“Na Espiral do Atlântico Sul”, de Tatewaki Nio

A visita a uma fortificação portuguesa na costa ocidental da África, onde passou um mês durante a adolescência, fez Tatewaki Nio (Kobe, 1971), fotógrafo japonês radicado em São Paulo, se interessar pela história do tráfico negreiro e pela conexão cultural entre África e Brasil. “Peguei gosto pela música brasileira que registra esse vínculo, Gilberto Gil e Caetano Veloso”, conta. Formado em sociologia pela Universidade Sophia, em Tóquio, Nio estudou fotografia no Senac em São Paulo depois de viver por um ano em Salvador, onde descobriu o trabalho do antropólogo e fotógrafo francês Pierre Verger, um dos principais estudiosos da cultura afro-brasileira e da diáspora africana.

Na espiral do Atlântico Sul, projeto de Tatewaki Nio para a Bolsa de Fotografia ZUM 2017, retoma o tema do fluxo e refluxo de populações africanas entre os dois continentes. O projeto é dividido em três partes. Em “Nas pegadas dos retornados”, Nio vai em busca de traços da presença de escravos libertos retornados do Brasil no estilo de arquitetura que introduziram na região do golfo da Guiné no final do século xix. Em “Megacidades”, o fotógrafo investiga a feição da Lagos moderna, cidade em constante expansão que já é a maior do continente africano e está em vias de se tornar uma das maiores do mundo. Na terceira e última parte, “Estou aqui, sou daqui”, Nio promove reencontros imaginários entre imigrantes e refugiados nigerianos que vivem em São Paulo e suas famílias em diversas cidades da Nigéria. A ausência e o reencontro, a distância espacial e a proximidade reconstruída na memória são temas que animam seu trabalho.

Leia a entrevista com o artista:

Qual foi o ponto de partida do projeto?

Tatewaki Nio: Fazia mais de vinte anos que eu não visitava a África. Antes de vir para Brasil, eu costumava visitar o continente, onde morei por alguns anos na minha infância. Quando eu era universitário, trabalhava no verão, juntava um dinheirinho e ia como um mochileiro.

Meu irmão morou na Nigéria até recentemente, e aproveitei a oportunidade não apenas de visitá-lo, mas também de realizar um projeto fotográfico no país. Pesquisando, fiquei sabendo que a comunidade de descendentes dos retornados do Brasil no século xix em Lagos é atuante ainda hoje.

Dois livros foram importantes para delinear o projeto: Negros, estrangeiros (1985), de Manuela Carneiro da Cunha e Da senzala ao sobrado (1985), de Marianno Carneiro da Cunha e Pierre Verger. Eu já conhecia o trabalho do Verger sobre manifestações culturais e cenas humanas nas cidades. Mas nesse livro, Verger registra a arquitetura dos edifícios, residências e templos religiosos construídos por retornados ou inspirados no estilo arquitetônico que eles introduziram. Fiquei curioso com esse processo de difusão.

Procurei a professora Manuela, que me orientou a entrar em contato com a Fundação Pierre Verger. A Fundação gentilmente me ofereceu prints portáteis de fotografias inéditas, que não entraram no livro. Essas fotografias, tiradas originalmente na primeira metade da década de 1970, foram o ponto de partida. Fui à Nigéria e ao Benin atrás dessas construções, seguindo os passos do Verger.

Em muitos casos, eu só sabia em qual cidade a construção se encontrava. Em algumas cidades, como em Porto Novo, no Benin, tive ajuda de funcionários do departamento de patrimônio histórico. Em outras, era um trabalho de investigação, de perguntar para as pessoas, para os pilotos de mototáxi.

Em “Megacidades”, você lança um olhar para a cidade de Lagos contemporânea. Essa séria remete a outros trabalhos seus, em especial “Escultura do inconsciente” (Prêmio Funarte de Arte Contemporânea 2011), sobre São Paulo.

