uma “moda” ou “pauta identitária”, pois é algo que diz respeito a nossa própria vida, como lidamos com o estar no mundo e com o que nos conecta em níveis muito profundos.///

Veja abaixo imagens do processo de trabalho e da pesquisa:

Na primeira conversa da série de lives da Bolsa de Fotografia ZUM/IMS 2020, Aline Motta conversa com o curador Moacir dos Anjos sobre seu projeto, um livro dividido entre um experimento com técnicas literárias para contar histórias inspiradas na família da fotógrafa e um ensaio fotográfico a partir dos temas dessas narrativas.//
FESTIVAL ZUM 2022Estranhando a história do Brasil Aline Motta e Tiago Sant’Ana conversam com Luciara Ribeiro. Ao rever a história da escravidão e da presença negra no país, os artistas amplificam o debate em torno dos 200 anos da independência do Brasil.//

Aline Motta (Niterói, RJ, 1974). Suas obras reconfiguram memórias, em especial as afro-atlânticas, e constroem narrativas que invocam uma ideia não linear do tempo. Foi contemplada com o Programa Rumos Itaú Cultural e com o 7º Prêmio Indústria Nacional Marcantonio Vilaça. Participou de exposições como “Histórias Feministas, artistas depois de 2000” – MASP, “Histórias Afro-Atlânticas” – MASP/Tomie Ohtake e “Pensar tudo de nuevo” – Les Rencontres de la Photographie, Arles, França. Em 2022 lançou seu primeiro livro “A água é uma máquina do tempo” pelas editoras Fósforo e Luna Parque Edições.

Foto: Marcus Leoni.