“Themônias”, de Rafael Bqueer

 

Still de Themônias, de Rafael Bqueer, 2021. Crédito: Paulo Evander Castro

Rafael Bqueer (PA, 1992) se interessa pelos contrastes, pela polissemia. Com uma ampla atuação, desde a organização de festas até o trabalho em escolas de samba cariocas, além da participação em diversas exposições, Bqueer foi selecionada na edição de 2020 da Bolsa de Fotografia ZUM/IMS.

Com o apoio do prêmio, produziu quatro curtas-metragens inéditos, estrelados por integrantes das Themônias, coletivo formado por mais de 150 pessoas que se montam e se apresentam na cena cultural de Belém, do qual Bqueer é uma das fundadoras. Na entrevista abaixo, a artista comenta as obras, que “fogem do lugar confortável”, além de abordar aspectos de sua produção e trajetória.

 

Still de Themônias, de Rafael Bqueer, 2021. Crédito: Paulo Evander Castro

Os quatro curtas-metragens, realizados com apoio da Bolsa ZUM/IMS, têm como protagonistas integrantes das Themônias, coletivo fundado em 2014, do qual você é uma das pioneiras. Poderia comentar a história do grupo e como foi o processo de concepção desses filmes em especial?

Rafael Bqueer: Em meados de 2009, quando o programa RuPaul’s Drag Race foi lançado, a cultura drag passou a ser divulgada mundialmente de uma forma repaginada, muito diferente do que era tido como drag queen nos anos 1990. A série trouxe a possibilidade de discutir questões de gênero e sexualidade de uma forma mais ampla. Eu acredito que isso se espalhou por todas as regiões do Brasil. Por volta de 2013 e 2014, em Belém do Pará, por exemplo, algumas festas e eventos começaram a fomentar e incentivar o público a se montar. Sabemos que essa expressão sempre existiu no país, por meio das artistas transformistas, mas, para a minha geração, de fato, RuPaul’s Drag Race teve um grande impacto.

Eu comecei a me montar em 2014, em Belém, sem o objetivo de ser uma drag. Nesse momento, a produtora Noite Suja realizou uma série de festas, propondo justamente uma montação no campo ampliado, com artistas que adotavam estéticas monstras, club kid, punks. O coletivo surgiu assim desse encontro do boom da cultura drag com uma estética cultural de montação da Amazônia. Passados vários anos, hoje as Themônias são consideradas um grupo de sucesso, que atua e realiza diversas ações artísticas e políticas por várias cidades da Amazônia. Mesmo assim, ainda não temos tanta projeção nacional, o que infelizmente se relaciona com um processo de apagamento de tudo que não vem do Sudeste.

Por outro lado, pensando no circuito da Amazônia, acredito que os temas que abordamos ainda não são tão discutidos ou convidados para estar nos museus locais. Então, por mais que, em determinados momentos, a história da arte traga o debate entre arte pop e cultura drag, questões já abordadas por Andy Warhol, Leigh Bowery e tantos outres, eu sinto que, nessas regiões do Brasil, ainda existe uma barreira a ser quebrada e por isso insisto na importância de destacar essas narrativas.

 

Still de Themônias, de Rafael Bqueer, 2021. Crédito: Paulo Evander Castro

Nos quatro filmes, as disputas entre o local e o global estão presentes em várias cenas. No curta Torre de Babildre, por exemplo, a artista Monique Lafond luta contra uma réplica da estátua da liberdade, em uma loja da Havan, em Belém. Como essas tensões, entre a influência da cultura drag norte-americana e as referências locais da Amazônia, impactam o trabalho e a atuação de vocês?

RB: As Themônias são artistas que olham e bebem em tudo, seja nos quadrinhos, no cinema, na cultura paraense. O grupo também chama atenção pela presença de várias artistas que atuam no ambiente acadêmico, como Juliano Bentes, que domina o debate sobre as questões de gênero, arte themônia na Amazônia etc. Tudo que está sendo produzido ali tem um grande embasamento teórico, um diálogo com a Judith Butler, com o Paul Preciado. Ser themônia se tornou um movimento. São pessoas que começam a entender o aspecto político dessas montações e que vão, muito similar ao Paris is burning, criar suas próprias famílias ou espaços de  acolhimento, formar redes de apoio para as manas que foram expulsas de suas casas ou estão iniciando na arte da montação. Então você vai vendo a coisa se tornar um movimento artístico mesmo, que extrapola a visão de um grupo pequeno. Ser themônia é muito mais do que ser uma figura drag. É fazer parte de um grupo grande de pessoas que estão colaborando para que aquelas festas, debates, ações e eventos existam.

