Exposições

VALIE EXPORT: o som ao redor e os outros sentidos da imagem

VALIE EXPORT & Nathalia Lavigne

From the Portfolio of Doggedness, 1968, em cooperação com Peter Weibel, Cortesia da Galeria Thaddaeus Ropac © VALIE EXPORT, VG Bild-Kunst, Bonn 2023. Foto: Joseph Tandl

O som do latido de um cão percorre diversos os ambientes da retrospectiva de VALIE EXPORT em cartaz no C/O Berlin Foundation. Vemos as primeiras imagens imaginando o que vem a seguir, certamente algo relacionado a uma de suas performances mais conhecidas: From the Portfolio of Doggedness (1968), quando caminhou pelas ruas de Viena com o artista Peter Weibel, seu namorado na época, amarrado em uma coleira tal qual um cachorro.  

O barulho que ouvimos vem de outra instalação menos marcante. Em certos momentos, o som fica alto demais, dificultando a leitura dos textos. Mas talvez ele tenha uma função inesperada, especialmente para quem já conhece o trabalho em questão. Ao ouvir o áudio logo na entrada da exposição, é difícil resistir a uma curiosidade voyeurística de se adiantar até a terceira sala para olhar aquelas fotos. De repente, nos vemos não tão diferentes dos espectadores originais da performance ali retratados. Se mais de 50 anos depois aquelas cenas ainda causam espanto, dá para imaginar como foram recebidas no conservador ambiente de Viena na época.

Um dos pontos altos da retrospectiva – idealizada originalmente por Walter Moser, do museu Albertina, em Viena, e co-curada no C/O Berlin por Boaz Levin – é a variedade de documentação reunida, mostrando os diferentes usos que a artista faz das mídias, especialmente a fotografia. No caso de From the Portfolio of Doggedness, chama atenção como parte das imagens mostram em detalhes a reação das pessoas. Seus olhares são um retrato valioso do contexto patriarcal que influenciou a formação de VALIE EXPORT enquanto artista.

O que, de fato, tinha acabado de acontecer: em 1967, aos 27 anos, ela assume parte do nome da marca de cigarros Smart Export como pseudônimo, criando um carimbo que adotaria como assinatura. O nascimento de sua persona artística foi uma maneira de se livrar do peso que um sobrenome carrega para uma mulher, especialmente na sociedade austríaca daquela época. Como comentou em uma entrevista, até meados dos anos 1970 uma mulher casada precisava de uma autorização do marido até para abrir uma conta bancária, entre outras coisas. 

VALIE EXPORT – SMART EXPORT, Autorretrato, 1970, Museu ALBERTINA, Viena – Coleção ESSL © VALIE EXPORT, VG Bild-Kunst, Bonn 2023; Foto: Gertraud Wolfschwenger © VG Bild-Kunst, Bonn 2023

VALIE EXPORT não estava sozinha em contestar o conservadorismo político, social e cultural que predominava na Áustria. Suas performances no final dos anos 1960 dialogam com outras ações do movimento conhecido como Acionismo de Viena, também realizadas em espaços públicos e envolvendo nudez, sadomasoquismo e o uso do corpo enquanto mídia. Embora seus interesses e a linguagem artística fossem semelhantes a de nomes como Günter Brus, Otto Mühl, e Rudolf Schwarzkogler, ela trouxe outras questões não abordadas pelo grupo – entre elas a crítica feminista à representação da mulher na cultura de massa.

Touch cinema, 1968, Museu Albertina, Viena – Coleção ESSL © VALIE EXPORT, VG Bild-Kunst, Bonn 2023. Foto: Werner Schulz

É o que aparece especialmente em Touch Cinema, 1968, quando saiu pelo centro de Viena e de Munique vestindo uma caixa preta pendurada sobre o busto. Quem passasse naquele momento era convidado a tocar seus seios por trás de uma cortina, com a condição de que a encarasse por 12 segundos. No texto escrito pela artista, reproduzido no catálogo, ela descreve a ação como uma “instância tátil de comunicação visual”, em que “a recepção tátil protesta contra a fraude do voyeurismo.” Em outro trecho, ela defende uma socialização da sexualidade: “Na medida em que um seio não é mais propriedade do homem, e a mulher o dispõe independentemente, a moralidade dos regulamentos estaduais (estado, família, propriedade) é quebrada”, escreve. Por isso a instrução de que o espectador a olhasse nos olhos era tão importante. Se a recepção da imagem na caixa preta deixava de acontecer pela visão, era por meio desse gesto íntimo e subjetivo que a objetificação do corpo feminino era contestada.

Realizada diversas vezes em contextos distintos, Touch Cinema foi amplamente documentada por fotógrafos profissionais e amadores. Alguns se misturavam ao público e participavam da performance, ajudando a criar situações que já nasciam pensadas enquanto imagens. 

Mas não foi esse o caso das fotos pelas quais VALIE EXPORT se tornaria mais conhecida. Em Action Pants: Genital Panic (1969), outra de sua performance da série chamada de cinema expandido, a ação original consistiu em caminhar entre os espectadores de um festival de filmes de vanguarda em Munique com uma calça recortada e a região genital descoberta. Foi apenas meses depois que surgiu a ideia de posar segurando uma metralhadora, fotografada por Peter Hassmann em seu estúdio, imagem posteriormente reproduzida em serigrafia e em cores variadas. Dessa vez, a crítica ao voyerismo ganha um tom mais ácido de confronto direto, sem a ironia presente tanto em From the Portfolio of Doggedness quanto em Touch Cinema.

From the Geometric Sketchbook of Nature: Tree Triangle, 1973, Cortesia da Galeria Thaddaeus Ropac © VALIE EXPORT, VG Bild-Kunst, Bonn 2023

O corpo enquanto registro e inscrição do espaço

Um segundo núcleo em destaque na retrospectiva é a série iniciada na década seguinte, Configurações do Corpo (1972-1982). Suas ações nesses trabalhos sugerem provocações mais sutis, porém com a mesma intenção de questionar hierarquias e ideologias que moldam uma cidade. Mais uma vez, seu corpo é colocado como medida com a função de reclassificar o entorno e se inscrever naqueles espaços, criando outras maneiras de ocupá-los a partir de estados internos subjetivos. Muitos dos ambientes retratados são edifícios monumentais de Viena, que ainda se recuperava das tramas do pós-guerra, ou paisagens onde quase não havia a presença de pessoas. Como escreve em suas anotações, “O corpo é esvaziado e passa a fazer parte de um espaço, revelando os vazios e as feridas da sociedade.”

Embora sua influência na arte de vanguarda feminista seja inegável, VALIE EXPORT levou tempo para ter uma visibilidade que a permitisse viver de seu trabalho como artista. O que começou a acontecer apenas nos anos 2000, após sua obra ser adquirida por grandes coleções norte-americanas ou pelo MoMA, que em 2012 comprou um conjunto significativo de suas obras.

Vendo sua produção reunida em uma retrospectiva, fica claro como o fato de não estar inserida no mercado lhe deu maior liberdade para seguir mais livremente por um caminho experimental. Por outro lado, alguns trabalhos dos anos 1980 ao 2000 parecem hoje um pouco deslocados do tempo – diferente de sua produção das décadas de 1960 e 1970, que dialoga melhor com o presente.

Uma das exceções é a instalação Fragmentos das imagens de uma carícia (1994). Ocupando o centro da última sala, 18 lâmpadas acesas movem-se verticalmente em direção a cilindros preenchidos com óleo, leite ou água. Cada um dos líquidos – preto, branco e transparente – refrata a luz de maneira distinta, sugerindo uma relação com o processo químico da película. O número 18 é também uma referência ao número mínimo de quadros por segundo necessários para que o movimento seja percebido como fluido na projeção de um filme. Além de ser uma homenagem ao cinema, área em que VALIE EXPORT também se destacou com longas-metragens como Adversários Invisíveis (1977) e A Prática do Amor (1985), a instalação traduz bem a experiência sensorial que ela sempre buscou ao pensar a imagem. E sem deixar de assumir os riscos desse processo, como misturar água à eletricidade. ///

Nathalia Lavigne é pesquisadora, jornalista e curadora. Atualmente vive em Berlim, após um período como pesquisadora visitante da Humboldt Universität zu Berlin, contemplada com uma bolsa da DAAD em 2021.


Exposições

Ana Mendieta: corta-se uma árvore, ficam as raízes

Ana Mendieta & Talita Trizoli

Vista da exposição Ana Mendieta: Silhueta em Fogo, no Sesc Pompeia, São Paulo, 2023-2024. Foto de Joana França.

Yagul é o nome em zapoteca de um sítio arqueológico que ocupa cerca de 1.000 hectares na província de Oaxaca no México. Constituído por um agrupamento de três seções arquitetônicas (edificações de caráter militar, religiosa e residencial), o lugar tem sido um ponto de atração para incursões científicas, turísticas, religiosas e até mesmo artísticas. No complexo religioso, entre os vestígios de pátios e salas de convívio, foram desenterradas entre 1950/60 nada menos que 30 tumbas cerimoniais, ornamentadas com hieróglifos e efígies que emergem das paredes de pedras vulcânicas típicas da região. Há um contraste evidente entre a aridez dessas pedras, com os pontos verdes de vegetação que perduraram após séculos de cultivo agrícola, combates colonialistas e dilapidação moderna. Também foram encontradas, no entorno das ruínas dessa antiga cidade, diversas pinturas e incisões ditas rupestres que indicam a dimensão xamânica que ordenava a estrutura social das diversas gerações que ali habitaram – até o advento da invasão espanhola. São figuras de animais e humanoides, juntamente a hieróglifos e símbolos que remetem a nosso arcabouço astrológico, eternizados ali com pigmentos branco e vermelho sobre as rochas das cavernas (as mesmas cores que ornamentavam as paredes do complexo residencial, um branco arenoso e reluzente, um vermelho sanguíneo denso).

A cidade-ruína do Pueblo Viejo ou da “Árvore Velha” [1] tem sua ocupação remontando cerca de 500/700DC, mas é em 1973 que a jovem recém-naturalizada estadunidense Ana Mendieta segue para Oaxaca, em uma de suas diversas viagem ao México [2]. Seu encontro com o silêncio e o calor de Yagul constitui uma Bildungsreise (viagem de formação, em uma tradução livre do termo em alemão) que foge da rota turística predatória, e que impressiona a jovem artista tanto pelo intenso contraste em relação ao frio de Iowa, onde ela residia, quanto pela dimensão telúrica das ruínas e imagens nas paredes das cavernas do entorno – é justo ali em Yagul, entre as tumbas e vestígios de uma civilização massacrada, que se inicia a longa série de trabalhos Silhueta, a mais popular de sua breve carreira.

Nascida em Cuba no seio de uma família de classe média alta, com antecedentes políticos e inclinações partidárias estadunidenses, a trajetória de vida de Mendieta pode ser considerada banal no que tange seu deslocamento migratório e político para a época. Mas é também singular pelos detalhes e anedotas (poéticas e trágicas, simultaneamente), o que a torna tão fascinante.

Ainda uma pré-adolescente, Ana foi enviada junto com sua irmã Raquelin Mendieta para o estado norte-americano de Iowa em 1961, dentro de um programa apelidado de Operação Peter Pan, uma parceria orquestrada pela Igreja católica com o governo de Eisenhower. Tratava-se de um êxodo clandestino e forçado que, ao longo de dois anos, retirou de Cuba milhares de jovens pertencentes a famílias ligadas ao movimento de antirrevolução do governo de Fidel Castro, e que foram instalados em campos de refugiados e orfanatos – Mendieta e sua irmã foram residentes no orfanato de Dubuquet e em diversos lares temporários até 1966, quando sua mãe finalmente adentra ao território estadunidense, seguida por seu marido em 1979.

Frame do vídeo Raquel Cecilia Mendieta on Ana Mendieta at Galerie Lelong, publicado no site oficial da artista.

Desterrada em sua infância tardia, e habitando um corpo feminilizado e racializado em um território hostil ao qual fora lançada sem consulta, a jovem artista passa a elaborar trabalhos em que o desejo de pertencimento e integração com uma dimensão autóctone e mítica impera como norteador de suas pesquisas, juntamente a concepções de cura e transcendência via a experiência estética.

Os vestígios da civilização em Yagul são um disparador para Mendieta elaborar um conjunto vocabular de signos que marca sua singularidade plástica. A silhueta na escala de seu corpo, o pigmento vermelho ou sangue animal, o uso de pólvora e lama, diversos elementos vegetais e animais como flores e penas, além de referenciais místicos e índices de violência ritualística formam um quase dialeto em que o princípio de transmutabilidade alinhava pouco mais de 10 anos de carreira – interrompidos em 1985 com sua morte prematura.

Vista da exposição Ana Mendieta: Silhueta em Fogo, no Sesc Pompeia, São Paulo, 2023-2024. Foto de Joana França.

Na exposição Ana Mendieta: Silhueta em Fogo, individual da artista em cartaz no Sesc Pompeia, com curadoria de Daniela Labra, o conjunto de vídeos e fotografias selecionados consegue condensar esses diversos elementos formativos, que fazem com que a produção de Mendieta ocupe um lugar de fascínio, assombro e desejo no observador – e, principalmente, no imaginário daqueles inclinados às dimensões da feminilidade (e feminilidade aqui entendida como linguagem, e não necessariamente como matéria orgânica ou de concepção essencialista).

A expografia de aspecto octogonal elaborada pelo estúdio GRU forma um labirinto que guia o espectador por um percurso de penumbra, interrompido pelas projeções de vídeo e pelos reflexos no fio de água da arquitetura de Lina – que aliás, dialoga diretamente com a dimensão telúrica do trabalho de Mendieta, assim como o chão de pedras, as paredes de tijolos à vista, e a lareira que é ligada nos picos de inverno. A escolha fortuita do espaço do Sesc Pompeia para essa exposição permite ao espectador uma faísca de sensorialidade que Mendieta (talvez) obteve ao adentrar as cavernas de Yagul, com os contrastes de temperatura, a ausência e presença de vegetação, e o ruído aquoso do entorno pantanoso.

Esse pequeno fio de água, aliás, que sibila atravessando o grande galpão industrial adaptado para o Sesc, permite um contraponto de trajeto ao labirinto expográfico da mostra, principalmente quando o elemento água passa a integrar as peças da artista (rios, riachos e praias com ondas quebrantes dividem o espaço nos negativos projetados com cenas bucólicas de Iowa, México e Cuba, e algumas vistas mais soturnas, como cemitérios e ambientes domésticos à meia luz).

A produção de Mendieta mescla dimensões ritualísticas de expurgo, restauro e perlaboração da experiência de ser no mundo. Paira nela um declarado desejo de transmutação e transitoriedade, onde essas obras são sintomáticas do estado de espírito da artista, de sua existência entre culturas, de não-lugar. A dimensão material de fluídos e pós funcionam como dispositivos de limpeza do corpo, são elementos de trânsito para mudanças de estado interior; líquidos aquosos ou plasmáticos, terras ou poeiras de diferentes cores estruturam e nutrem esse corpo que almeja acolhimento, mas que também imola seus ícones.

Frame do vídeo Raquel Cecilia Mendieta on Ana Mendieta at Galerie Lelong, publicado no site oficial da artista.

De formação católica conservadora, a família da artista em Cuba não tinha contato com as vertentes sincréticas das religiões de matriz africana, nas quais é tão cara a experiência da transcendência e das trocas materiais – por conseguinte, o envolvimento tardio dela com as práticas xamânicas e místicas da santería operam por uma lógica quase antropológica, de procura por sinais e técnicas de conexão com um passado nunca vivenciado, uma certa romantização mística de retorno à uma origem inexistente.

“Acredito que isso tenha sido resultado direto de ter sido arrancada de minha terra natal (Cuba) durante minha adolescência. Estou dominada pela sensação de ter sido expulsa do ventre (da natureza). Minha arte é a forma como restabeleço os laços que me unem ao universo.” [3]

Essa presença de um ritornelo matriarcal na obra da artista indicia seu contato com diversas operações que emergiam na vanguarda artística do período, como as ditas landart (instalações, interferências e projetos em locais “naturais” e “selvagens), a bodyart (obras onde o corpo é suporte, veículo e problema estético), e a arte conceitual (onde ideias e procedimentos imperam como núcleo dos trabalhos, em detrimento da materialidade), com acréscimos singulares da percepção geopolítica, ecosófica e feminista.

No que tangem as trocas e atravessamentos de referenciais no corpo da obra de Mendieta, é possível identificar algumas parcerias ao longo de sua curta produção, tais como as obras de juventude de Vito Acconci, seu colega pela universidade de Iowa, em que o corpo como tensionamento de forças salienta sua materialidade carnal e visceral; Lynda Benglis e suas performances de travestimento de gênero e eroticidade, amiga de Mendieta dos círculos feministas; e mesmo as autoflagelações de Chris Burden e as encenações grotescas dos Acionistas Vienenses, ainda que tais ações operem por uma perspectiva de dessacralização do corpo, enquanto Mendieta procura recuperar a dimensão sacra da relação terra/corpo.

Importante mencionar também o diálogo com a obra de Robert Smithson, principal nome da prática de landart, mas com um programa estético altamente masculinista. As obras mais conhecidas de Smithson são interferências monumentais no âmbito natural, uma imposição fálica de controle e submissão da natureza, já Mendieta trabalha com a escala humana, e com o princípio de conexão e envolvimento. Enquanto Smithson fissura e demove matéria, Mendieta imerge e se oferta para a dimensão natural.

Esse contraste entre uma produção artística de caráter masculina ou feminina tem sido tema de debate desde a modernidade, e os critérios qualitativos que supostamente definiriam a produção de um artista homem em relação a produção de uma artista mulher, emulam os valores de época no entendimento das características simbólicas de cada linguagem de gênero. Tais questões, de um modo ou de outro, se mostram presentes na obra de Mendieta, principalmente a partir de seu contato com artistas como Nancy Spero e Carolee Schneemann, as quais apresentariam à Mendieta o projeto da A.I.R. Gallery em Nova York, e com quem ela partilhara a percepção de subalternidade e violência que os corpos feminilizados estão à mercê.

“Declarações feitas posteriormente pela amiga de Mendieta e artista feminista, Carolee Schneemann, relembram a opinião compartilhada entre ambas de que ’a violência contra as mulheres está relacionada com todo o sentido patriarcal de violência contra o mundo natural e com a resistência aos interrogatórios de gênero ‘, além da base judaico-cristã para “a negação da sexualidade como fonte de sabedoria e conhecimento e o silenciamento da experiência das mulheres.” [4]

Frame do vídeo Raquel Cecilia Mendieta on Ana Mendieta at Galerie Lelong, publicado no site oficial da artista.

Ao mudar-se para Nova York no ano de 1978, após experiências racistas e xenófobas no território de Iowa, e perceber que suas possibilidades profissionais não poderiam evitar o circuito artístico de Manhattan, Mendieta passa a integrar como associada (após um convite de candidatura da amiga e artista Mary Beth Edelson), a galeria de artistas feministas A.I.R (Artists in Residence). Criada em 1972 pelas artistas Susan Williams, Barbara Zucke, Dotty Attie, Maude Boltz, Mary Grigoriadis e Nancy Spero, a galeria em formato de cooperativa atua até os dias correntes como um espaço de suporte e valorização comercial de artistas mulheres e não binárias.