TN: Ao lado do meu trabalho autoral faço fotos para a mídia japonesa. Na maioria dos casos, a demanda é mostrar o Brasil para estrangeiros que não vivem aqui, que não conhecem o país ou a cidade, mas no final das contas sempre a partir de clichês, como pontos turísticos ou imagens da cultura dominante.

Eu queria desenvolver um olhar meu aqui em São Paulo, e um olhar que fosse também capaz de despertar algum interesse para os próprios habitantes da cidade. Eu queria falar não apenas da questão social, mas também da beleza contraditória da cidade. Tentei fotografar cenas ignoradas, cenas de demolição, abandono.

Foi essa perspectiva sem exotismo que eu quis exercer em Lagos, uma cidade enorme e populosa. Queria mostrar um pedaço de Lagos, a maior cidade da África, em comparação a São Paulo, a maior cidade da América do Sul. Foi também uma mudança de formatos. Em “Nas pegadas dos retornados” trabalhei com grande formato e filme negativo, e nesse projeto adotei o digital.

“Estou aqui, sou daqui” foca nas pessoas que dão vida ao fluxo e refluxo entre São Paulo e Lagos hoje, não em edificações históricas ou na paisagem urbana contemporânea.

TN: Nas fotos de arquitetura as pessoas estão virtualmente ausentes. São imagens silenciosas, existe uma distância entre o fotógrafo e o objeto. Achei que incluir uma série com pessoas em primeiro plano poderia trazer uma dinâmica interessante ao conceito total do projeto.

Então fotografei personagens. Eu queria mostrar a ausência de uma pessoa, muito longe de sua família, do outro lado do oceano, que luta pela sua vida, pelos seus sonhos. É difícil a família toda se reencontrar. Eu quis mostrar essa fragilidade da união familiar no mundo contemporâneo.

Fotografei um rapaz refugiado, um músico com quem eu já havia feito um trabalho para uma revista japonesa. Ele recebeu uma verba da ACNUR (Agência da ONU para Refugiados) para gravar um clipe, não pode mais voltar para a Nigéria… Eu tirei o retrato dele, que depois ampliei em tamanho real, e na Nigéria fotografei a família ao lado da ampliação. Fotografei também um médico, em período de estudos em São Paulo com uma bolsa do governo nigeriano. Enfim, diferentes situações, diferentes motivos para ficar longe das suas origens.

Em muitos casos, era uma surpresa para a família. E criava as condições para eu receber um olhar diferente deles para a câmera fotográfica. Eu não tinha relação nenhuma com eles, era meu primeiro contato com eles, mas as ampliações trouxeram um olhar mais simpático para a câmera. Esse olhar não é para mim, é para os que estão ausentes, representados pela fotografia ampliada.

Quais os próximos passos?

TN: Quero realizar pelo menos mais duas viagens para a África para finalizar o projeto. Estou correndo atrás de ajuda financeira. A arquitetura deve entrar como o princípio do projeto, mas quero conhecer melhor a atualidade dos descendentes dos retornados. Eles levaram para a África não apenas a arquitetura, mas vestimentas, idioma, outras manifestações culturais etc. Quero conhecer a importância de objetos, ícones e outros itens, para sustentar a identidade dos descendentes dos retornados… Acho que seria uma etapa importante para completar minhas investigações do tema. E aqui em São Paulo continuo fotografando os aspectos urbanos desta cidade.///

Jorge Bodanzky entrevista o fotógrafo Tatewaki Nio
Tatewaki Nio | Entre nós: dez anos de Bolsa ZUM/IMS

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Foto: autoretrato.

Tatewaki Nio (Kobe, Japão, 1971) Vive em São Paulo. Em 2016, participou da residência fotográfica do Musée du quai Branly. Participou das exposições Ecos do Atlântico Sul (Goethe + Pivô, 2019); Histórias Afro-atlânticas (MASP/Tomie Ohtake, São Paulo, 2018); 20º Festival Sesc Videobrasil (2017), entre outras.