Sobre esse debate entre o local e o global, eu acredito que, cada vez mais, a cultura drag tem o poder de refletir os desejos e embates políticos de hoje. A presença, por exemplo, de mulheres cis e trans, de pessoas pretas e indígenas e como essas identidades automaticamente quebram com o olhar hegemônico do que é arte, beleza e performance. Ao mesmo tempo, eu, como uma artista de Belém, sinto totalmente vários contrastes com a cena do Sudeste. No Rio de Janeiro, por exemplo, há uma cena cultural drag extremamente competitiva, pelo holofote. Em São Paulo, também. Já em Belém, as coisas ainda se dão na luta contra a invisibilidade, com pouco dinheiro e recursos, mas também com união. Temos pessoas de diversas etnias e estratos sociais, de faixas etárias diferentes. O que é um desafio também, porque existe um embate geracional muito grande entre uma mana de 20 anos, que começa a se montar hoje com todas as informações que circulam na internet, e pessoas que se montam há 20, 30 anos, que provêm de uma escola que entendia a arte drag pela ótica da binaridade e da caricatura. Eu acredito que o que torna as Themônias únicas é que, mesmo diante dessas diferenças de pensamento que geram inúmeras discussões, o grupo continua vivo. Podemos não ter a visibilidade de uma drag que performa em grandes boates de São Paulo, por exemplo. Mas entendemos que o que fazemos é muito mais do que um show, é de fato a construção de um movimento político.

 

Still de Themônias, de Rafael Bqueer, 2021. Crédito: Paulo Evander Castro

De formas distintas, os quatro curtas se passam em cenários de disputa. No filme O nascimento, por exemplo, a performer Uhura Bqueer interpreta uma alienígena que aporta em uma Amazônia em chamas. Em Hierogritos, por sua vez, um grupo de artistas realiza uma intervenção no mercado do Ver-o-Peso, em Belém, onde precisa lidar com manifestações de assédio e violência. Como se deu a escolha desses locais? É possível afirmar que esses cenários refletem as disputas do Brasil atual?

RB: Hoje, quando eu faço qualquer trabalho em Belém, imediatamente penso em destacar o que ainda não foi mostrado da cidade. Isso em oposição a um certo imaginário romantizado da Amazônia, tentando fugir desses estereótipos. Para esses filmes eu queria fazer o contrário, mostrando a existência das Themônias como uma crítica ao cenário político atual, uma forma de ampliar os debates sobre arte contemporânea e multidisciplinaridade.

No curta O nascimento, por exemplo, a floresta está em chamas, numa representação dos ataques criminosos que a Amazônia sofre atualmente. É nessa floresta, nesse lugar pegando fogo, que as Themônias nascem. Não é uma Amazônia idílica, romântica, bonita, não é uma floresta verde, deslumbrante. Eu gosto desses temas que vão lidar com a distopia, com o fim, que também são o recomeço, a fênix. Há sempre uma ambiguidade. O título do filme fala de nascimento, mas traz uma alienígena, uma figura estranha. A ficção e a realidade se confrontam ali.

Já no filme A bela é ploc, a artista Tristan Soledade realiza uma performance de bate-cabelo no Palacete Bolonha, construído em Belém no início do século 20. O curta faz referência à Belle Époque que, no Norte, teve resoluções históricas muito diferentes das do Rio de Janeiro, por exemplo. Na Amazônia esse ainda é um tema a ser debatido, porque a elite local tem um apreço muito grande por essa memória de modernização e de proximidade com a Europa. Então ter as Themônias afrontando esse espaço é algo muito forte para ressignificar valores dentro do processo histórico colonial . É sobre disputa de território, disputa simbólica. Eu gosto disso, desses contrastes. É uma themônia, azul e espiritual, é o bate-cabelo, como trabalho de corpo, trabalho drag, em espaços que poderia estar tocando uma música clássica, mas a gente coloca Calypso.

No curta Hierogritos, por sua vez, filmamos no Mercado do Ver-o-peso, que é essa grande feira a céu aberto, tida como cartão-postal da cidade, um ambiente de muitos trabalhadores homens e cis. Ao mesmo tempo que foi muito bom realizar a performance, foi muito agressivo, ainda mais nesse momento bolsonarista. O trabalho trata justamente do enfrentamento dessas violências. Estar naquele espaço público é ouvir palavras ofensivas, transfóbicas, machistas. Estamos disputando os territórios e impondo a nossa presença mesmo. As cenas não acontecem em ambientes confortáveis. As ações não são feitas em festas, não fica num lugar de glamourização. O que fazemos pode ir além dos clichês.