Em sua estadia como membro da A.I.R. Gallery, Mendieta foi uma integrante ativa nos primeiros anos, atuando em comitês, projetos de financiamento e mesmo recepcionando o público, o que demonstra sua inclinação como agente social no circuito artístico da época e seu desejo de comunidade – ainda que adiante ela tenha se decepcionado com a estrutura feminista e branca de classe-média da instituição. [5]

Inclusive, como forma de lançar luz a tais problemas na galeria, Mendieta fez as vezes de curadora, juntamente às colegas Zarina, artista indiana, e Kazuko Miyamoto, artista japonesa, em uma proposta expositiva de artistas desmerecidas pelo circuito devido a seus marcadores sociais. Essa triangulação curatorial evidencia por parte de Mendieta uma posição de coerência e ética frente aos problemas vivenciados por suas colegas imigrantes, como experiências de exclusão, desqualificação, hipersexualização e a busca por pertencimento em um país avesso ao diverso.

A mostra icônica The Dialectics of Isolation: Third World Women Artists of the United States, ocorreu por pouco mais de duas semanas em setembro de 1980, e teve a participação de oito artistas (Judith F. Baca, Beverly Buchanan, Janet Olivia Henry, Senga Nengudi, Lydia Okumura, Howardena Pindell, Selena Whitefeather e Zarina), obtendo largo sucesso da crítica e mesmo de vendas em seu curto período em cartaz. No ensaio do catálogo, Mendieta declara sua posição sobre certa feminilidade que desconsidera os índices raciais e geográficos:

“Nós, do Terceiro Mundo, nos Estados Unidos, temos as mesmas preocupações que os povos das Nações Não Alinhadas. A população branca dos Estados Unidos, diversa, mas de origem europeia básica, exterminou a civilização indígena e deixou de lado as culturas negras e não-brancas para criar uma cultura homogênea dominada pelos homens acima da divergência interna… Em meados e finais dos anos 60, quando as mulheres nos Estados Unidos se politizaram e se uniram no Movimento Feminista com o objetivo de acabar com a dominação e a exploração pela cultura masculina branca, elas não conseguiram lembrar-se de nós. O feminismo americano tal como está é basicamente um movimento branco de classe média. Como mulheres não brancas, nossas lutas são duplas.” [6]

Como artista, Mendieta realizou pela A.I.R. Gallery duas das quatro únicas individuais em Nova York enquanto viva: Silueta Series em 1979 e Esculturas Rupestres em 1981. A exposição de 1979, particularmente, marca um processo de reconhecimento de Mendieta por seus pares artísticos no circuito novaiorquino, já que as integrantes da galeria na época promoveram uma série de encontros e jantares a fim de que a jovem artista recém-chegada à cidade, pudesse circular no meio.

Para além dessas atividades fundamentais de socialização, uma anedota incontornável nessa mesma exposição é a mesa de debate organizada por Nancy Spero How has the Women’s Art Movement affected male art attitudes, simultânea à individual de Mendieta, e que proporcionou o encontro da jovem exilada cubana com o badalado nome da arte minimalista de então, Carl Andre.

A presença de Andre na biografia de Mendieta é no mínimo polêmica (para usar um termo mais brando do que violenta ou trágica), seja pelos indícios de abuso verbal por parte do “queridinho” do mercado de arte contemporânea da época, seja pela morte de Mendieta, na manhã do dia 08 de setembro de 1985, apenas oito meses após a oficialização do enlace, legalmente considerada como suicídio, mas com diversos sinais de um efetivo feminicídio.

A relação de Mendieta com Andre foi marcada por idas e vindas, passionalidade e competição profissional, terminando com a fatídica morte da artista em ascensão. Na época, Andre era figurado como um artista sedutor e cheio de excentricidades, em que o adjetivo da “genialidade” lhe proporcionava um salvo-conduto para uma série de comportamentos agressivos.

Vista da exposição Ana Mendieta: Silhueta em Fogo, no Sesc Pompeia, São Paulo, 2023-2024. Foto de Joana França.

Diversas são as histórias recolhidas por entre os corredores do meio artístico, como a sistemática traição em relações afetivas e seu uso descontrolado do álcool – que vez ou outra desencadeava em Carl acessos de violência, provocações e ofensas verbais, além de instigações gratuitas com colegas, e que evocam o hábito de competição masculina, além das narrativas de violência física e doméstica com ex-parceiras e colegas de trabalho [7]. Comentários e anedotas ao pé do ouvido sobre o tema foram sistematicamente silenciados com a tragédia da morte de Mendieta, na mesma intensidade em que se multiplicaram as narrativas de desqualificação da artista como mulher histérica e descontrolada, alpinista social e dinheirista, parceira invejosa da fama do grande escultor (mas que na época, já tinha sua carreira estagnada e maneirista).

“Carl espancou um colega artista no Texas, acabou num tanque de bêbados em Seattle, abusou em público de uma mulher em Berlim. “Absolutamente lixo”, era como Jack Hoffinger (advogado de Carl) chamava essas histórias quando ele conseguia falar com o artista ao telefone, mas os piores rumores, os de abuso físico de mulheres, lhe escapavam; as mulheres na vida de Carl permaneceriam as mais silenciosas de todas.

[…]

Havia pessoas no Soho que afirmavam ter visto Carl sendo violento com mulheres. O crítico e pintor Jeff Perrone, que dez anos antes havia escrito um raro e contundente ataque a Carl nomeando-o como uma espécie de vigarista da arte (“Carl Andre: Art Versus Talk”), não teve escrúpulos em dizer que tinha visto Angela Westwater, durante os anos em que ela morou com Carl, andando por aí machucada e com hematomas, e dizendo que havia esbarrado em uma porta, quando todos sabiam que era Carl.” [8]

Na época do caso Mendieta x Andre, não havia discussões públicas sobre feminicídio (o termo havia sido forjado em 1976 pela socióloga sul-africana Diana Russel, mas não adquirira recepção no âmbito cotidiano), muito menos de toda uma divisão conceitual dos diversos tipos de violência e abusos com base misógina (lovebomb, gaslight, violência patrimonial e sexual, apenas para citar alguns). À luz da perspectiva atual, de vertentes feministas combativas, decoloniais e não-essencialistas, fica evidente a dimensão de misoginia, racismo e xenofobia presente na relação entre o casal de artistas e seu desfecho. A extensa documentação a respeito, ora de caráter acadêmico, ora no formato de tabloide, permite uma revisão das práticas banalizadas de subjugação e desqualificação das mulheres, principalmente daquelas racializadas e de origem estrangeira/imigrante.

No transcorrer do processo de investigação e julgamento de sua morte, amigos e colegas declararam a absurdidade de um suposto suicídio, justamente pelo contentamento da artista com o andamento da carreira e sua ambição profissional (mesmo com as dificuldades de gênero, raça e nacionalidade impregnadas em sua pessoa), além de sua profunda fobia de alturas [9].

Além disso, vale recordar nesse momento o histórico de explosões agressivas de Andre ao longo da carreira, como a troca de socos com Gordon Matta-Clark [10], diversas brigas de bar, além das inúmeras mulheres do meio artístico com quem ele se relacionou, e que sofreram algum tipo de violência (e muitas ainda hoje se recusam a falar abertamente sobre os casos por receio de retaliação).

Daqueles que teriam sofrido abusos em suas mãos – a galerista Angela Westwater, por exemplo, admitiu recentemente ter sofrido abusos verbais, mas não físicos – ninguém optou por testemunhar no momento do julgamento. [11]

O protocolo de silêncio sobre as implicações (ou culpabilidade) de Andre na morte de Mendieta é um grande estudo de caso dos meandros de poder no sistema judiciário e das artes estadunidenses, e dos mais explorados por investigadoras feministas nos últimos anos. No entanto, uma questão permanece: até onde é válido centralizar a trajetória profissional de uma artista do porte de Mendieta, em relação a sua morte violenta e de matiz machista? Ou ainda, é honesto com a trajetória da artista reduzir sua produção poética à ritos de prenúncio de sua morte, como foi efetuado na época por diversos periódicos e principalmente pelos advogados de Andre?

Evidentemente que não! Mas também não se deve descartar tais dados, pois além de serem relevantes na fantasia de auratização da artista, ainda permitem a constatação sobre o efetivo grau de violência e machismo operado por figuras públicas com alto capital social. Se há ainda nos dias correntes divisões apaixonadas sobre a morte de Mendieta, e uma efetiva guerra de narrativas sobre as condições do ocorrido, é importante considerar nessa ligeira recapitulação, a alta capacidade de exploração e manipulação emocional de Andre com suas diversas parceiras amorosas (como Lucy Lippard, com quem se relacionou), o que nos leva a indagar o porquê seria diferente Mendieta. Como exemplo, vide o caso da saída da artista da A.I.R Gallery.

“Em 19 de outubro de 1982, Mendieta apresentou uma carta formal de demissão, seguida de um inquérito sobre a venda da sua sociedade. A carta de demissão não citou quaisquer motivos para sua saída, mas várias artistas colegas da A.I.R. lembram-se dos eventos relacionados. Para um evento beneficente recente, Mendieta e Carl Andre doaram uma peça colaborativa. Como era a política da galeria, todas as obras precisavam ser entregues pelo artista. Edelson lembra que Andre se ofendeu, instigando um desentendimento, o que, em parte, levou à demissão de Mendieta. Mesmo sem este incidente, de acordo com outra integrante, Pat Lasch, a associação de Mendieta com o agora lendário Andre certamente desempenhou algum papel na sua decisão.” [12]

Frame do vídeo Ana Mendieta au Jeu de Paume Concorde – Paris, publicado no site oficial da artista.

Parte da complexa equação operativa nos casos de abuso e violência, que dificultam a percepção da vítima em seu estado de degradação física, emocional e patrimonial, segue tanto pela dimensão de um constrangimento da inevitável exposição pública, e seus respectivos questionamentos e culpabilização pelos eventos. A auto recusa em assumir sua condição de vítima dentro de uma história de violência também pesa nesse mecanismo – negação essa que convêm ao abusador, e que anda par a par com o medo paralisante instigado por seus parceiros, junto às estratégias de isolamento social e distorção narrativa, a ponto de que elas, as subjugadas, não consigam se afastar do abusador. Tais situações não eram totalmente desconhecidas por parte de Mendieta, pelo contrário, mas isso não implicava que ela mesma não se visse imersa nesses jogos emocionais.

Especulações afetivas à parte, se faz importante recordar que os elementos de violência presentes na obra madura de Mendieta não possuem um caráter explícito ou de recapitulação criminosa. A violência ali presente possui uma dimensão litúrgica, integrante de uma série de ações protocolares e ritualísticas que implicam uma conexão espiritual com a matéria – salvo a exceção dos trabalhos de juventude, que encenavam e revisitavam crimes de gênero, como Untitled (People Looking at Blood, Moffitt) e a performance Rape Scene, ambos de 1973.

Ainda estudante na Universidade de Iowa, Mendieta vivenciou o medo gerado pelo brutal assassinato e estupro de uma colega de sala, Sara Ann Otten. Com ampla cobertura predatória sobre o crime e o estado de pânico instalado, a artista convidou amigos para uma festa em seu estúdio, apenas para encontrá-la imóvel sobre a mesa da cozinha, com as mãos amarradas e as calças arriadas, coberta por sangue (cena essa montada de acordo com o descrito na imprensa). A performance se estendeu por quase uma hora e, no final, Mendieta se recompôs e abriu uma lata de cerveja, para interagir normalmente com os convidados.

Já em Untitled (People Looking at Blood, Moffitt), Mendieta registra em filme as diversas reações de transeuntes à uma poça de sangue e vísceras de animal, depositados em frente a seu apartamento.

Muitos conectam tais trabalhos de juventude e suas características formais à forma trágica e “misteriosa” da morte da artista, como se fossem um oráculo de sua trajetória de vida. Por mais irresistível que tal interpretação seja, é importante recordar que Mendieta é mais do que um fim violento. Sua obra é um agrupamento de pulsões primordiais da feminilidade sem mediações esterilizantes. Tomando a metáfora de Yagul, a velha árvore-cidade de Oaxaca, os galhos de Mendieta que mal se expandiam foram violentamente cortados, mas suas raízes se estendem fortemente no imaginário de jovens artistas. ///

Talita Trizoli é curadora, professora e pesquisadora. Doutora pela FE-USP e mestra pelo PGEHA-USP, com pesquisas na área de feminismos, história e crítica de arte no Brasil. Atualmente desenvolve pesquisa de pós-doutorado no IEB-USP com apoio da FAPESP, e coordena o G.A.F. (Grupo de Acompanhamento Feminista para artistas mulheres).

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A exposição Ana Mendieta: Silhueta em Fogo está em cartaz no Sesc Pompeia (SP) até o dia 21 de janeiro de 2024. Mais informações aqui.

[1] Em zapoteca, ya é árvore e gul é velho.

[2] A 1ª viagem de Mendieta para o México é em 1971, em uma excursão arqueológica para San Juan Teotihuacan. A artista retornaria ao país nos anos de I973, I974, I976, e I978 justamente pelo programa de intercâmbio e estudos de férias da Universidade de Iowa, onde era estudante.

[3] Petra Barreras del Rio; John Perreault. Ana Mendieta: A Retrospective. New York: Museum of Contemporary Art, 1988, p. 10.

[4] Carolee Schneemann, Regarding Ana Mendieta, Women & Performance: A Journal of Feminist Theory 21 no. 2, (2001), p. 11

[5] Mendieta passou a se distanciar dos rótulos do feminismo, renunciando formalmente ao seu cargo e vendendo sua participação financeira na A.I.R. galeria em 1982.

[6] Mendieta, “Introduction,” in Dialectics of Isolation: An Exhibition of Third World Women of the United States, exh. cat. (New York: A.I.R. Gallery, 1980):, p. 1

[7] https://hyperallergic.com/538535/actress-ellen-barkin-reveals-she-was-assaulted-by-carl-andre-in-the-late-70s/

[8] Robert Katz. Naked by the window. New York: Atlantic Monthly Press, 1990, p.149

[9] “Ela me fez trocar as lâmpadas dela. Ela tinha medo de altura. Ela nunca chegaria perto da janela”, confidenciou Schneeman, acrescentando como é estranho para ela que Andre ainda viva no mesmo apartamento de onde Mendieta saltou para a morte, e que sua nova esposa supostamente faça obras de arte baseadas em janelas”. Gillian Sneed, The Case of Ana Mendieta. Art in America, October 12, 2010

[10] WADLER, Joyce. A death in Art. New York Magazine, 16 December 1985, p. 43

[11] Anna C. Chave. Grave Matters: Positioning Carl Andre at Career’s End. Artjournal, winter 2014, p. 08

[12] Kat Ana Mendieta at A.I.R. Gallery, 1977–82, Women & Performance: a journal of feminist theory, 21:2, 171-181, (2011) p. 177


Bibliografia

Anna C. Chave. Grave Matters: Positioning Carl Andre at Career’s End. Artjournal, winter 2014,

Priscilla Frank. The Haunting Traces of Ana Mendieta Go On View (NSFW), Huffington Post website February 4, 2014 [Online] Visite at 09 december 2023

Jane Blocker. Where is Ana Mendieta? Identity, performativity and exile. Durham, NC: Duke University Press, 1999.

Carolee Schneemann, Regarding Ana Mendieta, Women & Performance: A Journal of Feminist Theory 21 no. 2, (2001), p. 11

Robert Katz. Naked by the window. New York: Atlantic Monthly Press, 1990.

Ana Mendieta, Kazuko Miyamoto, Zarina. Dialectics of isolation: An exhibition of Third World women artists of the United States. New York: A.I.R. Gallery, 1980.

Kat Griefen Ana Mendieta at A.I.R. Gallery, 1977–82, Women & Performance: a journal of feminist theory, 21:2, 171-181, (2011) DOI: 10.1080/0740770X.2011.607595

Luca Cerizza, The Gallerist: Kazuko Miyamoto from A.I.R. Gallery and Onetwentyeight, New York,  Art Agenda Reviews, June 8, 2015, https://www.art-agenda.com/features/237394/the-gallerist-kazuko-miyamoto-from-a-i-r-gallery-and-onetwentyeight-new-york.

Sadia Shirazi, Returning to Dialectics of Isolation: The Non-Aligned Movement, Imperial Feminism, and a Third Way, Panorama: Journal of the Association of Historians of American Art 7, no. 1 (Spring 2021), doi.org/10.24926/24716839.11426

Petra Barreras del Rio; John Perreault. Ana Mendieta: A Retrospective. New York: Museum of Contemporary Art, 1988

Gillian Sneed, The Case of Ana Mendieta. Art in America, October 12, 2010

WADLER, Joyce. A death in Art. New York Magazine, 16 December 1985


Exposições

22ª Bienal Videobrasil comemora 40 anos

Luciana Pareja Norbiato

stranger in a strange land, de Abdul Halik Azeez, 2023. Cortesia do artista.

Ao longo da história humana, a tecnologia sempre foi um índice evidente de seu desenvolvimento e avanço. Da Idade do Fogo à Idade da Pedra, descobertas e invenções foram as testemunhas dos rumos tomados pelo homem no decorrer do tempo. Passando a limpo o fim do século 20 e este começo de século atual, uma das inovações técnicas que melhor dão conta da trajetória do mundo neste período é o vídeo, neto da fotografia, filho do cinema e pai do Tik Tok, fruto da vontade de popularizar a realização de trabalhos audiovisuais e atualmente ferramenta de comunicação global em tempo real. Inicialmente festival, o Videobrasil tem o poder de sintetizar essa narrativa por sua simples existência, permanência e resistência. No formato atual, a Bienal Sesc Videobrasil abre essa semana a sua 22ª edição no Sesc 24 de Maio (em São Paulo). Com a curadoria de Raphael Fonseca e Renée Akitelek Mboya e a curadoria geral e direção de sua fundadora, Solange Farkas, o Videobrasil 40 | A memória é uma ilha de edição também comemora os 40 anos de existência do evento.

Segundo Solange Farkas, “a escolha dos curadores para trabalhar comigo também é um gesto político. Quais curadores vou escolher? Aqueles que têm experiência não só em História da Arte, mas que tenham uma visão política identificada com a minha, que olhem para o mesmo lugar no mundo, que tenham um repertório que vá além do que se estuda na escola, que tenham uma experiência de pesquisa de campo em ateliês em periferias do mundo, que tenham pelo menos essa curiosidade. Essa nova geração de curadores já traz isso. Sempre fiz questão de trabalhar com pessoas mais jovens na curadoria, pois são elas que me atualizam e me questionam. De forte cunho antirracista e utilizando arquivos e autonarrativas para estabelecer relações com o público, a obra da queniana Renée Akitelek Mboya e sua atuação como ativista foram as razões para Solange Farkas convidá-la. Raphael Fonseca estava entre os curadores adicionais da edição anterior da VB, e se destacou em sua atuação, na opinião da diretora.

Foi uma lembrança espirituosa e bastante oportuna do próprio Raphael que trouxe à baila a frase título da edição – A memória é uma ilha de edição -, cunhado pelo poeta e agitador Waly Salomão (1943 – 2003) num de seus poemas, Carta Aberta a John Ashbery. Saindo do avião entre suas idas e vindas a Denver, onde atua como curador associado de arte latino-americana moderna e contemporânea do Denver Art Museum, Raphael Fonseca teve um insight com o verso que sempre lhe chamou a atenção, baseado no fato de essa ser uma edição comemorativa. “Antes de trabalhar com artes visuais, trabalhei muito tempo em festivais de cinema, e essa é uma frase que todo mundo da área fala muito”, diz o cocurador.

