“Memento”, do Coletivo Trëma

O projeto Memento, do coletivo Trëma, reconstitui com fotografias feitas aqui e nos seus países de origem as memórias de Dany Vásquez, da Colômbia, e Theresa Senga, de Angola, dois imigrantes que chegaram ao Brasil nos últimos anos. A relação entre texto e imagens é deliberadamente difusa, elusiva, de uma maneira que nunca fica claro (ou, se fica, é por acidente) qual a relação entre o que está escrito e cada uma das fotos do painel final. Como a seleção das imagens no trabalho em acervo foi feita tanto por seu valor em relação à memória do personagem quanto por sua qualidade estética no conjunto, os fotógrafos precisaram encontrar um equilíbrio entre esses pontos antes mesmo de registrar qualquer imagem. No final, temos o relato de um homem que passou anos no exército durante uma guerra civil ao lado de fotos que representam os sorvetes que ele tomava com as namoradas. Retrato sensível e poético de coletores de memórias alheias.

Leia tabém a entrevista com o coletivo:

Por que falar desses dois personagens? De onde veio a inspiração, a faísca inicial?

Gabo Morales: Migração é um motivo recorrente da fotografia de documentário. A Trëma sempre trabalhou com temas nessa linha, que se poderia chamar de temas clássicos (ou até clichês), mas sempre tentando mudar a abordagem e contextualizá-los no Brasil do século 21. Falando assim fica pomposo e arrogante, mas foi exatamente como planejamos este trabalho e outros que produzimos ao longo dos anos. Uma das idéias originais era buscar os grandes corredores de imigração, como a fronteira México-EUA e o Mediterrâneo, e produzir imagens do último local onde, olhando para trás, o imigrante poderia ver seu país na linha fina do horizonte. Essa ideia bem simples foi se expandindo para toda e qualquer memória de vida relacionada ao período pré-migração.

Como foi voltar ao país deles? Voltaram sem eles?

GM: Foi uma experiência única na minha vida. Nós realizamos cerca de 20 horas de entrevista com Dany Vasquez, por exemplo. No momento em que eu e Chiaverini [Tomás Chiaverini, jornalista e escritor que participou do projeto] partimos para a Colômbia, a sensação foi de estar voltando para uma juventude compartilhada com um amigo que esteve sempre por perto. Grandes amigos que vemos pouco talvez não passem, em um ano, 20 horas conosco conversando sobre o passado. É uma sensação curiosa ter uma lista de memórias, anexada a uma lista de formas de representação dessas memórias e, finalmente, estar no local onde elas possivelmente se fixaram no pensamento do personagem. Tudo isso com a plena consciência de que não importa se esses mementos são factuais ou não. O importante é que estejam fixados na memória de Dany Vásquez.

O fotógrafo João Roberto Ripper prega a “fotografia do bem-querer”, como ele diz. Ele sugere que se fotografe as pessoas, por pior que estejam, com cuidado e delicadeza e sobretudo tentando não estigmatizá-las. Ele tem um retrato de uma família de carvoeiros, por exemplo, que estão ferrados, magros, doentes, trabalhando em fornos de carvão quase como escravos e mesmo assim, registra o amor entre pai, mãe e filho. Tenta captar a beleza e a humanidade daquelas pessoas mesmo nas piores condições. Esse trabalho de vocês passa por aí? O que acham desse modo de fazer fotografia que ele sugere?

GM: É uma ótima pergunta. A Theresa é uma refugiada angolana que viveu horrores na sua trajetória, mas para nós era muito importante valorizar momentos que lhe fossem confortáveis à memória, como o feijão com pundú dos domingos ou o sermão do seu profeta. Eu acredito que é impossível controlar qualquer estigmatização se é isto que o interlocutor está buscando encontrar em um trabalho de fotografia como o Memento. Uma decisão consciente nossa na Trëma sempre foi a de valorizar a dignidade de quem nos deu a honra e o prazer de fotografar e conversar. Na nossa ideia, fotografar as pessoas de forma neutra seria justamente um dos métodos para deixar isso mais claro.

Vocês podem me contar um pouco da escolha dos objetos e cenas retratados? Por que decidiram contar a história desses dois com um sorvete, um terno verde, uma van com bagagem amarrada em cima, guarda-sóis coloridos, um prato de comida, um campo de futebol, etc? O que determinou a escolha dos elementos para compor esse universo deles?

GM: Após, 18, 20 horas de entrevista fizemos listas extensas de memórias que fomos coletando de Dany Vásquez e Theresa Senga. Algumas delas, memórias que nós mesmos, a partir de perguntas, avivamos, outras que, mais informalmente, foram surgindo em conversas. O campo de futebol, por exemplo, vem da descrição que Dany Vásquez fez da vista de sua casa no Granizal, em Medellin. Basicamente fomos até o local e tentamos achar essa sua janela, de onde fotografamos o gramado. Somos nós de forma bem direta representando em fotografia a descrição que nos foi dada de um bairro de infância. Os sorvetes passaram por um processo um pouco mais truncado. Ao longo das entrevistas notamos que Dany repetia o mesmo programa com diferentes namoradas – visitas às sorveterias para tomar ensalada de frutas – e decidimos representar a vida amorosa dele a partir desse alimento. Outras imagens também são relacionadas à vida amorosa ou sexual, como o sutiã branco, a praça. Uma memória que foi reproduzida e surgiu sem um estímulo mais direto nosso foi a das curvas da estrada Medellin-Apartadó. Ela veio de um pedido de Dany para que tomássemos cuidado na viagem por conta da longa serra entre as duas cidades. A todo momento estávamos tentando captar comentários e lembranças que pudessemos traduzir em Mementos. Foi assim que o projeto foi ganhando ideias.

De onde veio o título do projeto? Pelo significado da palavra, tem um pouco de resgate, de lembrança, mas também algo de fúnebre e morte, não?

GM: Essa associação negativa pode vir provavelmente do termo memento mori (“Lembrai que irás morrer”). Memento, sozinho, é o objeto ou a cor, o som ou qualquer outra coisa que desencadeia o processo de lembrar, a saudade, a nostalgia. Um exemplo clássico são as madeleines de Marcel Proust no livro Em busca do tempo perdido, quando ele inicia a narrativa a partir da memória olfativa dos bolinhos da sua infância. Nós colecionamos lembranças de pessoas que não conhecíamos e criamos mementos para compartilhar com eles essa memória.///

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Leia também a matéria com o diário de viagem feito durante o processo de trabalho do coletivo Trëma: clique aqui

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Coletivo Trëma | Entre nós: dez anos de Bolsa ZUM/IMS.

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Rodrigo Capote. Foto: Coletivo Trëma.
Leonardo Soares. Foto: Coletivo Trëma.
Gabo Morales. Foto: Coletivo Trëma.
Felipe Redondo. Foto: Coletivo Trëma.

Coletivo Trëma (São Paulo, SP, 2013) 

Composto pelos fotógrafos Filipe Redondo (Lins, 1983), Gabo Morales (Penápolis, 1983), Leonardo Soares (São Paulo, 1982) e Rodrigo Capote (São Paulo, 1985). Em 2014,  recebeu o XIV Prêmio Funarte Marc Ferrez de Fotografia e o Prêmio Fundação Conrado Wessel de Arte.