 

Still de Themônias, de Rafael Bqueer, 2021. Crédito: Paulo Evander Castro

Os títulos dos filmes trazem palavras em pajubá (vocabulário empregado pela população LGBTQIA+). O que motivou vocês a realizar essa escolha? A questão da linguagem, por sinal, tem sido fonte de disputas. Recentemente, por exemplo, o Secretário da Cultura criticou a adoção da linguagem neutra pelo Museu da Língua Portuguesa. Como os filmes se encaixam nesse cenário?

RB: O pajubá tem uma importância política fundamental para a comunidade LGBTQIA+, sobretudo para a população trans e travesti no Brasil. Trata-se de uma linguagem estratégica de comunicação, que incorpora expressões do iorubá e de religiões de matriz africana, com diversas variações de acordo com a região do país. As próprias Themônias acabam construindo diversas formas de pajubá. Existe o pajubá na língua do i, por exemplo, que é falado em um dos filmes. Para parte das pessoas que assistirem, pode parecer algo alienígena. Mas eu não gosto muito de explicar os significados, de deixar mastigado para o público, porque eu acho que essa estranheza fala também do lugar de onde cada um vem. Essas referências também estão nos títulos, A bela é ploc, por exemplo, faz menção à pesquisa de uma artista paraense chamada Wellington Romário, que também pensa o pajubá e sua relação histórica com a Belle Époque e o movimento da cabanagem.

A linguagem “neutra” ou não binária, por sua vez, é fundamental para que as pessoas que não se sentem representadas nem pelo gênero masculino e nem pelo feminino possam ter suas identidades e subjetividades presentes na sociedade. A língua portuguesa é excludente e machista. Esse é o momento de revisarmos palavras e termos que não são inclusivos e apontarmos para mudanças que reflitam as transformações da realidade.

 

Still de Torre de Babildre, de Rafael Bqueer, 2021. Foto: David Pacheco

Como foi seu processo de inserção no circuito das artes? A recepção aos artistas de outras regiões, que não a Sudeste, ainda sofre limitações? Neste ano, comemora-se o centenário da Semana de Arte Moderna de 1922, que hoje é fonte de diversos debates de revisão historiográfica. Como você enxerga esse movimento? Em suas obras, há uma tentativa também de propor um olhar decolonial para a história do país e mesmo para a arte, com inclusão de outras linguagens desvalorizadas pela academia e as instituições?

RB: Para falar da minha vinda para o Sudeste, primeiro é preciso contextualizar a falta de incentivo e emprego para jovens artistas na Amazônia. A vinda não se dá somente pelo desejo de estar aqui, mas sim por uma necessidade de trabalho. No Brasil de maneira geral, você querer ser artista é um super desafio. É algo praticamente impossível para uma pessoa como eu, que não vem de uma família herdeira. Diante disso, entendo a importância de ocupar esses espaços, já que o circuito sempre nos excluiu. Quando fui para o Rio de Janeiro pela primeira vez, em 2013, praticamente não vi obras de artistas pretas amazônicas nos museus e galerias. Hoje, ainda é bastante limitado, mas você já vê muito mais. Ainda falta muito, mas estamos nessa luta para que a mudança se dê de forma coletiva. Essa é uma ideia muito presente no meu trabalho, pensar ações em grupo, que falem de outras artistas, que mostrem o que é arte no campo ampliado. Acho que é isso que me dá prazer em construir com as Themônias, o grupo não tem uma visão restrita. Há muitas possibilidades de entendimento do que é arte na Amazônia hoje. Dessa Amazônia que também é preta e periférica. As pessoas pouco contextualizam a Amazônia urbana. Lá tem de tudo. Como costumamos dizer, são as Amazônias. Eu faço questão de não perder esse laço com a minha cidade, com o meu estado, porque, como disse antes, as narrativas que eu trabalho ainda são desafiadoras para a arte contemporânea local, elas não são facilmente aceitas. Como o Sudeste é um espaço de poder dentro do país, então a gente hackeia o Sudeste para poder falar no nosso próprio território. É uma forma de existir. Porque tudo é para isso. A gente precisa existir primeiro para depois poder movimentar a indústria, a partir de outras linguagens, outros pajubás, outras possibilidades de arte.

 

Still de Themônias, de Rafael Bqueer, 2021. Crédito: Paulo Evander Castro

As instituições culturais, muitas vezes, acabam enquadrando o seu trabalho e de outres artistas em categorias limitadas, associadas sempre a pautas identitárias, deixando de abordar as obras em toda sua complexidade. Como você lida com isso?