53, de Sofia Borges, 2022. Cortesia da artista.

Quando contou para Solange Farkas, ela imediatamente adorou: além de ter sido amiga pessoal de Salomão, figurando inclusive em cenas de Pan-Cinema Permanente (documentário de Carlos Nader sobre a vida e a obra do escritor), contou com a presença do artista em diversas edições do VB: “Foi uma lembrança maravilhosa da parte do Raphael, pois não só reforça essa questão da trajetória do festival como também resgata o Waly, que foi recorrente como artista participante e inclusive na organização de algumas edições”. Consultada, Renée também aprovou, já engajada nas mesmas premissas do companheiro de curadoria. “Raphael e eu temos interesses muito diferentes em geral, mas me beneficiei muito de sua perspectiva, pois a verdade é que ele tem uma compreensão muito maior do contexto do Brasil e da dinâmica de fazer exposições aqui.” Eles começaram a pesquisa antes da pandemia, que acabou atrasando a realização da 22ª edição em dois anos.

Além da sinergia entre Salomão e a diretora do festival, Raphael ressalta que a frase é muito feliz em metaforizar a relação entre a edição de vídeo e a forma como a memória é constituída. “Nossa memória não é linear, não é algo dado como pronto. À medida que vamos experienciando situações, organizamos dados, momentos, imagens, da mesma forma que numa ilha de edição de vídeo”, comenta.

O título também foi a mola propulsora das mais de 2 mil inscrições recebidas. Não é de admirar que a lista de artistas tenha abrangência fortemente calcada no Sul Global, com uma boa porcentagem de nomes dos países emergentes da Ásia, de populações indígenas ao redor do mundo e de países africanos, uma vocação que o festival abraçou a partir de sua 8ª edição, em 1990, muito antes de outras instituições e eventos sazonais de arte. A comissão de pré-seleção foi composta por nomes de países cuja participação a Bienal queria amplificar.

Galb’Echaouf, de Abdessamad El Montassir, 2021. Cortesia do artista.

“O processo de seleção é uma tradição bem estabelecida no Videobrasil e acho que Solange testou muitos métodos ao longo dos anos para chegar a um sistema que atraísse tantas inscrições de uma rede tão ampla de artistas de todo o Sul Global e de redutos indígenas de todos os lugares. Além disso, outra estratégia que adotamos este ano foi o cuidado com que escolhemos a comissão de pré-seleção; uma equipe de cinco curadores adicionais cujas redes e influência tivemos o privilégio de aproveitar: Amanda Carneiro (Brasil), Ying Kwok (Hong Kong), Siddharta Perez (Filipinas), Nomaduma Rosa Masilela (EUA/ Alemanha), Ana Sophie Salazar (Portugal) e Tereza Jindrová (Tchéquia)”, explica Renée Mboya.

Junto com Fonseca e Mboya, os curadores adicionais fizeram um escrutínio atento do grande conjunto de inscritos, vindos de diferentes perspectivas, localidades e até destrezas artísticas. Com os portfólios à mão, foi possível inclusive determinar que o vídeo não era o ponto alto do trabalho de um determinado artista, mas sim uma escultura ou pintura. “Contar com esses curadores adicionais nos ajudou a ter uma visão mais ampla de cada inscrito, que muitas vezes não conhecíamos. Assim, conseguimos ter embasamento para trazer nomes emergentes de países com os quais estamos pouco familiarizados, como o sudeste asiático, por exemplo”, explica Fonseca.

Era, de Julia Baumfeld, 2023. Cortesia da artista.

Como se nota pela lista de artistas (disponível no site do Videobrasil), a pluralidade geográfica dá o tom, e não só aí a seleção é diversa. “Temos desde artistas lidando com narrativas vistas como nacionais, ‘oficiais’, pessoas lidando com macro-histórias, até pessoas que mergulham em elementos mais ficcionais, fantasiosos e inventivos. Ou seja, não se trata apenas de ‘recuperar’ narrativas, mas também de formar narrativas. Temos uma grande presença de trabalhos em animação, tanto em computação gráfica quanto stop motion, quanto temos alguns trabalhos em pintura e escultura, e outros artistas lidando com jornal, com arquivos fotográficos. Então apontamos para muitas direções, o que me interessa existencialmente e curatorialmente, como também à Renée e à Solange”, diz Raphael.

Mas como dar unidade a um grupo tão múltiplo? Alguns nomes famosos foram escolhidos a dedo para conectar distâncias temáticas, poéticas ou visuais muito abissais, como o autorretratista Samuel Fosso (Camarões), o ultrafuturista Abu Bakarr Mansaray (República de Serra Leoa), o multiartista Tirzo Martha (Curaçao) e o pintor Brook Andrew (Austrália).

Espelhando uma tendência que se verifica também na 35ª Bienal de São Paulo – Coreografias do Impossível, o Videobrasil 40 libertou sua expografia das tradicionais divisões em núcleos, sejam eles temáticos, geográficos, geracionais ou de linguagens, ao contrário das edições anteriores de ambos os eventos. É a busca por uma organicidade que permita ao público estabelecer suas próprias relações semânticas e poéticas a partir das confluências e choques entre produções distintas. Grande parte dos trabalhos está disposta na galeria do 5º andar do Sesc 24 de Maio, onde são realizadas as exposições da unidade, mas outras obras se apropriam e dialogam com a arquitetura do prédio de doze andares de concreto armado, uma readequação do antigo edifício da Mesbla pelos escritórios MMBB e Paulo Mendes da Rocha na esquina das ruas 24 de Maio e Dom José de Barros, no centro histórico da capital paulista. “Queremos que a mostra contamine e se espalhe pelos espaços, que ela crie outras relações com os espectadores”, afirma Farkas.

Heat Waves, de Kent Chan, 2021. Cortesia do artista.

Completam a edição os programas públicos organizados por Renée Mboya para ampliar o debate sobre as questões atuais trazidas pelo festival e a exibição na biblioteca do Especial 40 Anos, uma curadoria de Alessandra Bergamaschi e Eduardo de Jesus aa partir do Acervo Histórico Videobrasil, que contém os materiais audiovisuais de todas as edições do VB e cuja catalogação pode ser consultada pelo site da Associação Cultural Videobrasil, organização criada em 1991 que concentra a produção e a coleção do evento bienal.

Vigilante extended, de Vitória Cribb, 2022. Cortesia da artista.

Do tape à internet

Revisitada no núcleo documental sobre a mostra, essa trajetória impressionante foi acontecendo meio por acaso, muito pelo entusiasmo e pela dedicação de Solange Farkas a uma mídia que se transformou junto com o mundo, e ajudou igualmente a transformá-lo. Há 40 anos, quando realizou a primeira edição do evento, a diretora e fundadora do VB não fazia ideia de que ele atravessaria a história artística e política do país não só como coadjuvante, mas estimulando mudanças e evoluções em seu campo gravitacional. “Difícil há 40 anos atrás fazer uma projeção do que poderia ser 40 anos depois. Eu nem pensava muito nessa perspectiva, senão não teria nem pensado em começar”, avalia.

De negócio em família para um dos principais eventos do calendário artístico do país, com irradiação internacional, o Videobrasil foi se transformando na mesma medida em que o vídeo venceu o preconceito do meio da arte e se tornou o principal veículo de informação, produção de conteúdo e criação audiovisual tanto no mainstream quanto experimental. “No campo das artes visuais, o vídeo era considerado uma mídia inexpressiva, menor, no sentido mais pejorativo. E no campo do cinema, uma falência, porque a referência de cinema também no Brasil era a hollywoodiana, e o vídeo estava longe daquilo, era uma caricatura proposital, tentava desconstruir e mostrar outras possibilidades, outras narrativas”, explica Farkas.

Em 1983, no Brasil, o vídeo ainda era uma mídia incipiente, que teve sua primeira onda de produção nos anos 1970 por veteranos das artes visuais, como Antonio Dias, Rubens Gerchman e Anna Bella Geiger, incentivados pelo empréstimo de equipamentos principalmente pelo curador do MAC USP Walter Zanini, que também realizou o I Encontro Internacional de Video Arte de São Paulo (1978). Essa turma de artistas, no entanto, acabou voltando para seus suportes de origem.

Quebrante, de Janaina Wagner, 2023. Cortesia da artista.

Mas uma nova turma estava surgindo. “1983 é o ano em que David Cronenberg lança Videodrome, Nam June Paik faz um trabalho performático que se chama Transmissão ao Vivo entre Paris e Nova York pela Televisão, em que a TV Manchete surge e, com ela, Xuxa”, situa Raphael Fonseca. Diante desse cenário, já havia o interesse de jovens realizadores com uma pegada inovadora e iconoclasta, como o TVDO, produtora pela qual passaram Tadeu Jungle, Walter Silveira, Ney Marcondes, Paulo Priolli e Pedro Vieira, e a Olhar Eletrônico, de Fernando Meirelles, Marcelo Machado, Marcelo Tas e Renato Barbieri, entre outros. Só que até então não havia onde exibir o que eles produziam.

O fotógrafo e cineasta consagrado Thomaz Farkas (1924-2011), que na época era dono da empresa Fotoptica, começava a trazer equipamentos de vídeo para comercializar no país e viu a necessidade de abrir um canal de escoamento para esses realizadores. “Durante uma década, o que se pensava era que o lugar do vídeo era ocupar a grade da televisão brasileira, e atender o desejo perceptível de colocar a cara do povo lá, o que não existia, porque estamos falando do momento imediatamente após a ditadura militar, com um sistema de controle e de censura terrível”, comenta a diretora do Videobrasil. A supervisão pesada sobre a programação das emissoras públicas e o desinteresse das emissoras privadas relegavam o vídeo experimental ao esquecimento.

“O Thomaz Farkas, que era meu sogro, um dia me chamou: ‘vamos fazer um festival de vídeo’. Na época, eu editava a revista da Fotoptica, era jornalista pela UFBA, e tinha uma proximidade com cinema, já que meu trabalho de conclusão de curso havia sido uma grande mostra sobre o Cinema Marginal. Levei para a Bahia todos os diretores do movimento, como Rogério Sganzerla, toda turma. Ali foi o embrião do que seria o Videobrasil”, ela conta.

Depois de pesquisar nomes envolvidos com vídeo, que iam desde o artista veterano Wesley Duke Lee ao então novato Guto Lacaz, Solange Farkas confirmou a viabilidade do projeto. Os contatos do sogro junto ao diretor do MIS-SP, Ivan Negro Isola, e ao secretário de cultura do Estado de São Paulo, Jorge da Cunha Lima, além do patrocínio direto da Fotoptica, garantiram a estrutura institucional e financeira para a realização do festival. “Fiz uma pesquisa, vi que tinha essa possibilidade de fazer um evento e fizemos, sem nenhuma pretensão. A gente não tinha a menor ideia de que haveria uma segunda edição.”

Naquela época, a produção ainda era muito voltada ao videoteipe e a uma pauta temática e estética mais atrelada ao cinema e ao documental. Não surpreende que o vencedor da mostra competitiva tenha sido Caderneta de campo, uma colagem de registros documentais do Teatro Oficina. Por isso, o formato do festival era muito calcado em seus correlatos cinematográficos, como a Mostra Internacional de Cinema de São Paulo.

Mulika, de Maisha Maene, 2022. Cortesia do artista.

Mas a busca por ampliar a compreensão do papel do Brasil como produtor de cultura e como nação movia o festival. “O Videobrasil nunca operou num lugar dado, fácil. Tinham coisas que precisavam acontecer num campo mais político, talvez, uma compreensão de que as referências que estávamos buscando vinham de um lugar do mundo que não tinha nada a ver conosco culturalmente, politicamente e esteticamente, que tentávamos copiar, mas não tínhamos condições tecnológicas para tanto.”

Assim, simultaneamente à debandada das produtoras dos anos 1980 para trabalhos mais comerciais e institucionais na publicidade, o festival começou sua internacionalização paulatinamente, até que na 8ª edição, em 1990, integrou produções estrangeiras à mostra competitiva, com foco no Hemisfério Sul. “Ainda não havia esse nome Sul Global, eu comecei chamando de artistas do Hemisfério Sul, fui tateando.” Países desenvolvidos, como Inglaterra, EUA e Alemanha, estavam fora da competição, porque sua superioridade técnica impediria uma competição justa, além do interesse de Farkas por uma nova perspectiva sobre o mundo. No mesmo ano, a inauguração da MTV Brasil abria novas possibilidades estéticas para o vídeo.

“A primeira geração que foi trabalhar na MTV quase toda saiu do Videobrasil. A proximidade do festival com a MTV era óbvia, porque ela supria esse lugar de desejo de difusão do vídeo na televisão. Mas esse lugar não bastava. O vídeo queria chegar nesse lugar aberto, nessa relação com as instituições culturais brasileiras que até então, por ignorância, tinham aversão à produção em vídeo”, comenta Solange.

Em 1992, ocorreu uma mudança crucial para a continuidade e a ampliação do festival, que passou a ser realizado a cada 2 anos: a entrada do Sesc São Paulo como patrocinador do evento. “Não se pode pensar numa estrutura saudável para as artes se não houver fomento para a produção artística que pensa novos modos de arte, principalmente no caso das que usam tecnologias caras. Tenho que dar graças a Deus por essas figuras que permitiram que o festival ousasse, porque essa aposta tem custo. No grande momento de virada do VB do vídeo para o lugar mais amplo das artes, quem possibilitou isso foi o Danilo Santos de Miranda (diretor do Sesc São Paulo), que tem essa visão para o futuro, assim como Thomas Farkas lá atrás, que apostou que essa história de vídeo seria algo importante mais adiante”, declara Solange.

Ao longo da primeira década do século 21, o mercado de arte foi se abrindo para as possibilidades estéticas do vídeo, com a superpopularização de equipamentos de captação e exibição e sua assimilação pela indústria cinematográfica, sem falar no advento da internet, que derrubou barreiras geográficas e ampliou as possibilidades de fruição desse suporte. Diante desse cenário, nada mais natural que a incorporação de outras linguagens artísticas ao festival. O surgimento dos smartphones e das redes sociais explodiu as fronteiras do vídeo, que hoje está literalmente em todos os lugares a todo momento.

Mes rêves, de Maksaens Denis, 2021. Cortesia do artista.

“O vídeo tem essa capacidade de transformar, de afetar e ser afetado. Ele se fortalece no encontro com linguagens, como por exemplo, a performance, como foi historicamente. Ele se dá bem no cubo preto, mas quando sai e vai para o espaço aberto, no encontro com a arquitetura e consequentemente com outras mídias e linguagens, como a pintura, dá um salto extraordinário. Então o vídeo me ensinou a transformar a Bienal no que ela é hoje. De certa forma, o vídeo já me dizia lá atrás, mesmo quando isso ainda não estava posto, que ele ia chegar nesse lugar de potencializar as outras linguagens artísticas, de potencializar e democratizar o sistema da arte e o acesso à informação, que é o que temos hoje, e de se contaminar com as outras linguagens. Não só restrito ao sistema da arte, o vídeo hoje é nossa mediação como sociedade global.”

E se o vídeo não tem mais fronteiras e permeia todas as esferas da vida, a mostra brasileira mais importante dessa mídia só poderia trazer uma expografia porosa, em que todas as obras estão em contato sem divisões, espelhando o mundo em que vivemos e o próprio papel do artista de hoje, segundo Solange Farkas: “aquele artista contemplativo, fechado em seu ateliê, acabou. O artista hoje precisa se comunicar com outros artistas, com o mundo, com o público. Se ele fica circunscrito ao seu devaneio estético, ele está na contramão, porque hoje é preciso ter essa comunicação, essa relação”. Como o Videobrasil 40, conectado a seu tempo e a sua memória. ///

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22ª Bienal Sesc_Videobrasil | Especial 40 Anos, A Memória é uma Ilha de Edição, de 18 de outubro de 2023 a 25 de fevereiro de 2024 no Sesc 24 de Maio, em São Paulo. Mais informações aqui.

Luciana Pareja Norbiato (1978) é artista, designer artesanal e jornalista. Foi repórter e subeditora de veículos como Folha de S. Paulo e revista seLecT (2013-2017), e assessora de imprensa do Itaú Cultural, 28ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, MAM-SP e da 33ª Bienal de São Paulo – Afinidades Afetivas, entre outros.




Exposições

O seu reflexo na água: narrativas de gênero no fotolivro

Masina Pinheiro

Matthew Leifheit, To Die Alive, 2022 (Damiani Books)

A exposição o seu reflexo na água, que abre amanhã em São Paulo na terceira edição da IMAGINÁRIA_festa do fotolivro, festival idealizado pela Lovely House Editora, traz mais de 40 fotolivros, zines e outras publicações com o tema da desobediência de gênero, infância LGBTQIAPN+ e outras dissidências que permeiam identidades não-normativas e historicamente marginalizadas. Talvez você se veja nela: turva, indefinida, fraturada. Mas é assim na água. O artista e amigo André Penteado diz que ama a habilidade da fotografia de contar histórias através da superfície do mundo. Essa superfície ilimitada se comunica nas variações de suas formas. Reunir a produção de uma comunidade tão ampla quanto essa é o tempo todo querer desestabilizar um único modo de fotografar.

Mais de 4 bilhões de anos

Vou contar rapidamente uma história que tem mais de 4 bilhões de anos. Em uma noite, no verão, durante o festival de Arles, caminho até uma mesa lotada de artistas. Olho as taças vazias. Ouço o falatório vibrante, mas não falo francês. As pessoas comemoram a publicação de um fotolivro: Desiderea Nuncia, de SMITH, Lucien Raphmaj e Diplomates. Temos uma amiga em comum, Oleñka Carrasco, fotógrafa venezuelana. Ela se aproxima de SMITH e nos apresenta. Logo depois dos abraços, SMITH estende o braço à minha frente. Mostra, com um ar intrigante, um calombo embaixo da pele do antebraço. Um volume. Um caroço. Toco o caroço, que mexe dentro dele. Ele diz que é um pedaço de meteorito. Fico estarrecide. Diz que implantou um meteorito como parte da sua performance / pesquisa fotográfica. Na minha bolsa, naquela hora, por coincidência, tenho um livro de fotografia publicado pela editora THE EYES chamado Transgalática, que SMITH e Nadège Piton haviam realizado a curadoria. Uma seleção de artistas trans de algumas partes do mundo, com textos relacionados, uma entrevista com Paul B. Preciado, com Élisabeth Lebovici. É um livro maravilhoso.

O braço de SMITH e a idade daquele meteorito, mais de 4 bilhões de anos, ficaram na minha cabeça. Como pode um corpo transmasculino engolir a idade da Terra? O que ele traz para o trabalho sobre a própria transgeneridade (mas que também não é só sobre isso) me faz lembrar da Juliana Huxtable, as suas metamorfoses, uma terra especulativa povoada por humanas-morcegas, pessoas bovinas e bezerros arrebatados. O fotolivro de SMITH venceu o prêmio do festival daquele ano. Ele compõe uma resposta aos corpos perdidos. Produz uma arte corporal. Fotografa, muitas vezes, com câmeras termosensíveis. Faz um cruzamento entre estar em contínuo movimento e ter uma identidade em movimento contínuo, como a água, sempre com a mesma essência. No fotolivro, leio: “saberes que nasceram desde o nascimento do desejo”, e sou levade a pensar em um corpo que contém o pedaço de uma paisagem noturna.

Para falar de gênero, es fotógrafes expandiram o gênero além do concebível pelo mundo cishetero. E, como muitas vezes o gênero está no corpo, levaram o corpo ao limite. Para falar de limites, mostraram o corpo em fotografias extremas (se é que existem). Catherine Opie escarifica a palavra “Pervert” no peito. Para nós, espectadores e artistes, dedicam a vertigem, a dor suportada (e o prazer), o beijo, olham-nos através da lente por cima de todas as mazelas da coletividade, a má-fé, a perversão, a baixeza. Olham com o amor viado, com o amor que parece amor, com o amor que não parece amor, com tudo. Mostram o gênero sobre a mesa, um binder pendurado no cabide, uma ampola de T nas mãos. Mostram o gênero em cima da cama. A fotografia de gênero é política e, portanto, houve, historicamente, uma tendência a provocações. A fotografia de uma sapatão lambendo o mamilo de uma outra mulher em uma ponte (Jill Posener), fotos em lugares públicos, cruising, a interferência em outdoors publicitários e em paredes de estações de metrô. A vandalização prazerosa que muites artistes fazem na casa da própria família (suas casas?). O banheiro público masculino e feminino. A nossa bexiga. O mijo. Dentro da sigla, as muitas interseccionalidades de raça e classe produzem correntes autobiogeográficas (como diz o artista Washington da Selva) e criam ramificações de gêneros sem fim.

Ponto de encontro

Gabz 404, Queda livre e um segredo, 2023

Foi Gabz 404 quem me colocou na água. O seu trabalho sugere que estou em movimento de transição, mesmo quando sinto que não tenho corpo (questões e questões). Este zine, mole nas mãos e muito bem impresso, começa com a foto da lateral da sua cabeça, um coração partido que gera picos e pausas com seu eletrocardiograma desenhado no couro cabeludo (máquina 2, 1, 0, feito pelas mãos do barbeiro e poeta slammer Chrix, @pretochrix / @tapadotopher).

Páginas vermelhas com letras brancas remontam trechos do seu diário sobre transição. Meus olhos correm as páginas antes de ler as frases. Algumas palavras saltam: “testosterona – plutão – voltas e voltas – respirar fundo”. Recolho as palavras lidas e demoro para voltar ao início do texto. Escalo essas frases como em um jogo. Elas são plataformas quebradas e às vezes chego nos fins errados. Sei que essa é a proposta. Estou de acordo com elas, algumas me revelam, é isso que dói. Saber que não sentimos essas coisas sozinhes é resultado de um exercício de vulnerabilização muito generoso na arte dissidente (e em certa medida, terrível). Entre o “ser do mundo” e o “não pertencer” você traçou um trampolim para quando eu caísse. Misturar fotografia com palavras foi um acerto pensado nos mínimos detalhes. Não é fácil impedir que as palavras interfiram no sequenciamento das imagens.

Queda livre e um segredo são autorretratos e registros do espaço doméstico onde objeto, corpo e palavra se fundem. Segundo Gabz, não é sobre um processo sem volta, aquilo (o corpo; a queda) que não se pode parar, tampouco sobre uma meta engessada, um destino final, mas sobre perceber a não linearidade dos processos. Isso está claro na edição.

Em uma entrevista, Taous Dahmani (curadora e pesquisadora de fotografia, de origem franco-argelina) cita duas frases ilógicas que amo.

Ela diz, primeiro: “À medida que tento me tornar outro tipo de escritora, estou me tornando outro tipo de leitora: Tentando encontrar o caminho para uma estratégia corporificada de narração que existe no ponto de encontro entre intestino (biografia) e cérebro (história/teoria).” A frase está presa no meu imaginário toda vez que analiso meus próprios trabalhos. O ponto de encontro entre biografia-intestino e história-cérebro é mais ou menos os pulmões. Uma ficçãofagia. Posso entender isso de inúmeras formas: a história que penso viver e a história que estou digerindo (docuficção) é a nossa única forma de autenticidade.

A segunda frase é uma citação: “Em How to Suppress Women’s Writing (Como suprimir a escrita das mulheres), de 1983, Johanna Russ escreve: ‘Embora repleta de fatos e referências, [a escrita das mulheres] tem o estilo errado. É pessoal e soa pouco erudito, uma acusação muitas vezes feita à escrita feminista moderna. Ou seja, o tom não é impessoal, distante e seco o suficiente – em suma, não patriarcal o suficiente – para produzir crença.'” A produção fotográfica LGBTQIAPN+ é quase sempre uma voz autoconsciente. Um eu. O deleite da autobiografia. Mas não somos críveis.

Instituem-se leis em inúmeros países contra a nossa fotografia. Todas as leis para nos colocar em terceira pessoa, para dizer que não existe família fora do molde hegemônico e tradicional. Fotografar uma família composta por identidades fora da norma de gênero é uma reivindicação dolorosa (e linda). Achamos que nosso autorretrato é uma realidade irrefutável. Mas, o tempo inteiro, refutam nosso rosto (em exposições e publicações). Temos uma história refutável. Vão nos censurar para vencer o argumento: vocês não estão aqui. A nossa fotografia não prova nada. A imagem não nos salva. Mas a imagem provoca. Provoca os sentidos do ódio mesmo quando não se pretende (venham ver). O nosso afeto, muito presente na exposição, é lido, por alguns, como perversão. Vão dizer que o nosso afeto é exibido para corromper as infâncias.

Ainda ouso dizer que esses fotolivros são sobre a infância. E o mundo tem medo do corpo (e do pulmão) da infância. A poeta Claudia Rodriguez, ativista travesti, escreve: “Fomos rejeitadas porque o corpo é sagrado e com ele não se brinca”. Se a infância não pode brincar com o corpo, brincará com o quê? Mario Quintana, em uma poesia de duas linhas, também diz: “as crianças não brincam de brincar, brincam de verdade”. O experimento com o corpo é o início do gênero e a produção identitária de algo real. Temos D’Angelo Lovell Willams, com seu livro Contact High, posando junto da família, dos amigos e dos amantes. Ile se abaixa para mostrar na câmera uma mancha de sangue na cueca. Jocosamente. Ile, com o pai, compete em uma queda de braço. Os dois, sem camisa, se encaram no quintal de casa. Seus braços, no entanto, não parecem fazer força. Eles só se encaram com os cotovelos na mesa. A masculinidade do pai cis hetero e a masculinidade de uma pessoa trans não-binária medem força na fotografia. A foto se chama Daddy issues (Questões paternas). Outras coisas estão em curso.

Forma simples

Alguns dos fotolivros dessa exposição foram lançados junto a confissões. D’Angelo Lovell Williams abriu para o mundo o seu diagnóstico de HIV positivo no lançamento deste corpo de trabalho, cujo tema é uma exploração lúdica do amor, do estar vive, e do teatro contido nos laços de parentesco.

“Nas imagens”, ile diz, “eu pretendo perfurar o reino da autoconsciência, criando um espaço onde os espíritos dos corpos negros possam viver livremente em seus encontros uns com os outros”. Algumas imagens são uma metáfora sobre ser viste, puxar alguém para o desconhecido, entrar em uma intimidade e privacidade intensas. Efetivamente, esses são motivos também muito sérios para a comunidade NB, queer e outras tantas que se entrecruzam aqui. Para o espírito dos corpos negros.

André Penteado, de novo, me ensina a ler primeiro as fotografias com descrições objetivas. A forma mais simples de olhar uma página. Mas sempre que começo a olhar de forma simples, vejo alguma coisa que me contamina com interpretações, como se eu não precisasse mais da foto.

Essa letra T maiúscula de cabeça pra baixo (que só no português é tesão, eu acho) olha para a lente como se perguntasse alguma coisa. A bermuda jeans presa no alto das pernas, a bota que ile não tira, a toalha ciano sobre o lençol. Não sabemos a pergunta que o olhar faz. O que mais amo na fotografia é que as perguntas são de olhar e não de ouvir. Então não preciso responder. Fico quiete. Com a pergunta na mão, escolhemos ficar ou passar a página.

“Uma ruína para a palavra amor”

Há alguns anos (vasculhei nossa conversa mas não encontrei a data exata), recebi do Lucas Gibson, fotógrafo e pesquisador da fotografia japonesa, uma mensagem com o link do trabalho da Momo Okabe. Era um vídeo com as páginas de seu fotolivro Bible. Uma porrada. Todas as imagens sangradas. Cores vívidas e distópicas. Cicatrizes de mastectomias, olheiras, escombros, dildos: alguém muito viva.

O volume esmagador, dentro da fotografia sobre gênero, da linguagem do retrato é mais do que compreensível. A presença do corpo em discursos sobre identidade é quase dominante. É possível falar de gênero sem o corpo? Ler o gênero no mundo? Em objetos, cidades, sentimentos. O mundo não é cis, foi erguido por esse credo, mas ele não é nada. E olhar para o mundo como espelho, estar inserido no espelho quando se conta uma história, é admitir que a arquitetura, a cama de casal, a sala de casa, as calçadas, todas as coisas, são veículos perfeitamente corruptíveis. Temos que redirecionar o mundo. Sinto um amor enorme por um dos trabalhos do artista Jonathas de Andrade, o 2 em 1, no qual dois marceneiros (vestidos com o mesmo uniforme, quase com as mesmas medidas: homos) transformam duas camas de solteiro (iguais, também homos) em uma cama de casal. E assim, a imagem dos dois relógios do artista cubano Félix González-Torres, que me fascinam, se repetem na história homoafetiva.

No fotolivro Ilmatar, de Momo Okabe (presente na exposição), as pessoas estão ao lado de ruínas, de estrados de madeira, de elementos da destruição e da reforma, de tubarões enferrujados, que aludem ao acidente da vida, a noção de que seus modelos podem se erguer e podem se demolir.

Lucas Gibson escreve sobre Ilmatar: “Okabe reúne imagens produzidas entre 2014 e 2019, dando especial enfoque à documentação de sua gestação e o nascimento de sua filha, concebida a partir de fertilização in vitro. Ilmatar, na mitologia finlandesa, é o nome da deusa virgem do ar e da criação, que acaba por engravidar a partir do contato com as águas. A escolha da entidade para nomear a obra se conecta com os desejos de Okabe de afirmar sua assexualidade e seu processo de gravidez, que se concretiza sem uma penetração sexual, ressaltando também seu olhar questionador de gênero: ‘às vezes me sinto como um homem, às vezes como uma mulher, e usei meu útero como ferramenta para dar à luz.'”

Isso me leva ao título da exposição.

Kaetérine Terra, Baby vem dormir comigo, 2023

Água-viva

“Aparência em mudança infinita e uma aparência constante sem fim”, diz a artista Roni Horn sobre a água. O título da exposição foi retirado do trabalho dessa artista. Em uma leitura feita por ela, um texto chamado Saying water (Falando água), ouvimos sobre a inquietação dos rios, o fascínio pelo desconhecido despertado por eles. É muito comum encontrar o elemento água no trabalho de pessoas dissidentes de gênero. Aprendi isso em uma entrevista com o fotógrafo Matthew Leifheit.

Roni fala sobre a sensação de não estar mais aqui. De desaparecer. Quando se imagina um rio quase totalmente opaco e temos vontade de entrar, devagar, na indefinição, com o nosso inconsciente desejando e temendo esse desmembramento. Às vezes, é possível enxergar um pouco através da superfície, alguns centímetros adentro. Temos a impressão de que no fundo a água é ocupada por algo que não é água. Somos atraídes por essa sensação, por essa outra água. “Quando você diz água, o que você quer dizer? Quando você vê o seu reflexo na água, você reconhece a água em você?” A água te provoca com a própria ambiguidade.

Sombra, deslocamento e profecia

Nas aulas, costumo falar sobre a memória da ilegalidade, algo que vem desde a infância e que nos faz intuir o custo de aparecer em público. O custo de estar na luz do sol. O custo de aparecer em casa, para a família, diante das nossas mães e pais, da escola, da internet, em qualquer lugar. Marlene Wayar fala sobre a diáspora LGBTQIAPN+, a busca de um lugar no mundo e de uma coletividade. É possível ter que sair de todos esses lugares, expulsas ou em fuga voluntária, do virtual ao real, do privado ao público, até poder se encontrar. Conhecemos a linguagem do apagamento e ela se reflete em nossos arquivos. Em um certo sentido, tudo isso se incrusta na nossa experiência de olhar. Perguntamos intimamente: ela pode mostrar o rosto?; eles estão fingindo ser amigos?; a família sabe quem ela é? A luz e a sombra no retrato dissidente de gênero correspondem a uma escala social.

Ahlam Shibli (com matéria publicada na ZUM #18), fotógrafa palestina que retratou, entre 2004 e 2006, pessoas LGBTIAPN+ oriundas do Paquistão, do Líbano, da Turquia, da Somália e da própria Palestina, autoexiladas de suas terras natais para poderem habitar o próprio corpo, está tão próxima das fotos, tão fundo nas fotos, que parece nos dar uma nova vida. John Berger diz sobre ela,”existem fotógrafos que são grandes contadores de histórias […] Ahlam Shibli, eu diria, é uma adivinha. Ela observa atentamente, lendo os sinais, adivinhando e oferecendo sua profecia, que, como a de uma cartomante, é ao mesmo tempo clara e obscura, apresentando as probabilidades como cartas de um jogo, sem escolher nenhuma”.

Há quem edite as fotografias com narrativas mais ou menos lineares, como Matthew Leifheit em To die alive (presente na exposição), que faz uso até de capítulos para demarcar a história. Há quem prefira cartas sobre a mesa, meticulosamente forjadas como à sorte, como Ahlam. Para sermos adivinhas de todos os mais de 40 fotolivros na exposição, é bom reaprender edição, lugar e sombra.

Vulgaridade

“Meu trabalho é a ação de parar”, ele diz. “Conexão, saudade, memória e masculinidade.”. Ele é um “estrategista da ternura”. Nada nunca parece forçado.

Cresci tentando separar os sentidos das palavras vulgar e repugnante. A depravação, cerne da palavra vulgar, eu fantasio, pode me acusar, não te ouço. Mas a repugnância não. No fotolivro Orange Grove, Clifford Prince King encena momentos de felicidade doméstica com corpos serenos. Mostra a rotina de viver com HIV, que é invisível, evocando uma história potencial para reparar os afetos em todas as suas variações.

Na imagem escolhida como capa, envolta em um tecido púrpura, assistimos uma ação fora de quadro protagonizada por duas pessoas. Quatro pernas emaranhadas em cima de um colchão. São pés de homens negros, entrelaçados embaixo de um retrato de Martin Luther King, que nos olha docemente, preso à parede como um pôster em quarto de adolescente. O M. L. King está torto, como se o casal tivesse esbarrado sem querer. No alto da imagem, vemos o desenho de um homem negro e uma uva. Essa uva voltará em outra fotografia importante do livro. Orange Grove mostra o pós-sexo com diferentes amantes, a ternura entre amigos, o convívio sem roupa e sem a hipersexualização do outro. Não há outro entre eles.

“Eu os invento como vocês são”, a frase (que amo) de Robert Bresson sobre o cinematógrafo (cineasta, como ele chamava) agora vira: eu me invento como eu sou.

Masina Pinheiro, Tornaras, 2018 (Chorona)

Os diários de Lyle Ashton Harris são cheios de vulgaridade (não quero ter mais medo dessa palavra). Quando comecei a fotografar, com a série Tornaras (2018), disseram que eu era obscene. Realmente, talvez eu seja. Meu amor pela fotografia explícita se dá pelo motivo de, muitas vezes, só ela poder ensinar o que o sexo realmente é (ou o que ele pode ser) para pessoas sobreviventes de violências sexuais. O explícito é um guia de retorno. O sexo é a arma favorita do mundo. Dentro dessa sigla tão abrangente, LGBTIAPN+, essa arma deturpada de correção nos persegue com imagens de violação. Ver o prazer do toque, o consentimento, os corpos respirando devagar, é poderoso. O fotógrafo Alvin Baltrop, com o seu livro The Piers (também presente na exposição), desenha outro tipo de cenário para os encontros casuais.

Evan Benally Atwood, Cowboy Juice, 2019

No pôr-do-sol, agachade em terras ancestrais de Chinook, Cowlitz, Evan Benally Atwood, fotógrafe indígena nádleehí (pessoa de corpo masculino afeminado) Diné e não-binárie, veste-se de cowboy com a calça recortada, adaptada de modo a parecer uma indumentária queer, com profanação, restituição e beleza. A série se chama Cowboy Juice, e é de 2019.

Em entrevista concedida ao fotógrafo e escritor Will Matsuda na revista Aperture, Evan diz: “Os Diné têm cinco gêneros, e os têm desde antes da colonização. O binário de gênero foi empurrado para nós. Em muitas culturas indígenas, o gênero é psicoespiritual e não fisiológico”.

Régis Amora, Atlas Drag, 2021 (LP Press)

Legado

Há um legado para cada letra da sigla. Há o legado da ferida, o que faz com que, dessa maneira, a experiência de entrar em um banheiro público (ou fotografar um banheiro), nos una. Estar diante de duas portas de banheiro sem poder entrar em nenhuma, e entrar, é um legado. Há o legado que documenta e há o legado que comunica.

Pensei em incluir Alair Gomes na exposição, misturá-lo às novas formas de sobreviver ao corpo do outro. De admirar em sujeição. De estar aos pés de um corpo. Alair foi para mim, enquanto eu crescia, tudo o que eu não queria ser, ou o que eu não achasse que pudesse ser. Ele quis o que eu não queria. Com os anos, percebi que eu, de uma outra forma, em outra instância, me coloquei aos pés de outras realidades inalcançáveis (aproximadas pela homenagem da fotografia). Ele olhava o corpo musculoso, magro, jovem, hétero, gay, cis, os volumes marcados na sunga entre as cavidades das sombras, via os seus diários eróticos ganharem personagens, e dentro das hierarquias coloniais de beleza, ele era o narciso daquilo que não tinha mais de 40 anos e parecia querer ser amado. Havia uma desidentificação. Confesso que demorei a entender o erotismo gay e a válvula de escape que isso proporciona. Ao mesmo tempo que é uma ode (desproporcional) à ideia de beleza, é um esgotamento (proporcional) daquilo que não pôde ser vivido.

Marlene Wayar, ativista travesti argentina, fala sobre Judy Garland em uma palestra na Universidad Nacional de General Sarmiento. As lágrimas embargam sua voz. Ela diz mais ou menos o seguinte: ao contrário de outras figuras como Marilyn Monroe, Barbara Streisand e outros epítomes da perfeição colonial, Judy era uma criança. Una niña. Dorothy foi espelho para uma comunidade sem infância com amigos inexistentes: um homem de lata, um leão e um espantalho (a não ser por um cachorro que era real). Com eles, falava de um arco íris.

A Fudida silk, coletivo formado por travestis cariocas, estampa camisas (e outras superfícies) com o retrato da Lacraia, da La Veneno, da Erica Malunguinho, da Linn da Quebrada e de outras expoentes. Vendem em feiras do Rio de Janeiro, fazem oficinas de serigrafia e reproduzem fotos de ícones trans e travestis como método de enaltecimento.