RB: Eu acredito que, antes de qualquer coisa, precisamos ocupar os espaços. Penso isso desde a universidade, que foi a primeira instituição que me desafiou nesse sentido. Sou da geração que entrou na universidade pelo sistema de cotas, estudei a vida inteira em colégio público. Conseguir adentrar no ensino superior significou uma reparação histórica. Para minha família, no entanto, minha posição como uma pessoa acadêmica de arte, de início, gerou bastante estranheza e desmotivação. Meus pais não concordavam e não conheciam o circuito das artes visuais. O circuito de arte é elitista, é classista. A gente não se enxerga lá dentro. Isso porque os ritmos que provêm da cultura negra e indígena, por exemplo, são sempre tidos como folclóricos, regionalistas, populares e não como arte. Qualquer expressão que não provenha do pensamento clássico, eurocêntrico ou do que a branquitude exalta como cânone, historicamente, é subcategorizada.

Então, você é criada num meio social que desacredita a possibilidade de você ser artista, a sociedade diz que você vai morrer de fome, a universidade não aceita as suas referências de arte e quando você entra no mercado, constituído pelos museus e pelas galerias, você encontra um contexto de falência pública, cada vez mais refém do dinheiro privado. Nesse contexto, o que a gente precisa ter mesmo são estratégias de hackeamento. Com o meu trabalho sozinha, eu não vou destruir as instituições ou transformar a história da arte. Mas, a partir de um incentivo meu, talvez outras pessoas possam se reconhecer. É sobre ocupar esses espaços e mostrar que é possível sim ser artista vindo desse lugar não hegemônico.

 

Still de Themônias, de Rafael Bqueer, 2021. Crédito: Paulo Evander Castro

Você poderia comentar quais são suas referências na cena artística nacional?

RB: Eu venho investigando há alguns anos, e tendo como uma das principais referências para o meu trabalho, a Jorge Lafond (1952-2003), a Vera Verão, uma artista que tem um poder ancestral para mim e para as próximas que virão. No contexto racista brasileiro, em vários momentos, como estratégia, ela precisou se inserir em um sistema que tratava as artistas pretas como chacota. Mas, ainda assim, a Lafond conseguia mandar a mensagem dela. Ela era considerada a RuPaul brasileira, vários jornalistas da época falavam isso. Eu acredito que, sem dúvida, se ela estivesse viva, estaria ganhando o reconhecimento merecido.  Acho que invocar Jorge Lafond para falar de arte contemporânea é uma escolha política, assim como invocar Madame Satã para falar de arte LGBTQIA+ é político. O meu recorte de pesquisa está nesse contexto de intersecção entre gênero e raça. De pensar como bichas pretas, pessoas não binárias pretas sempre existiram na construção da narrativa artística do Brasil, porém foram excluídas e inviabilizadas desse lugar. Em nossa atuação nas Themônias estamos também costurando essas vivências. A tendência é a gente não só poder descobrir novas artistas, mas reviver as antepassadas, que não foram reconhecidas devidamente. Outra referência é a Márcia Pantera. Não tem como pensar em bate-cabelo e não lembrar dela. Lembro dela e, logo em seguida, já me vem a Joelma na cabeça. Gosto disso, de como tudo está entrelaçado com múltiplas performatividades. Um ato pode costurar um enredo de carnaval. Tudo na minha cabeça vira um enredo. Pode ser uma dança de vogue, uma luta de ninja ou capoeira. Eu acho que essas ancestralidades se encontram sim, embora o meio acadêmico tente sempre subdividir e categorizar.

 

Gostaria de acrescentar algo?

RB: O coletivo das Themônias completa oito anos de existência em 2022, somando em seu histórico a realização de convenções, cortejos, exposições, festas e ações políticas de grande relevância para a comunidade LGBTQIA+ local. Como uma artista drag-themônia e artista visual paraense, é uma honra estar à frente da direção desse projeto, pensar os temas e referências coletivamente, a partir do meu lugar de fala, descentralizando as narrativas da branquitude que monopolizam o mercado da fotografia e do cinema no Brasil. Espero que esse projeto possa inspirar mais pessoas pretas, indígenas, LGBTQIA+ e amazônidas que, assim como eu, seguem na luta pela arte e pela cultura como agentes transformadores da realidade de nossa região. ///

 

Por Mariana Tessitore, com participação de Marcell Carrasco

 

Rafael Bqueer (Belém, 1992) vive e trabalha entre Rio de Janeiro e São Paulo. Graduou-se em licenciatura e bacharelado no curso de artes visuais pela Universidade Federal do Pará (UFPA). Drag-Themônia e ativista, Bqueer usa vídeo e fotografia para satirizar o universo pop e criticar questões contemporâneas. Atua de forma transdisciplinar, com experiência na moda, em escolas de samba e em arte contemporânea.