Agora, só mais uma anedota sem solução: uma amiga íntima da artista Greer Lankton, a também artista Van Barnes, diz que talvez Nan Goldin tenha documentado o seu tempo, enquanto Greer, sem dizer que isso tenha sido superior ou não, tenha comunicado. Parece superior. Comunicar soa relativamente mais importante. Penso sobre essas palavras, sem impasses entre as artistas. Nan Goldin e Greer Lankton eram amigas íntimas. Greer posou para Nan diversas vezes. Não sei o que posso dizer sobre esse caso específico sem solução. Greer deixava que outras pessoas se encontrassem através dela (a fotografassem), em um acordo de partilha amorosa. Não acredito que a amiga de Greer tenha sabido explicar a razão do próprio comentário. Acho que documentar o próprio círculo de amigos e a si mesma tem um valor cândido, quase justo, horizontal. Minha teoria, fraca, é: talvez a interdisciplinaridade seja o único caminho para comunicar o nosso tempo. A fotografia sozinha, pensada enquanto método de documentação, ao invés de uma imagem que exige saber, espaço e som, está destinada ao catálogo e a alguma insuficiência. Fui um pouco dure, me excedi, não posso concordar plenamente comigo, mas tenho tentado entender o valor do documento feito por um olhar totalmente distante e não consigo plenamente.

Legado LGBTIAPN+: infâncias que procuram infâncias felizes. Infâncias de gerações passadas, que procuram infâncias para terem sido felizes. Legado será ter uma infância livre para entregar uma realização às gerações passadas.

Zanele Muholi, Somnyama Ngonyama: Hail The Dark Lioness, 2019 (Aperture)

Muholi, em Somnyama Ngonyama: Hail The Dark Lioness (presente na exposição), cobre a cabeça com círculos de bombril e dedica o retrato à memória de como sua mãe poderia ter se parecido na sua idade, em seu imaginário. Bester, título da foto e nome de sua mãe, trabalhou como empregada doméstica. Há poesias escritas para ela. O olhar absolutamente ferrenho que atravessa até nós, pergunta ou afirma.

A fotografia-legado olha para trás, para quem não emergiu como nós. É visionária assim.

No exercício de se colocar na cidade natal, após o seu retorno, o fotógrafo Ian Lewandowski, no fotolivro My Man Mitch, intercala cenas das fábricas de aço do estado de Indiana, fotografias vernaculares da masculinidade local, e cenas do seu corpo, do corpo de seu marido e da fuligem. Ele entra em choque com o passado ou subverte o passado para poder voltar íntegro.

Curadoria e conclusão

De fato, realizar uma curadoria com fotógrafes que pensam o gênero não é articular uma fala sobre a história do gênero. É contar a história do mundo. E qualquer demarcação pretendida entre os nomes selecionados para a exposição, é falha e pequena. Mesmo que falemos sobre o mundo, falta mundo ainda. Estes livros são, na maioria, os que entraram na minha casa, fisicamente. Os que pude segurar. Mas outros, os que não conseguimos trazer, são as minhas maiores ambições. Há artistas que, por posarem, revelam no corpo uma primeira impressão de tema: a pele, o brinco, a renda, o jeito. Mas há peles e brincos que não querem pensar sobre gênero. Ter que criar uma mostra focada nessa dissidência é um aprisionamento, apesar de ser uma felicidade. A última proposta que tenho é que vocês segurem os livros (com cuidado, alguns têm dedicatórias) e não pensem também.

Tudo que quero é não ter que sentir o seu pensamento.

Entre os mais de 40 nomes da exposição, estão: John Edmonds, Sakiko Nomura, Claudia Pía Budracco, Ren Hang, Gabz 404, Zanele Muholi, Matthew Leifheit, fe AVILA, Adelaide Ivánova, Jordan Weitzman,  Kaetérine Terra, JEB, Gui Mohallem, Marília Oliveira, Alair Gomes, Clifford Prince King, D’Angelo Lovell Williams, Marvel Harris, Maurício Igor, Momo Okabe, SMITH, Rafaelly de La Conga Rosa, Giovane Ferreira, Mapplethorpe, Régis Amora, Alvin Baltrop, Fábio Lamounier e Rodrigo Ladeira, Tillmans, Igor Furtado, Erick Rhein, João Penoni, etc. ///

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A IMAGINÁRIA_’03 acontece de 16 a 20 de agosto de 2023 das 14h às 19h, no Edifício Vera, à rua Álvares Penteado, 87, São Paulo

A exposição o seu reflexo na água será sediada pelo Vórtice Cultural, localizado no 7º andar.

No dia 17/08, às 16h, a IMAGINÁRIA realizará uma conversa com curadore e artistas, seguida de visita guiada.

Masina Pinheiro (1987) é artista visual nascide e criade em Vila da Penha, no Rio de Janeiro. Utiliza diferentes suportes em seus trabalhos, como fotografia, filme-ensaio, escultura, arte-educação e literatura. Sua série intitulada GH, Gal e Hiroshima, colaboração com a artista Gal Cipreste, foi uma das 10 finalistas ao prêmio Louis Roederer Discovery Award no Les Rencontres d’Arles 2022 e indicada ao prêmio principal do Gomma Grant. Venceu o primeiro lugar no Photo Prix Aliança Francesa e integrou a publicação The Eyes, [After]care, com curadoria de Laia Abril. Em 2021, ganhou o primeiro lugar no PhMuseum Photography Grant.


Exposições

O lado humano da guerra

Erika Zerwes & Yan Boechat

Atirador de elite das Forças Armadas iraquianas dispara contra soldados do Estado Islâmico, ao sul de Mossul, de Yan Boechat, Mossul, Iraque, dezembro de 2016.

Esse final de semana abre na cidade de Campinas, interior de São Paulo, uma exposição dedicada ao premiado fotógrafo brasileiro Yan Boechat. Há mais de 20 anos testemunhando conflitos armados, desastres ambientais, desigualdade e violência, em países como a Síria, Iraque, Afeganistão, Palestina, Ucrânia, Congo, Angola, Tunísia, Venezuela, Nepal, Etiópia e Brasil, a mostra destaca imagens de Boechat realizadas na cobertura de conflitos recentes no Iraque, Síria, Etiópia e Ucrânia.

Boechat iniciou sua carreira como repórter de texto. A fotografia era uma paixão e ganhou protagonismo mais tarde quando, cerca de uma década atrás, decidiu sair das redações tradicionais e fazer matérias por conta própria. Segundo ele, a ‘colunização do jornalismo’ tirou o foco – e o dinheiro – da produção de informação primária em favor da secundária. Ou seja, se investe atualmente mais em comentaristas do que em repórteres e correspondentes. Para contornar esse cenário um tanto adverso, Boechat começou a oferecer fotografias, e mais tarde também vídeos, junto com suas reportagens.

Corpo de combatente do Estado Islâmico em rua de Mossul, de Yan Boechat, Mossul, Iraque, novembro de 2016.

As guerras de Yan Boechat

É atribuída a Robert Capa, um dos mais conhecidos fotógrafos de guerra do século 20, uma famosa frase que resumiria, para ele, o seu ofício: se uma fotografia não é boa o suficiente, é porque o fotógrafo não estava perto o suficiente. Essa frase pressupõe muitos dos elementos que constituíram a ideia que fazemos hoje de um fotógrafo de guerra: que ele (geralmente sujeito masculino) é não só destemido, mas comprometido com o que reporta a ponto de voluntariamente arriscar sua segurança para obter a foto.

Mas poderíamos nos perguntar perto de quê esse fotógrafo tem que estar? A resposta óbvia é: perto da ação. Mas o questionamento persiste, qual ou quais ações constituem o evento guerra? Seria o tiro ou o lançamento da bomba? O general que assina a ordem de dar o tiro ou de lançar a bomba? O lugar ou corpo que recebe o tiro ou o que é destruído pela bomba? Ou seja: o que qualifica uma fotografia como ‘fotografia de guerra? Em nosso mundo imerso em imagens, essa pergunta parece ainda pertinente.

É inegável que Yan Boechat está sempre perto de alguma ação. Suas imagens, por vezes, realmente mostram o momento em que o tiro sai do armamento ou o momento em que a bomba explode (como em Mossul, no Iraque – na foto acima). No entanto, mais do que isso, podemos ver no trabalho de Boechat um alargamento da noção de ‘guerra’, que inclui principalmente o aspecto humano das pessoas comuns que sofrem em cada momento de suas vidas os efeitos dos diferentes conflitos. Seja com as histórias pessoais de alguns voluntários brasileiros que ele encontrou lutando na Ucrânia em 2015, numa guerra que continua até hoje; seja com as crianças em Mossul, que são forçadas a conviver com um conflito também prolongado, e que por vezes o reproduzem em suas brincadeiras; seja nas histórias dos que perderam tudo e se viram forçados a abandonar suas vidas e recomeçar em campos de refugiados, como os tigrinos fugidos do conflito na Etiópia. Segundo ele, esta é “a verdadeira face da guerra”, a população destes lugares em conflito, os seus feridos.

Ainda hoje, grande parte do fotojornalismo comprometido mantem certos pressupostos da fotografia produzida na década de 1930, que se desenvolveu e internacionalizou após a Segunda Guerra Mundial – e que tem alguns de seus maiores representantes fotojornalistas congregados na agência Magnum. Pensada a partir da escala humana, esta fotografia singularizou indivíduos anônimos, fazendo assim uma contraposição destes homens e mulheres à sociedade estruturada em massas e também uma apologia da tecnologia. Os grandes atores – generais, políticos e armamentos sofisticados – são visíveis apenas por meio da destruição que promoveram. Ao mesmo tempo, são tais indivíduos anônimos que fornecem um rosto para a guerra, na figura do refugiado, do desabrigado, do ferido, do órfão, dos que precisam conviver com os efeitos da guerra a todo momento de suas vidas.

Quando apontei para Boechat a proximidade da visão dele com esta fotografia de valores humanistas, o fotógrafo assentiu, mas com reservas. Para ele, o que mais fascina e empolga no fotojornalismo é a capacidade de rascunhar a história, de ser um observador privilegiado da história, e não tentar buscar justiça. Para ele “é impossível encontrar justiça na guerra. A guerra não é o lugar de procurar justiça, ou de denunciar as atrocidades de um lado ou de outro”. Ele continua: “Claro, a gente precisa denunciar, mas a gente sempre está de uma lado, é sempre influenciado por um lado, e sempre usado como instrumento de propaganda de um lado. Por isso é difícil se arvorar em busca de justiça, porque o outro lado também sofre. Eu tendo a enxergar os atores quase todos como vítimas, e procuro ter empatia com todos eles, inclusive com os soldados que estão atirando, com o outro lado. Porque a tendência nesse processo todo é desumanizar o outro, essa é a ideia da guerra, essa é a narrativa da guerra.”

Ele usa como exemplo a Ucrânia. “A imprensa tem comprado essa narrativa, essa propaganda ucraniana que é desumanizar os russos. E a gente, quando está lá, precisa tomar muito cuidado para não abraçar essas ideias. Porque elas são fáceis de serem abraçadas quando você vê uma mulher sem uma perna, uma criança com a cabeça estourada. Se a gente não entender que essa é a natureza da guerra, a gente tende a aceitar a ideia de que o outro lado não é humano, de que o outro lado é o mal, porque essa é a maneira que você conta uma guerra: é o bem contra o mal, uma visão maniqueísta de mundo muito profunda. E as vezes eu vejo colegas abraçando essas ideias de uma forma pouco crítica. E no caso da guerra da Ucrânia é muito fácil abraçar essa ideia porque ela é uma ideia hegemônica no Ocidente – uma ideia hegemônica inclusive para os veículos que estão pagando para você estar lá. É difícil.”

Soldados inspecionam tanque russo destruído na província de Kherson, de Yan Boechat, Kherson, Ucrânia, fevereiro de 2023.

Os perpetradores e as vítimas

É interessante então ver nas fotos de Boechat a presença de perpetradores como vítimas humanitárias, como em um campo de refugiados no norte da Síria, controlado por curdos, que recebeu mulheres e crianças fugidas dos últimos enclaves do Estado Islâmico naquele país. Muitas dessas refugiadas são treinadas em combate e fervorosas adeptas da ideologia do grupo extremista. Mas, mesmo assim, na reportagem de Boechat os curdos que gerenciam o campo pedem ajuda internacional para manter um mínimo de dignidade na vida destes refugiados – do contrário eles afirmam que as crianças de lá vão crescer e perpetuar o conflito.

O fotógrafo faz nesse ponto uma observação sobre a própria noção de perpetrador, ligada ao Estado Islâmico. Relembrando uma fotografia que se tornou muito famosa de um menino com o rosto transtornado, coberto de poeira e sentado em uma ambulância em Aleppo, que levantou a indignação mundial contra o regime sírio por bombardear a população civil, Boechat ressalta que essa população era de, ou estava, em território controlado pelo Estado Islâmico. Era portanto uma população semelhante à de Mossul, que foi dizimada por bombardeios norte-americanos e britânicos, no entanto sem levantar indignação nenhuma. Ou seja, as noções de perpetrador e de vítima também são sujeitas à propaganda e aos pontos de vista maleáveis da guerra.

Com sua câmera, Boechat constrói centenas de micro-histórias. São pequenos arquivos dos dramas humanos que podem ser unidos e recombinados (como no caso da Ucrânia, para onde o fotógrafo retornou em diversos momentos desde do início dos anos 2000, por vezes reencontrando as mesmas pessoas depois de anos) para montar uma narrativa multifacetada. Esse foco nos indivíduos anônimos e suas histórias remete à fotografia de valores humanistas, o exato oposto da guerra dos grandes equipamentos bélicos, das grandes personalidades, e dos negócios (como deixou escapar o líder militar cossaco entrevistado em 2015 na Ucrânia, ao admitir que “essa guerra ainda vai durar ao menos três anos, você sabe, houve muito investimento e é preciso esperar para que o lucro retorne aos investidores”).

E as fotografias realmente revelam que essas centenas de pessoas querem se mostrar e contar suas histórias. Penso especificamente em dois casos diferentes. Um homem que, apesar de cobrir o rosto com suas mãos, ainda assim posa para Boechat em uma Mossul destruída. E um homem tigrino fotografado de perfil, mostrando uma enorme cicatriz que cobre todo o lado de sua cabeça e corta a parte de cima de sua orelha. Esse homem claramente posou para Boechat. O fotógrafo não roubou nada dele – ao contrário, ele parece querer mostrar, e bem de perto, o sofrimento pelo qual passou e do qual é sobrevivente.

Pela sua experiência, Boechat me conta que narrar ajuda as pessoas a dar sentido para a dor. Para ele, as duas fotografias são muito diferentes, mas em alguns aspectos são semelhantes. Ele afirma que “para muitas dessas populações o senso de justiça se dá pelo reconhecimento externo da violência que ele sofreu”. A interpretação do fotógrafo é a de que a vítima não tem outro modo de retomar esse senso de justiça: “o estado de direito não funciona naquele momento onde ele está, ele tem dois caminhos na cabeça dele pra resolver a violência da qual ele foi vítima. Pela barbárie, que é um caminho, ou pelo reconhecimento de uma instância que ele julga ser superior ao estado das coisas. Muita gente entende que a imprensa é essa instância superior, porque ela pode dar voz a ele.” Essa é uma reação comum, que ele encontrou em outros lugares. “Se você vai a Gaza, por exemplo, quando uma criança é morta eles pegam o corpo da criança e enfiam na sua cara. Porque de certa forma isso ajuda a dar sentido, a pessoa encontra uma razão torta para aquele sofrimento. E as pessoas querem contar sua história. É raro encontrar quem não queira contar sua história, mesmo um criminoso quer contar sua história. Mas para essas pessoas vítimas de injustiça, contar a história dá um pouco de sentido para a situação enlouquecera que elas viveram.”

Boechat então reflete sobre a sua responsabilidade frente a estas vítimas. Ele entende que para as vítimas é importante ter esse registro, “de certa forma eu estou mostrando que tem alguém olhando aquilo. Mesmo em situações terríveis. Em geral as pessoas querem que eu mostre. E em geral eu não tenho nenhum limite pra fotografar, eu fotografo tudo.” Ele detalha: “Eu procuro não estabelecer ligações afetivas, e delimitar de forma bem clara o meu papel: eu não sou ativista, eu não vou te ajudar, a sua vida não vai melhorar, a única coisa que eu estou fazendo é contar a sua história.”

Aqui é importante ressaltar que embora neste artigo estejam incluídas imagens fortes, para a exposição idealizada pela Cátedra Sérgio Vieira de Mello, da UNICAMP, houve a opção por evitar fotografias de violência mais explícita. Essa opção curatorial veio do diálogo com a presidenta da cátedra, Ana Carolina de Moura Delfim Maciel e alunos envolvidos no trabalho de mediação e educativo.

Morador de Mossul que diz ter sido torturado tanto pelo Estado Islâmico quanto pelas Forças Iraquianas, de Yan Boechat, Mossul, Iraque, janeiro de 2017.

Entre jornalismo e propaganda

A exposição das fotografias de Boechat não tem a pretensão de analisar na totalidade os conflitos abordados, ou contar uma história única e coesa sobre estes complexos eventos. Nenhuma fotografia é capaz disso. É próprio da imagem fotográfica ser uma fatia de espaço-tempo, que pode ganhar inúmeras interpretações diferentes, dependendo do contexto e de quem as vê. Como afirma Laurent Gervereau, “nenhuma imagem tem valor por si só. Cada imagem testemunha as condições em que foi produzida. Nisso, elas fornecem percepções diversas e complementares”.

O fotógrafo sabe disso, e é muito claro quando assume as condições de produção das suas fotografias, em especial o seu olhar estrangeiro, que necessita ser mediado em vários níveis – desde especificidades culturais, passando por tradutores, até as permissões oficiais. Ele repete em várias conversas que “a gente tem de pensar que o jornalista, em um ambiente de combate, é sempre visto pelas duas forças como um instrumento de propaganda. É por meio da gente (jornalistas) que as narrativas, as versões, que os racionais da guerra vão ser explicados para a opinião pública”. E explica melhor: “Eu tenho plena consciência que eu sou um instrumento de propaganda na guerra, que eu só chego nas pessoas que eles querem que eu ouça. Mas isso não impede que eu conte a história das pessoas que vivem a guerra. Sem necessariamente dizer que há heróis e bandidos. E a minha estratégia pra fazer isso é evitar ao máximo falar com quem tem poder. Se você olhar minhas reportagens, eu não falo com quem tem poder. Eu não quero ouvir o político, eu não quero entrevistar o Zelensky, eu não quero falar com o general x, y, z.”

Homem ferido por combatentes do Exército Etíope na Guerra Civil da Etiópia no Tigré, de Yan Boechat, Aksum, Tigré, junho de 2021.

“Eu quero falar com as pessoas que estão ali vivendo essa realidade brutal. Ao fazer isso eu já estou alimentando a propaganda ucraniana, ou tigrina, iraquiana, etc. Porque eu estou dando voz a uma vítima de um ataque e todo ataque tem um executor, que é o vilão dessa história. Mas eu procuro contar o que é viver naquele lugar, como é essa experiência humana de estar em uma guerra. Essa é uma tentativa que eu faço de escapar disso, mas eu sei que todo esse material vai ser usado de certa forma como propaganda para um dos lados”, comenta Boechat. São, afinal, os dramas e histórias destes indivíduos sem poder político, tirados por alguns instantes do anonimato pelas lentes de Boechat, que formam a maior parte – e a mais real – da ‘ação’ e do que passará na história a ser conhecido de cada uma dessas guerras.

Na condição de correspondente internacional, o olhar de Yan Boechat é o olhar de um estrangeiro que busca traduzir o que vê para o seu público leitor brasileiro (e mais recentemente também o norte-americano). Essas sucessivas mediações são também próprias da imagem fotográfica, pois ela se constrói histórica e culturalmente, nunca é algo neutro. Como afirma Caroline Brothers, “simplesmente ao olhar, o espectador é envolvido em um padrão altamente estruturado de visão e representação. O significado não é inerente à fotografia em si, mas à relação entre a fotografia e a matriz de crenças e pressupostos culturalmente específicos a que ela se refere”. A fotografia é então o lugar onde esses pressupostos, normalmente invisíveis, se manifestam. Assim, ela se constitui como um excelente ponto de partida para o diálogo e para o debate. ///

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Exposição Visíveis e Invisíveis: Guerras, Exílios, Vivências, de Yan Boechat, no saguão interno da Biblioteca Central Cesar Lattes/UNICAMP, entre os dias 10 de agosto e 05 de outubro de 2023, em Campinas.

Idealização e Realização: Cátedra Sérgio Vieira de Mello ACNUR/UNICAMP
CINERE – Trajetórias sem Fronteiras: cinemas do refúgio contemporâneo

Erika Zerwes é doutora em História pela UNICAMP. Especializada em história da fotografia, é autora do livro Tempo de Guerra. Cultura visual e cultura política nas fotografias dos fundadores da agência Magnum e co-autora de Mulheres Fotógrafas/Mulheres Fotografadas. Fotografia e gênero na América Latina e Cultura Visual, Imagens na Modernidade, finalista do prêmio Jabuti. Atualmente é fellow no programa conjunto do DfK – Paris e MIAS/Casa de Velazquez – Madri.

Exposições

A língua de Lenora de Barros

Priscila Arantes

A cara. A língua. O ventre., de Lenora de Barros, 2022. Vídeo comissionado pela Pinacoteca do Estado de São Paulo.

Ocupando três galerias do segundo andar da Pinacoteca Luz (SP), a exposição Lenora de Barros: minha língua apresenta cerca de 40 obras da artista realizadas entre 1975 e 2022 e um trabalho inédito instalado na sala central da mostra. No vídeo A Cara. A Língua. O Ventre , dividido em três partes, a artista utiliza a argila para modelar formas diversas, ‘videoformas’, nas palavras de Augusto de Campos, que se metamorfoseiam em objetos escultóricos colocados no meio do espaço expositivo.

Em um dos vídeos, Lenora modela uma enorme língua em argila em primeiro plano, que parece sair de sua cavidade bucal. Com suas mãos ela alisa a língua em repetidos gestos simulando o movimento da fala, de dentro para fora, até a língua se partir ao meio.  No mesmo vídeo, manipula a argila nas palmas das mãos para criar formas que evocam rostos, com olhos e bocas que se movem produzindo ruídos sonoros em um balbuciar vociferante.  Estas formas, como a máscara e a língua, atuam como fio condutor de toda a exposição e podem ser vistas em diálogo com as obras que constituem as duas salas laterais da mostra: Caras e Bocas e Eu não disse nada. Compostas por produções em diferentes linguagens Lenora de Barros: minha língua, que conta a com a curadoria de Pollyana Quintela, é um convite para entendermos as articulações entre corpo, imagem, poesia e linguagem ‘modeladas’ pelas mãos da artista.

Presente no título da exposição, a palavra Língua ganha, na mostra, uma pluralidade de sentidos. A um só tempo órgão muscular, situado na boca e na faringe, responsável pelo paladar e auxiliar na mastigação e na deglutição, a língua integra o aparelho digestivo e por isso lambe, mastiga, engole e come.  A língua é músculo que produz ruídos, sons, balbucios e fala. Ela institui regras, leis, ordens; ela edifica e estrutura a cultura. Língua é linguagem e sistema abstrato de signos que comunica ideias através de formas diversas. Muitas vezes estas formas se manifestam através de imagens que, para além de serem lupas para entendermos o que nomeamos por realidade, são códigos que se alimentam de sentidos diversos em um movimento contínuo de criação e ressignificação da Linguagem.

Linguagem, de Lenora de Barros, 1990-2022. Fotografias: Fabiana de Barros (1979), Ruy Teixeira (1990), Marcos Augusto Gonçalves (1994), Marcos Ribeiro (2008), Tatiana Dalla Bonna (2017), Gustavo Machado (2021) e Marcos Ribeiro (2022).

As imagens poéticas de Lenora de Barros criam mundos e realidades próprias. Não por acaso, na entrada da sala Caras e Bocas, nos deparamos com a série Linguagem (1990- 2022), obra em processo em que a artista registra, através da imagem fotográfica, a sua própria língua em processo de envelhecimento e transformação. Trata-se de uma sequência de sete imagens em que a artista apresenta o registro de sua língua em diferentes anos – 1979, 1990, 1994, 2008, 2017, 2021 e 2022 – em um mesmo enquadramento e em big close. Para além de nos apresentar a fotografia de uma língua humana, Linguagem, como indica o título do trabalho, nos convida a refletir sobre a constituição da linguagem, construção que se dá no tempo e em contínuo processo de transformação.  Aqui as rasuras, fissuras e sulcos cobertos de mucosa que fazem parte das características da língua humana ganham outros sentidos; se transformam em marcas gráficas, em códigos e signos que, como uma espécie de texto cifrado, se materializam em Linguagem.

As imagens em Linguagem constroem uma narrativa visual com uma espécie de sequencialidade algo cinematográfica que expressa o gosto pela imagem-tempo, característico de outros trabalhos da artista.  O corpo aqui, ou melhor, a língua é uma imagem-tempo tornada poesia; uma poesia não intermediada por palavras escritas somente, mas por códigos imagéticos.

Poema, de Lenora de Barros, 1979. Publicado em 1981 na Revista Zero À Esquerda e em 1983 no primeiro livro da artista, ONDE SE VÊ. Registro fotográfico: Fabiana de Barros

Em Poema, obra de 1979, temos também uma imagem contundente deste corpo-língua tornado imagem como poesia. Formada por seis imagens colocadas na vertical como uma espécie de ‘coluna vertebral’, a obra manifesta o encontro íntimo entre a língua e a máquina de escrever. Cada ‘fotograma’ de Poema apresenta um momento chave desta relação com mudanças de plano e enquadramento. Da primeira imagem da boca e da língua da artista, em um grande close, passando pela língua que percorre e lambe os teclados para ser devorada pela máquina de escrever, Poema nos convida a testemunhar o ato de sua criação. Apesar de não ter aqui nenhuma palavra, a não ser no título da obra, é do gesto criador e da comunhão erótica entre língua e escrita, entre língua e linguagem, que fala o poema; ideia que se repete no trabalho Dizendo quase nada (1979-2013), uma sequência de três imagens na vertical em que a artista acopla a imagem de sua boca a teclados de máquinas de datilografar.  

Dizendo quase nada, de Lenora de Barros, 1979-2013. Fotografia: Fabiana de Barros e Ruy Teixeira.

Diferentemente de Linguagem, em Poema percebe-se o recurso da fotomontagem como dispositivo narrativo na criação do poema visual. As imagens estão recortadas e colocadas em sequência e afixadas em um fundo neutro fortalecendo a carga imagética da relação entre a língua e a máquina. Através da manipulação manual a artista interfere na fotografia; recorta, cola, isola, criando um poema visual que revela o processo da criação poética.

Língua Vertebral, de Lenora de Barros, 1998/2010. Colagem digital. Fotografia: Marcos Ribeiro.

A língua como elemento de linguagem aparece em várias obras da artista, estabelecendo diálogos potentes com questões cruciais da arte brasileira. Em Língua vertebral, realizada no contexto da 24a Bienal de São Paulo em 1998, Lenora amplia, por meio de recursos digitais, sua língua, colocando sobre ela uma coluna vertebral em metal como uma espécie de metáfora visual estruturante. Já no poema visual No país da língua grande daí carne a quem quer carne (1998) a artista apresenta a imagem de sua boca mastigando a própria língua. O título do trabalho faz alusão à frase no país da cobra grande presente do Manifesto Antropofágico de Oswald de Andrade, expressando a ideia de uma ação devoradora de sentidos. Podemos dizer que nesses trabalhos, ambos apresentados no contexto da ‘Bienal da Antropofagia’, a artista aproxima a dimensão do corpóreo e da linguagem à discussão sobre a identidade cultural brasileira. Por meio da boca e do ato canibal, quase sinônimos do ato antropofágico e da devoração do Outro, neste caso da Linguagem, a boca come sua própria língua a fim de assimilar suas potencialidades.

Homenagem a George Segal, de Lenora de Barros, 1975/2014.

A utilização do rosto da artista também se faz presente na fotoperformance Homenagem a George Segal (1975), um dos trabalhos mais antigos da exposição: uma sequência de nove imagens em que a artista desenvolve a ação cotidiana de escovar os dentes. Seu rosto, no entanto, é totalmente coberto ao final da performance por uma espuma branca, criando uma espécie de máscara visual. Adquirindo diferentes texturas e materialidades em outros trabalhos, ora através de gorros como nas videoperformances Ela não quer ver (2005), Há mulheres (2005) e Já vi tudo (2005), de perucas como em Procuro-me ou de membranas de plástico ou sacos de papel como em Mim quer sair de si (1993) e Eu não disse nada (1990), as máscaras adquirem muitas vezes um carácter cênico e performático nos trabalhos de Lenora de Barros. Em Homenagem a George Segal, a máscara de espuma branca estabelece não somente um diálogo com a obra do artista pop George Segal que criava esculturas em gesso branco mas, ao mesmo tempo, aponta para a ideia de engessamento e paralisia da linguagem.

Silêncio e Calaboca 1, de Lenora de Barros, 1990/2006. Foto performance + vídeo. Fotografia: Ruy Teixeira. Edição: Lenora de Barros e Luciano Mariussi. Fotografia e câmera: Luciano Mariussi. Som: Cid Campos.

Em Calaboca e silêncio (1990-2006) a interdição da fala adquire contornos mais evidentes. Neste trabalho temos oito fotografias em sequência colocadas em formato horizontal. Em todas as imagens temos uma boca aberta, em primeiro plano, com uma letra formando em seu conjunto a palavra silêncio. O que se ingere pela boca não é somente o alimento, nem só o ato poético, mas também a violência e a interdição da linguagem. Nesta fotoperformance a artista faz uso da serialidade para falar do dito e do não dito, dos limites da expressão e da fala, da comunicação e liberdade. Muitas vezes em um tom irônico e antagônico, as obras de Lenora criam um diálogo potente com o contexto presente e os debates sobre as narrativas e falas silenciadas.

CALABOCA, de Lenora de Barros, 2006. Videoperformance, 52”. Edição: Lenora de Barros e Luciano Mariussi. Câmera e fotografia: Luciano Mariussi. Som: Cid Campos.

A boca, a voz, a língua e a fala passam a ser alvo e lugar de disputa de narrativas também nas obras Silêncio (A enfermeira), (2014), Alvos (2017) e Estudo para facadas (2013). No vídeo CALABOCA (2006) a artista ‘martela’, letra por letra, a palavra silêncio em sua língua.

Pregação, de Lenora de Barros, 2014/2022. Fotografia: Fernando Laszlo

Seria possível a existência de um mundo sem a povoação dos signos e da linguagem? Seria possível o silêncio absoluto? Em Pregação temos o registro fotográfico da palavra silêncio, resultado da performance coletiva que ocorreu em 2016 na exposição Issoéossodisso no Paço das Artes. Nesta ação os participantes, munidos de martelo e pregos, fixavam no meio de um barulho ensurdecedor a palavra silêncio no espaço expositivo. A obra, composta por códigos sonoros, performáticos e visuais, reivindicava não uma pausa acústica, mas este espaço povoado de linguagem e da ação coletiva de corpos em movimento. É neste jogo entre a ação corporal coletiva e a palavra que o poema e a linguagem se constroem. Não seria exagero dizer que esta ideia de origem, quase metafísica da Linguagem, faz parte de vários trabalhos de Lenora como em seu vídeo A Cara. A Língua. O Ventre. Na última parte deste tríptico Lenora de Barros modela em argila seu próprio ventre circunscrevendo seu umbigo, orifício corporal por onde passou o cordão umbilical. A Linguagem é Corpo, é Poesia. É o seu próprio corpo, seu rosto, sua língua, seu ventre feminino que se materializa em força poética e que se traduze em linguagem em uma produção repleta de sentidos. ///

Priscila Arantes e crítica, curadora, gestora cultural e pesquisadora. É professora do departamento de artes da PUC-SP,  pesquisadora colaboradora  do MAC-USP e vice-presidente da ABCA . Entre 2007 e 2020 foi curadora e diretora do Paço das Artes (SP).

Exposições

Outros navios

Eder Chiodetto & Eustáquio Neves
Fotografia da série Arturos, de Eustáquio Neves, 1993. Cortesia do artista.

Eustáquio Neves, ou José Eustáquio Neves de Paula nasceu em Juatuba, Minas Gerais, em 1955. Descendente de ancestrais escravizados, tornou-se técnico de química industrial. A lida com laboratório e químicas o levou ao ambiente analógico da fotografia. Certo dia foi ver uma exposição de Arthur Bispo do Rosário. Deu-se uma catarse. As obras que justapunham obsessão, visceralidade, contundência e uma miríade de materiais abriu para o jovem aprendiz de fotografia uma espécie de portal que o libertou para o universo de experimentações.

Surgiram desse encontro as estratégias de amalgamar imagens, texturas, abrasões, documentos históricos, grafias desconexas e outras informações que viriam a matizar suas criações a partir de então, tendo invariavelmente como tema os calabouços obscuros da escravidão no Brasil e o racismo estrutural sobre a população negra que persiste até os dias de hoje. A fotografia expandiu-se em seu laboratório de experimentações tornando-o um artista incontornável e singular na produção artística contemporânea brasileira. Desde de 1992, quando se iniciaram suas séries, Eustáquio e sua iconoclastia tornaram-se referência para as novas gerações de artistas. Sua obra foi uma das pioneiras a desacomodar a história oficial e fazer uma revisão crítica sobre a escravidão e seus ecos.

Em virtude dos 200 anos da Independência do Brasil, propusemos ao Sesc Ipiranga, localizado na região do “Grito do Ipiranga” e ao lado do Museu da Independência, a realização de uma ampla retrospectiva da obra de Eustáquio Neves, como contraponto a história da colonização contada a partir do ponto de vista dos colonizadores portugueses. Inaugurada em 06 de setembro de 2022 e em cartaz até o final de fevereiro de 2023, a mostra Outros Navios: Fotografias de Eustáquio Neves, contém 70 obras de 10 séries do artista, ocupando três salas, sendo uma delas dedicada a produção em vídeo.

Para a realização do projeto, artista e curador – com o auxílio de Lilian Oliveira, pesquisadora e esposa de Eustáquio – fizeram um levantamento do acervo seguido de diálogos que visavam a organização e a geração de textos sobre cada série. A seguir, alguns trechos desses diálogos.

Fotografia da série Boa Aparência, de Eustáquio Neves, 2000. Cortesia do artista.

Fomos o último país ocidental a abolir a escravidão, a nação que recebeu quase a metade do total absoluto de pessoas negras escravizadas no mundo entre os séculos 15 e 16. Nas últimas décadas, após reiterados esforços de historiadores e de diversos segmentos dos movimentos negros, entre outros, engendrou-se mais fortemente um debate urgente e necessário pela reparação histórica e pelo fim do racismo estrutural que até hoje, 134 anos após a abolição, segue enraizado, limitando acesso, voz, participação e equidade social à população negra brasileira, que representa 56% dessa nação. O título Outros Navios, que pegamos de uma série sua em andamento para ser o nome da exposição, sinaliza justamente para essas questões, certo?

Eustáquio Neves: Sim. Nas chuvas do último verão observei nos telejornais que os frequentes deslizamentos dos morros e o consequente soterramento de pessoas que vivem em situação de extrema vulnerabilidade afetava basicamente populações negras, que ali vivem por conta da total falta de oportunidades de emprego, educação e assistência mínima. Além disso, vemos cotidianamente ônibus e trens que ligam os centros das cidades brasileiras às periferias, apinhados de pessoas negras sendo transportadas de forma pouco digna. Se olharmos para o interior dos camburões da polícia e das celas dos presídios, veremos um reflexo imediato disso. Pensei então que “outros navios” carregando corpos negros escravizados não cessaram de chegar até nós nos dias de hoje.

Fotografia da série Arturos, de Eustáquio Neves, 1993. Cortesia do artista.

Arturos, série iniciada em 1993, já possuía a construção em camadas, justapondo trechos de negativos fotográficos com abrasões, químicas, tintas, documentos antigos e outros tipos de interferências. Desde ali suas imagens findam por ser a soma de múltiplas fontes de informações que ora se apaziguam, ora se atritam gerando campos pictóricos complexos. Essas estratégias formais, que convertem imagens de superfície em espessuras, seriam metáforas sobre como certas verdades históricas vão sendo eclipsadas pelos discursos oficiais de quem detêm o poder?

EN: Exatamente, por meio dessas estratégias das camadas, parto de uma fotografia como uma matriz para então iniciar um longo processamento em que informações de várias fontes que pesquiso interceptam a imagem gerando uma multiplicidade de signos que reclamam protagonismos e rasgam a aparência da superfície, revelando aquilo que tangencia e muitas vezes é sufocado na história.

Por essa mesma época você inicia a série Objetificação do Corpo, fotografando a Lilian, sua esposa, que serve de modelo. Comente essa série.

EN: Nos anos 1990, pesquisei a estética e as práticas artísticas e conceituais do período do Renascimento. Desse estudo derivaram novas experimentações sobre a construção de imagens. As imagens de nu feminino, recorrentes nas pinturas renascentistas, me levaram a pensar sobre os usos mercadológicos do corpo feminino no mundo atual, sobretudo na publicidade, quase sempre objetificado e sexualizado. Fotografei a Lilian simbolizando modelos negras, uma exceção no universo da publicidade até então. Pensava em falar de outras formas de dominação e escravização de corpos, nesse caso, sobre o feminino. As imagens foram ganhando cicatrizes, tintas sanguíneas, grafias desconexas, trechos de cartas de alforria e de venda de pessoas escravizadas. Acabou se tornando uma espécie de manifesto que se insurge contra a indústria do consumo que insere corpos femininos na lógica da mercadoria.

Fotografia da série Boa Aparência, de Eustáquio Neves, 2000. Cortesia do artista.

Na série Boa Aparência (2000) você recupera uma expressão utilizada em anúncios de emprego e encontra ecos dela na época da escravidão…

EN: Com cerca de 18 anos eu estava procurando meu primeiro emprego em Belo Horizonte. Nos anúncios em jornais, muitas vezes, as empresas solicitavam que os candidatos tivessem “boa aparência”. Como eu nunca era chamado, percebi que o pedido de “boa aparência” era uma forma velada de impedir que as pessoas negras tivessem acesso a esses postos.

Por essa época, comecei a pesquisar arquivos de jornais brasileiros e de língua inglesa do século 19, nos quais se anunciavam a compra e a venda de pessoas escravizadas. Entre as qualidades elencadas, como “bons dentes” e outras características corporais, invariavelmente, a expressão “boa aparência” se destacava nos anúncios. Naquele contexto, a expressão servia para impulsionar o comércio de pessoas escravizadas e, após a alforria, passou a ser utilizada para negar-lhes acessos.

Nessa série, parto de um autorretrato que é submetido a várias intervenções como forma de citar esse sistema de exclusão típico do racismo estrutural. Documentos de arquivos coloniais são “tatuados” de várias formas sobre a minha pele-película fotográfica, junto a esses anúncios que persistiram cerca de um século após a abolição.

   

Fotografia da série Retrato Falado, de Eustáquio Neves, 2019. Cortesia do artista.

Na série Retrato Falado, que você realizou após ganhar a Bolsa de Fotografia ZUM/IMS em 2019, você faz uma surpreendente incursão pela história da fotografia a partir da ausência de um retrato do seu avô no acervo familiar…

EN: Um olhar retrospectivo para a história da fotografia, desde sua invenção em 1839, mostra que foi necessário mais de um século no Brasil para que famílias negras começassem a adquirir câmeras para se autorrepresentar. Antes disso, no século 19, pessoas escravizadas eram fotografadas em estúdios por fotógrafos de origem europeia e seus retratos eram vendidos no formato de cartões postais (cartes de visite) como item exótico para colecionadores. Em Retrato Falado busquei recuperar, por meio da memória oral de meus familiares, a imagem do meu avô, João Catarino Ribeiro, o qual não cheguei a conhecer e do qual não restou nenhuma fotografia guardada pelos meus parentes. A partir das descrições crio um retrato falado nos moldes daqueles realizados pela polícia, e então parto para tentar restituir as feições do meu avô a partir de fotografias danificadas e com o auxílio da fotopintura. Em algumas dessas tentativas – que invariavelmente fracassam – acabo por encontrar o meu próprio rosto criando uma estranha semelhança entre as gerações da minha família. ///

Eder Chiodetto é mestre em Comunicação e Artes pela ECA/USP, jornalista, fotógrafo, curador independente e autor dos livros O Lugar do Escritor (Cosac Naify), Geração 00: A Nova Fotografia Brasileira (Edições Sesc) e Curadoria em Fotografia: da pesquisa à exposição (Ateliê Fotô/Funarte), entre vários outros.

Exposições

O verão de 1945 na Itália

Francesco Perrotta-Bosch

A sombra da igreja de Santa Maria Maggiore em Valmontone, 1945 © Archivio Federico Patellani – Regione Lombardia / Museo di Fotografia Contemporanea, Milano-Cinisello Balsamo

Um país devastado e uma população miserável, porém liberta da tirania, afastada da barbárie, sem medo de bombas sobre suas cabeças, começando a reconstrução. Um breve passar de olhos pode identificar somente a tristeza e o desamparo, entretanto havia esperança nos olhares captados pelas lentes fotográficas. Aquele era o primeiro verão de liberdade na Itália.

Nos meses seguintes ao término da Segunda Guerra Mundial na Europa, o fotógrafo Federico Patellani e os arquitetos Lina Bo e Carlo Pagani foram convidados a fazer uma reportagem sobre as condições de moradia em cidades italianas impactadas pelo conflito armado.

O roteiro começou na própria cidade em que Lina vivia. Em Milão, o trio visitou o bairro que se autointitulava Baia del Re – uma homenagem da população ao explorador Umberto Nobile, cuja expedição chegara ao pólo Norte com um dirigível. O nome oficial do conjunto habitacional na zona sul milanesa era 28 Ottobre, data da fascista Marcha sobre Roma. Havia sido construído pelo governo nos anos 1920. Seus banais prédios de quatro ou cinco andares com frívolos ornamentos classicistas eram semelhantes a tantos outros edifícios feitos por toda a península itálica no começo do século 20.

Em 12 de julho de 1945, as ruas da Baia del Re estavam tomadas de crianças. Os meninos vestiam camisetas com suspensórios e bermudas de tecido barato, um tanto sujos de poeira. As meninas portavam vestidos estampados, com bolinhas ou xadrez, e frequentemente tinham algum enfeite de cabelo. As irmãs mais velhas carregavam as mais novas: um pouco como brincadeira de boneca, um pouco por um carinho maternal que as próprias mães, imersas em afazeres domésticos ou no luto pelos maridos e filhos mortos, não conseguiam proporcionar com a intensidade habitual de uma sociedade católica. Na Baia del Re, a infância era de carestia e pobreza, mas todos ali, pela primeira vez na vida, podiam brincar sem medo nos pátios e nas ruas pois estavam livres da ocupação alemã. Todos os rostinhos expressavam certa alegria e encanto por aquela moderna máquina fotográfica com a qual Patellani os eternizou.

Suas mães e avós observavam das janelas. Constatavam-se poucos pais: alguns podiam estar trabalhando, outros devem ter morrido na guerra. Para o ensaio, os arquitetos e o fotógrafo entraram em alguns apartamentos. Em um deles, o vaso sanitário ficava ao lado de um galinheiro improvisado. Ter galinhas em casa não era exceção: em muitos balcões, viam-se aves ciscando para dar os ovos do consumo familiar. Os ambientes internos eram escuros e visivelmente apertados para famílias com tantos filhos.

Enquanto isso, Lina Bo, trinta anos, vestido florido, sapato branco de salto baixo, cabelo negro e comprido, franja-rolo sobre a testa, foi fotografada na escada de um dos prédios da Baia del Re. Sorria. Parecia genuinamente feliz.

Naqueles dias também visitaram os baraccopoli milaneses, isto é, as favelas que surgiram em periferias e avenidas largas. As precárias casas eram feitas de madeira e todo tipo de material achado nos entulhos de prédios destruídos. Pisos de apartamentos elegantes converteram-se em paredes. Improvisadas tendas de sacos de estopa forradas com feno davam abrigo a idosos. Pequenas hortas eram plantadas para a subsistência. Muitos moradores eram milaneses cujas residências haviam sido destruídas nos ataques aéreos. Outros tantos fugiam da miséria do Sul da Itália, agravada pelas frentes de batalha.

Lina Bo no bairro Baia del Re em Milão, julho 1945 © Archivio Federico Patellani – Regione Lombardia / Museo di Fotografia Contemporanea, Milano-Cinisello Balsamo

Como a península itálica estava predominantemente ocupada pelo exército norte-americano, seus generais tinham o poder de autorizar ou não grandes deslocamentos pelo país. Bo, Pagani e Patellani apresentaram sua justificativa — a reportagem — e receberam os documentos que lhes permitiam passar pelos bloqueios e tropas nas estradas entre Milão e Roma.

Lina chamou a viagem de “uma aventura não alegre”. Uma constante preocupação acompanhava o trio: não podiam sair da estrada. Andar num gramado ou num bosque era perigosíssimo em razão das minas terrestres deixadas por alemães, pelos Aliados ou mesmo pelos partigiani. Não era recomendado sequer pegar algo desconhecido com as mãos. Bombas ainda estavam por todo lado.

A primeira parada foi Marzabotto. Neste vilarejo ocorreu um dos mais cruéis crimes de guerra: entre 29 de setembro e 5 de outubro de 1944, os nazistas executaram filhos e filhas, pais e mães, avôs e avós, não menos de 770 assassinados. Patellani fez fotos da igreja com telhado colapsado, os bancos revirados e os ornamentos do altar transformados em destroços. As fachadas das casas estavam repletas de marcas de tiros de fuzis e metralhadoras. Poucas famílias não debandaram. As ruas de Marzabotto estavam vazias.

Mais algumas dezenas de quilômetros e chegaram a uma irreconhecível Florença. As margens do Arno tornaram-se uma massa única e amorfa de escombros. Não dava para distinguir a beira do rio, a rua, as construções. Ali somente a Ponte Vecchio fora poupada dos bombardeios. Nas estreitas vias florentinas, prédios de lados opostos da rua escoravam-se entre si: impossível não fazer uma analogia da imagem dos dois edifícios solidarizando-se estruturalmente com as passarelas entre as torres do Sesc Pompeia.

Prédios escorando-se em rua de Florença, agosto 1945 © Archivio Federico Patellani – Regione Lombardia / Museo di Fotografia Contemporanea, Milano-Cinisello Balsamo

O trio seguiu seu caminho até parar na pequena Buonconvento. Patellani fez duas fotos no lugarejo. Nelas, Lina aparece em pé sobre o capô de um carro preto de placa “Roma 8173”. Ela aproximava seu rosto do arco acima do portão de entrada de um edifício. Não era uma tentativa de ver quem estava dentro. Ela queria observar de perto as cinco gaiolas penduradas sobre a porta. Lina tinha fascínio por animais.

Pela estrada encontravam tanques abandonados e carcaças de ônibus. A parada seguinte foi Radicofani. Sua torre medieval que desponta sobre um monte foi fotografada por Patellani tendo, em primeiro plano, um cemitério de militares franceses com covas identificadas por singelas cruzes de madeira pintadas de branco.

Em seguida, chegaram a devastada Acquapendente. Todavia, sua praça central estava repleta de gente. Viam-se cenas banais, como senhoras sentadas nas soleiras das portas das casas, conversando com vizinhos, vendo a vida passar. Encontraram também cenas anormais, como crianças brincando nos escombros de edificações arruinadas. Fachadas tinham inscrições em inglês deixadas pelas tropas que lá passaram. Nos mesmos muros, a prefeitura colara cartazes com instruções para a reconstrução das casas.

Mais alguns quilômetros ao sul e chegaram a Viterbo. Seguia-se o recorrente cenário: pilhas de pedras e tijolos mais altas que um corpo humano; edificações sem telhado, nem esquadrias; fachadas desmoronando; paredes de quartos à mostra para a rua. Em meio à degradação, o centro da cidade estava enfeitado para uma festa de santo. Do mastro da praça desciam fios repletos de bandeirinhas. Nas estreitas vielas, cabos com arranjos de folhas de pinheiro e papéis coloridos se prendiam nas fachadas. A edícula votiva estava toda ornamentada. A imensurável tragédia não inibira manifestações da fé popular.

Há dúvidas a respeito da sequência do itinerário: o trio pode ter ido direto para Roma ou antes visitou alguns municípios ao sul para depois retornarem à cidade eterna. Fato é que, naqueles dias, Patellani fez registros fotográficos de duas cidades meridionais à capital italiana: Cassino e Valmontone, ambas com um nível de destruição ainda maior que o testemunhado antes.

Embora pesquisadores atestem a ida de Lina a Cassino, não há ainda fonte primária que confirme isso peremptoriamente. Ao certo, sabe-se que, em seu trabalho de edição na revista A, a arquiteta viu as fotos feitas por Patellani nessa cidade.

A bem da verdade, não era mais possível identificar uma urbe no local onde ocorrera a batalha de Monte Cassino. As estátuas de santos, os anjos de mármore, os entablamentos com suas frisas e cornijas, as colunas e seus capitéis afloravam em meio aos destroços. Os monges andavam pelos escombros, coletando fragmentos de ícones e esculturas religiosas.

Eram as mulheres que trabalhavam nas obras de reconstrução de edifícios, por mais que seus esforços parecessem gotas d’água no oceano diante de tanta devastação. Porque, em Cassino, Patellani retratou a extrema pobreza. Fotografou crianças sentadas em calçadas empoeiradas com roupas encardidas – um dos garotos não tinha calça, mas somente um farrapo sobre o colo. O barbeiro ocupara o arco de um muro de pedra: instalou ali a placa com a inscrição “barbiere” feita toscamente à mão, improvisou um caixote para ser sua mesa de apoio com tesoura e navalha, e seus clientes sentariam numa cadeira quebrada e sem assento.

Nas cercanias de Cassino, a paisagem natural fora devastada. Não havia verde folha naquele verão. Destacava-se somente o cemitério onde foram enterrados mais de 4 mil soldados da Commonwealth. Uma produção em série de cruzes brancas cravadas no solo. Uma produção em série de mortos.

Lina subindo um pequeno barranco na Piazza Augusto Imperatore em Roma, 1945 © Archivio Federico Patellani – Regione Lombardia / Museo di Fotografia Contemporanea, Milano-Cinisello Balsamo

As condições em Valmontone não eram melhores. Próxima a Roma, a maior parte das edificações da cidade desmoronou. Das poucas que se mantiveram razoavelmente íntegras, o Palazzo Doria tornou-se lar para mais de cem pessoas. Viviam amontoados em espaços escuros, parca ventilação, quase nenhum mobiliário, repleto de detritos e poeira.

Outras pessoas fizeram precárias barracas com madeiras e pedras recolhidas dos entulhos, somadas a sacos de estopa e lona usados na guerra ou no transporte de mantimentos. Para não dormirem ao relento, apropriaram-se do que tinham disponível e converteram em algo essencial para a sobrevivência, isto é, em moradia — uma operação semelhante ao que Lina, anos depois no Brasil, veio a chamar de pré-artesanato. Sob a mesma lógica, uma criança foi fotografada guardando seu livro escolar num velho porta-munição de metal usado por algum soldado inglês.

Com a fachada danificada, porém com as duas torres de pé, a igreja de Santa Maria Maggiore resistiu na praça central, na qual os camponeses montavam uma feira de verduras e frutas. Terminada a paúra da artilharia inimiga, a população tudo fazia ao ar livre, por mais árido que fosse.

Crianças no bairro Baia del Re em Milão, julho 1945 © Archivio Federico Patellani – Regione Lombardia / Museo di Fotografia Contemporanea, Milano-Cinisello Balsamo

Roma era o destino. Pela sua importância histórica e sendo sede da Santa Sé, a cidade foi poupada de batalhas mais ferozes. Não se viam edifícios desmoronando na capital italiana, mas sim terrenos baldios envoltos em arames farpados, caminhões do Exército e munição exposta a céu aberto.

Uma foto emblemática mostra Lina Bo, com seu vestido florido e uma bolsa, subindo um pequeno barranco na Piazza Augusto Imperatore — visualmente, o logradouro acumulava as funções de sítio arqueológico do Mausoléu de Augusto e lixão. Por trás do aclive repleto de entulho havia um prédio em estilo fascista, no qual se encontrava a sede do Studio d’Arte Palma, a galeria daquele que viria a ser o esposo da arquiteta: Pietro Maria Bardi.

Depois de testemunharem imagens tão duras, aquela visita tinha um quê de diversão e escapismo para o trio viajante. Por alguns instantes, Lina foi modelo para as câmeras de Patellani. Na última foto, ela está sentada numa pitoresca cadeira, encarando a lente fotográfica com rosto altivo, sorriso leve e um tanto enigmático, tal como uma Gioconda. Estava com um semblante confiante no futuro após o fim da Segunda Guerra Mundial. ///

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As fotos fazem parte da exposição O verão de 1945 na Itália: a viagem de Lina Bo nas fotografias de Federico Patellani, com curadoria de Francesco Perrotta-Bosch e em cartaz até o dia 7 de outubro no Instituto Italiano di Cultura em São Paulo. Mais informações aqui.

Francesco Perrotta-Bosch (Rio de Janeiro, 1988) é arquiteto e escritor. Autor de Lina, Uma Biografia (Todavia, 2021). Mestre pela FAU USP e doutorando pela mesma instituição e pela Universidade IUAV de Veneza. Em 2013, venceu o prêmio de ensaísmo da revista serrote com A arquitetura dos intervalos

Exposições

Documenta 15: filmes e arquivos fotográficos destacam narrativas divergentes

Nathalia Lavigne
Still do filme Projeto do Sistema de Águas, de Cao Minghao & Chen Jianjun, Wen Chuan, 2019. Foto: Cao Minghao e Chen Jianjun.

Não dá para se esperar pouco de uma mostra que nasceu com a ambição de reerguer a imagem de um país colapsado pela Segunda Guerra e culturalmente em ruínas. Fundada em 1955, grande parte com a missão de dissociar a Alemanha da sombra do Nazismo, a documenta de Kassel se tornou rapidamente o evento de arte mais importante do mundo ocidental. A ambição de apresentar a cada cinco anos (inicialmente quatro) uma produção artística internacional e democrática, nas palavras de seu fundador, Arnold Bose, se manteve como discurso oficial ao longo dos anos, embora na prática o resultado fosse outro. Por muito tempo, boa parte do mundo ficou de fora do que se entendia como “global” – inclusive artistas da vizinha Alemanha oriental e do leste europeu, que só nos anos 1970 ganhariam espaço na mostra. A ideia de um evento democrático também foi se revelando bastante falaciosa. Um trabalho do coletivo Guerrilla Girls sobre a documenta 8 – “Por que em 1987 a documenta é 95% branca e 83% masculina?” – resume bem o problema.

Na curadoria, foi apenas em 2002 que um não-europeu assumiu a direção artística – o nigeriano Okwui Enwezor. Ainda assim, a representação de artistas do Sul Global seguiu bastante restrita depois disso. É nesse contexto que a documenta 15 traz uma mudança de eixo importante, especialmente levando-se em conta o histórico da mostra. Com o coletivo indonésio ruangrupa assinando a direção artística, essa é a primeira vez que um grupo de artistas e ativistas toma a frente da curadoria da instituição na qual se consolidou a figura do curador profissional, centralizador de escolhas que definem tendências e gostos.

Tudo isso é posto em xeque nessa edição, que propõe uma transformação radical nos formatos e modelos institucionais. A começar pelos nomes: ouve-se por toda parte falar dos Lumburgs – termo usado na zona rural na Indonésia para os celeiros onde o excedente da colheita de arroz é armazenado de forma comunitária, adaptado aqui como modelo de trabalho colaborativo, definindo a estrutura da mostra. Ou também de nongkrong, a arte de sair e socializar. O Fridericianum, um dos primeiros museus públicos do mundo e principal espaço da documenta, passou a ser chamado de Fridskul, um museu-escola onde acontecem cursos, seminários e alguns artistas estão vivendo temporariamente.

Sim, os nomes soam estranhos, e leva-se um tempo para se adaptar a eles e à proposta curatorial como um todo. E tempo é artigo raro para quem está maratonando por dois ou três dias para visitar o máximo possível dos 39 espaços espalhados pela cidade. Mas o modo de ver uma exposição como essa documenta é outro. Muitas vezes nem há muito o que ver, de fato, já que grande parte dos trabalhos só acontecem verdadeiramente quando ativados.

É nesse sentido que a produção audiovisual e de imagem acaba tendo um dos papéis mais importantes nessa edição. Primeiro, pelo aspecto documental. Se essa não é uma exposição de objetos, e nem sempre é possível acompanhar o que acontece ao vivo, é por esse formato que o trabalho dos artistas e coletivos é apresentado. E há de fato uma preocupação bastante didática da curadoria em contextualizar, por meio de entrevistas e depoimentos, outras metodologias que envolvem ações de impacto político ou social. Há também um nome criado para isso: Harvest (colheita), uma documentação traduzida na linguagem de práticas artísticas de cada um, às vezes mais poética ou bem-humorada.

É o caso dos vídeos no formato de sitcom do coletivo chinês BOLOHO, uma sátira ao gênero de programas que os integrantes assistiam na infância, carregados de mensagens ideológicas em defesa de valores familiares. Um dos episódios, O Sonho de Bolohope (2022) – uma referência ao nome do grupo, que em cantonês significa “núcleo da jaca” – conta a história um tanto absurda de um mundo paralelo que existe dentro da fruta, uma metáfora bem-humorada sobre produções fora dos grandes centros descartadas de antemão. Difícil avaliar a qualidade dos vídeos em si sem dizer que eles ficam passando na cafeteria de uma antiga fábrica transformada pelo coletivo em um restaurante cantonês. Ou seja: são facilmente imperceptíveis com todo o ruído e distração desse ambiente, e talvez seja essa situação de pano de fundo que deixa as narrativas non sense mais curiosas e interessantes.

Meme publicado pelo perfil do Instagram Cem A., criador da página @freeze_magazine

O humor dos memes também tem espaço nessa edição com a colaboração de Cem A., criador da página do Instagram @freeze_magazine, que ironiza especialmente a precariedade dos formatos de trabalho no mundo da arte. Sua participação na documenta como curador-assistente é diversa: inclui desde ilustrações feitas para publicações, aulas e outras ações autoirônicas no formato de crítica institucional. Em uma festa de aniversário na cozinha colaborativa do Fridskul, ele distribuía tatuagens de henna com dizeres como ‘I love Kassel’, aplicando e fotografando em quem se voluntariasse.

Mural do Arquivo das lutas de mulheres na Argélia, uma coleção de coletivos feministas e de direitos das mulheres desde os anos 1990. Foto: Hichem Merouche, cortesia do Arquivo das lutas de mulheres na Argélia.

Práticas arquivistas independentes são outro recorte importante, concentradas no segundo andar do Fridericianum (ou Fridskul), onde estão o Archives des luttes des femmes en Algérie, o Asia Art Archive e o The Black Archives. O primeiro, criado em 2019 no contexto das manifestações contra o governo argelino, reconstitui outros momentos de protestos sociais nos anos 1980 e 1990 em que as mulheres tiveram um papel central e pouco reconhecido em um país altamente patriarcal. A pouca representatividade de mulheres na história da arte asiática é também um dos focos do Asia Art Archive, com sede em Hong Kong, que desde 2000 vem conectando artistas e pesquisadores de diversas partes do continente, discutindo outras formas de arquivar imagens em diálogo com histórias locais.

É uma proposta parecida dos artistas chineses Cao Minghao e Chen Jianjun, que apresentam alguns dos vídeos mais bonitos dessa edição. Um deles é o Water System Museum (2015-18), em que a dupla investigou um controverso projeto de irrigação na cidade de Sichuan, trabalhando em colaboração com urbanistas, moradores e ambientalistas. Além do vídeo, há também uma série de fotos mostrando um barco de madeira abandonado reutilizado como plataforma de encontros para se debater sobre o sistema de água local – um grande problema ambiental nessa região rural da China, onde aldeias inteiras já desapareceram.

A ideia de mapear as lacunas nos arquivos é outro recorte de projetos ativistas como o Instituto de Artivismo Hannah Arendt (INSTAR), criado em 2015 pela artista cubana Tania Bruguera para leitura coletiva do livro As Origens do Totalitarismo (1951), desdobrando-se em diversas ações desde então. Na mostra, o grupo apresenta o que chama de Factografia Operacional – um mural em construção com nomes de artistas e intelectuais censurados pelo governo entre 1959 e 2022, alguns com os retratos em forma de marionetes.

Coletivo A Comunidade do Filme de Rojava, filmando Histórias de cidades destruídas, em Derbesiye, 2016. Foto: Nadia Derwish.

Outro aspecto que chama atenção é a quantidade de ambientes de sociabilidade ou espaços para sentar e deitar, especialmente onde estão os vídeos. Acaba sendo um atrativo imediato e determinante na decisão de permanecer mais tempo vendo uma obra. É o caso da sala onde são exibidos os filmes do coletivo The Rojava Film Commune, projeto fascinante de uma escola de cinema criada na região autônoma no norte da Síria, que mesmo antes da guerra já tinha sido bastante afetada por políticas de apagamentos de culturas locais. Ou na instalação do Centre d’art Waza, coletivo fundando em 2010 por artistas e curadores do Congo, onde assistimos o vídeo em um domo, visível apenas para quem está deitado. Ou, ainda, no ambiente de estudo criado pelo Le 18, do Marrakesch, no qual é possível escolher qual DVD assistir entre a seleção disponível de filmes marroquinos. 

De forma parecida, as ideias de autonomia e a liberdade do espectador também conduzem o projeto apresentado por Graziela Kunsch, única artista brasileira desta documenta, que transformou um dos espaços no térreo do Fridericianum em uma creche pública, onde é possível entrar sem pagar entrada. Sua intenção, no caso, é pensar a autonomia no desenvolvimento motor de bebês até três anos, inspirada na abordagem da pediatra austro-húngara Emmi Pikler (1902-1984) desenvolvida no pós-guerra em um orfanato criado por ela em 1946. Além dos ambientes utilizando um mobiliário específico que incentiva movimentos autônomos das crianças, há uma série da fotógrafa húngara Marian Reismann (1911-1991) com uma rica documentação do processo conduzido no Instituto Pikler, e um vídeo feito por Graziela utilizando a mesma abordagem pedagógica com sua filha.

Still do vídeo Manu’s free motor development, de Graziela Kunsch, parte do projeto Public Daycare, 2019 (em andamento).

Se a (auto)documentação é um dos pontos fortes dessa documenta, não deixa de ser uma ironia e infelicidade que a recepção da mostra até o momento tenha sido marcada por um único assunto, a essa altura impossível de ser ignorado ao se falar sobre essa edição: as acusações de antissemitismo, tema que no contexto alemão tem uma conotação mais grave e inflamável, por razões óbvias. E, de fato, sobrou para todo mundo: para os autores do trabalho em questão, o coletivo indonésio Taring Padi, que se desculparam pelas ilustrações representando judeus com nariz adunco e uniforme da Mossad (serviço de espionagem israelense), imagens claramente antissemitas; para a diretora geral, Sabine Schormann, que deixou o cargo em meados de junho; mas, principalmente, para o ruangrupa, que desde janeiro vem sofrendo ataques pela acusação/suposição de antissemitismo pelo trabalho como um todo, com alegações de um posicionamento pró-palestina pelas escolhas dos artistas.

Sobrou até para quem nem participa da documenta, como a instituição de São Paulo Casa do Povo, que, recentemente, publicou um texto no e-flux negando rumores de que teriam sido desconvidados da mostra por protestos de outros participantes críticos a Israel. Na carta, eles lamentam o episódio sobre o trabalho do Taring Padi, mas saem em defesa do ruangrupa dos ataques infundados ou mesmo (também) racistas. “Estamos agora enfrentando uma inversão perigosa da violência antissemita de uma forma muito preocupante. As mesmas estratégias que sustentaram o antissemitismo por décadas estão sendo usadas no debate público para condenar o ruangrupa. Em vez de conversas abertas, o debate público é alimentado por denúncias e boatos”, escrevem.

Em outra carta assinada por 65 participantes e lida em um evento transmitido pela plataforma do INSTAR, divulgado no Instagram da artista Tania Bruguera, eles relatam a sequência de episódios envolvendo os ataques, alguns também de cunho transfóbico contra a coletivo Party Office, além de cyberstalking e outras ameaças. Reclamam da falta de posicionamento por parte da instituição sobre esses casos. Em contrapartida, enumeram uma série de medidas adotadas sem haver um diálogo com os artistas ou curadores, entre eles que a exposição passe por um processo de consultoria de acadêmicos para avaliar outros trabalhos possivelmente antissemitas, o que refutam na carta.

Interessante pensar como a repercussão dos escândalos reverbera o formato curatorial dessa edição. Por um lado, a proposta do ruangrupa parece fazer ainda mais sentido: a organização por meio de coletivos como forma de lidar com ambientes institucionais desiguais e hostis; a pluralidade de canais para que outros discursos sejam ouvidos pelos mesmos motivos. Ao mesmo tempo, difícil nesse momento não olhar para a documenta 15 com o algum pessimismo de que o formato, embora inovador em tantos sentidos, dificilmente vai ser repetido. Mais uma razão para valorizar os arquivos e a busca incessante por outras versões que o presente não comporta. ///

Nathalia Lavigne é pesquisadora, jornalista e curadora. Atualmente vive em Berlim, após um período como pesquisadora visitante da Humboldt Universität zu Berlin, contemplada com uma bolsa da DAAD em 2021.

Exposições

Por uma botânica rebelde

Mateus Nunes
Bndeamided dualoamtanat, da série Flora mutandis, de Giselle Beilguelman, 2022. Imagem criada com Inteligência Artificial (Style GAN2).

No princípio, não era a palavra. Ou pelo menos não a que conhecemos, a que nos foi imposta, que impõe categorias limitantes e despreza complexidades. Antes da “costela-de-adão”, talvez fosse só imagem. Imaginar a natureza antes da taxonomia moderna – portanto, antes da transferência de artificialidades eurocêntricas para o que é natural – é um exercício que detecta, de certa forma, uma genealogia do preconceito paulatinamente naturalizada. A partir das relações da história com os nomes dados a seres naturais, do colonialismo histórico ao datacolonialismo, a artista e pesquisadora Giselle Beiguelman propõe a revisão de um ecossistema epistemológico e semiológico, opondo-se a uma ciência hegemônica afixada sobre a visão artificial que se tem acerca da natureza. A combater um discurso cientificista reinante, a exposição Botannica Tirannica é uma pesquisa artística de Beiguelman que se desdobra em uma constelação de imagens que investigam a naturalização, na botânica, do uso de nomes ofensivos a grupos sociais. Culminando com esse projeto, o sólido corpo de trabalho de Beiguelman nos âmbitos artísticos, acadêmicos e editoriais busca desconstruir um imaginário colonialista através de uma rebelião científica e informacional.

Vídeo da série Flora rebellis, de Giselle Beiguelman, 2022

No projeto Botannica Tirannica, Beiguelman apresenta, com certo protagonismo, três elementos principais: a obra Errante e as séries Flora rebellis e Flora mutandis. São, essencialmente, um conjunto de vídeos e imagens a partir de cruzamentos botânicos feitos por sistemas de inteligência artificial com interferências da artista, feitas a partir de robustos bancos de dezenas de milhares de imagens coletadas e preparadas por ela. A formação desse arcabouço imagético através da coleta de imagens é análoga às históricas expedições naturalistas que inventariavam e representavam espécimes naturais em solos invadidos.

Os vídeos que compõem a série Flora rebellis têm formato quadrado e duração de 2 minutos e 55 segundos cada; são exibidos em loop, e chamam-se Judeus, Roma, Indígenas, Negros e Mulheres. Cada um deles é o registro do processo de cruzamento digital de imagens de plantas e fungos batizados com nomes pejorativos a esses grupos minoritários, como judeu-errante, ciganinha, coração-de-índia, nigger-toe (castanha-do-Pará) e maria-sem-vergonha, respectivamente. A artista busca reiterar a artificialidade dos preconceitos tomados como naturais e enraizados na tradição e na atualidade, espelhando sobre a natureza intolerâncias culturais, em um claro movimento antropomórfico e injurioso ditado sobre o mundo vegetal.

Um conjunto de 18 imagens estáticas constituem Flora mutandis, série criada a partir dos mesmos mecanismos, cruzando espécies de plantas batizadas com nomes científicos ou vulgares ofensivos, expressando preconceitos sobretudo relativos a partes do corpo e traços fenotípicos culturais. Os nomes das espécies criadas – que também intitulam as obras – são geradas algoritmicamente a partir do embaralhamento dos nomes originais das espécies cujas imagens compõem os bancos de dados que a artista opera digitalmente. Segundo Beiguelman, “o título da série faz referência à maior obra botânica sobre o Brasil, Flora brasiliensis, e a expressão latina ‘mutatis mutandis’, que significa ‘mudando o que tem de ser mudado’”.

O compêndio botânico a que a artista se refere, Flora brasiliensis, é uma publicação decisiva para os estudos da botânica no Brasil, organizada entre 1840 e 1906 por Carl Friedrich Philipp von Martius, August Wilhelm Eichler e Ignatz Urban, naturalistas europeus que inventariaram 22.767 espécies vegetais de forma amplamente ilustrada. A obra sintetiza uma série de movimentos cientificistas que aconteciam desde o período colonial – esforços europeus para registrar e domar a natureza do Novo Mundo –, como os registros amazônicos da Viagem Filosófica (1783-1792) de Alexandre Rodrigues Ferreira, desenhadas por José Joaquim Freire e Joaquim José Codina, que também se expandia a registros zoológicos, cartográficos e antropológicos. Objetivava-se, além de uma representação formal, um desenho útil, dotado de sucessivas camadas de informação a serem analisadas no âmbito naturalista.

Errante se constitui como uma obra independente das séries supracitadas, sintetizando em uma imagem o resultado da combinação imagética de todas as espécies de plantas nomeadas vulgarmente como judeu-errante (cujo nome científico é Tradescantia Zebrina) em vários idiomas. Apregoa-se essa narrativa preconceituosa desde o século 13, associando a fábula de que a denúncia de um judeu teria causado o martírio de Jesus Cristo, e por isso havia tido seu povo condenado a vagar pela Terra sem descanso. Além de embasar um antissemitismo que tentava se provar científico no século 19, esse raconto tomou-se como recorrente na propaganda nazista, associando o judeu a uma pessoa desterritorializada. Isolar o indivíduo do seu território original é, em essência, ferramenta motriz do colonialismo.

Traçar – seja o nome ou a imagem – garantia aos europeus, a partir da sua perspectiva, uma segurança de dominação da informação. Temia-se o inclassificável, o inominável, o incompreensível. Adestrar o que lhes parecia tão indomável fazia com que se encaixasse, de forma reducionista, algo tão imenso e distante em suas pequenas caixinhas classificatórias, provenientes de sistemas epistemológicos totais e totalitários. Desse modo, os naturalistas europeus não só dominaram espécies até então desconhecidas por eles, mas naturalizaram preconceitos e nomenclaturas problemáticas.

Instigando a pensar a dimensão decolonialista fora do imposto binarismo entre natureza e cultura, Botannica Tirannica propõe uma postura pós-naturalista que questiona os princípios de utilidade e especificação que pautam a prática naturalista. Beiguelman proporciona uma leitura de que as imagens obtiveram outros sentidos úteis e específicos. Na dadosfera, transferem-se os princípios que há séculos eram aplicados às imagens de plantas, animais e indígenas assentes em solo a ser conquistado para os usuários conectados, em um datacolonialismo. A precisão anatômica dos desenhos naturalistas dá lugar à especificidade das informações sobre os usuários, classificando-os em faixa etária, localização exata, gênero, tempo de tela, compras recentes, sites recém-visitados etc. Nota-se que o escopo do que se define como explorável através da imagem apenas foi redirecionado.

Assim, a botânica se configura como uma tecnologia do império colonialista, amplamente preocupada em princípios de categorização e identificação como instrumentos de controle, impondo princípios culturais a uma natureza autônoma. Esse manejo sobre a natureza fundamentava, de um lado, o extrativismo e o pensamento agricultor de monocultura, e do outro, o combate a ervas daninhas, a plantas inúteis e incontroláveis. A catalogação é, portanto, útil não somente para o que deve ser cultivado, mas para o que deve ser exterminado. Paralelamente, a pesquisa de Beiguelman destaca que boa parte das plantas que têm nomes tirânicos se enquadram no âmbito das ervas daninhas – que apresentam alto grau de resistência –, em uma hierarquia inferior totalmente artificial. Na série, a artista apresenta letreiros de LED que anunciam que “toda erva daninha é um ser rebelde” e que “a nomenclatura é um ritual de apagamento”.

Todas as obras foram feitas a partir da técnica de geração de imagens por inteligência artificial StyleGAN2 (“GAN” é sigla do termo em inglês “generative adversarial network”, que pode ser traduzido como “redes neurais adversárias”). Essa estratégia faz com que dois sistemas generativos briguem entre si, em um método de machine learning aplicável principalmente para treinamento de geração de imagens. Por “generativo”, nesse contexto, pode-se entender que essas redes criam, a partir de inteligência artificial, novos dados com base em dados prévios.

Quando Beiguelman ordena que se comecem os processos dos cruzamentos de seu repertório botânico – que demandam centenas de horas de processamento –, os sistemas de inteligência artificial entendem como dados existentes as coordenadas georreferenciadas, modelos de câmeras e diversas outras informações contidas nos bastidores de cada imagem das plantas. Varrem todas essas camadas de metadados e começam a procurar coincidências entre elas. Dessa forma, as imagens não são geradas a partir de aspectos visíveis, mas de informações “escondidas” entranhadas nos arquivos digitais, infiltradas como as ervas daninhas que a artista honorifica. A artista reitera que toda imagem computacional é uma imagem espessa, com muitas camadas de informação digital. Além das inesgotáveis leituras interpretativas que as imagens podem ter, Beiguelman atesta que esse manancial de informação também se materializa nos códigos dos arquivos dessas imagens.

A operação de Beiguelman se diferencia dos atuais aplicativos que reconhecem e identificam plantas através de imagens, disponíveis para celulares e criados também com maquinário de inteligência artificial. Esses aplicativos, inclusive, detectam plantas que se enquadram na categoria “erva daninha” e propõem soluções de jardinagem doméstica para aniquilá-las, reiterando as balizas combatidas pela artista.

 

Oean aomorpoenctho, da série Flora mutandis, de Giselle Beilguelman, 2022. Imagem criada com Inteligência Artificial (Style GAN2).

No processo de geração das imagens, a artista reverte propositalmente uma “eugenia maquínica”. Automaticamente, os sistemas de inteligência artificial utilizados por ela desprezam tudo aquilo que é dissonante entre as imagens, indo apenas pelos caminhos de semelhança e proximidade – nesse caso, não das imagens, mas dos metadados, informações invisíveis atreladas a elas. Combatendo o estabelecimento desses “sistemas puros” para analisar a sociedade contemporânea, a artista interfere manualmente no processo de aprendizado de imagem. Usualmente, para obter-se um modelo considerado puro quanto às diretrizes de geração de imagem por inteligência artificial, é montado um banco de dados com milhares de imagens de uma mesma espécie, para que as redes encontrem conexões entre os exemplares e apurem seus mecanismos de identificação e aproximação.

Entretanto, Beiguelman insere robustos compilados de imagens de mais de uma planta na mesma operação, confundindo o sistema e forçando-o a encontrar padrões que a priori não existiriam. Ao inserir uma diversidade a que o processo não está acostumado – seja ele digital ou político –, a artista cria um conflito interno na plataforma, fazendo com que, a partir dessa orientação, a máquina encontre soluções de processamento que nem sempre atendem satisfatoriamente as interrogações de Beiguelman. Isso faz com que, dentro dos milhares de caminhos possíveis de interações gerados pelo sistema, a artista direcione alguns trechos do aprendizado a partir da seleção de vetores em um diagrama gerado pelo software, desviando um comportamento maquínico padrão. Esse processo, inclusive, coloca-se de maneira altamente crítica à eugenia social que estruturou muitas matrizes autoritárias de pensamento, como o darwinismo social e a antropologia criminal basilares no nazismo, no fascismo e no imperialismo, guiados por ideais racistas, misóginos, homofóbicos, antissemitas e xenofóbicos.

Os trabalhos dessa série – assim como o corpo recente de trabalho de Beiguelman – utilizam-se de ferramentas digitais para questionamentos sociais, fazendo com que haja uma ponte direta entre o que se conhece por ciências naturais, exatas e informáticas com as ciências humanas e sociais. Ao fazer essa relação, a artista evidencia um constante desequilíbrio na forma de pensar a transdisciplinaridade na contemporaneidade, atestando uma divergência quanto à natureza dos objetos operados por esses dois âmbitos do pensamento.

Acontecem gravíssimos erros epistemológicos – panes de sistema, caso queiramos seguir com as metáforas informacionais – quando se objetiva desenvolver estudos nas ciências sociais e humanas a partir de números e parâmetros estritamente delimitados, como usualmente ocorre nas ciências informáticas, naturais e exatas. Entender pessoas como números – ou seus múltiplos e complexos fatores em um mundo culturalmente híbrido como informações binárias – acarreta resultados limitantes, excludentes e reducionistas. O enorme problema é que esses erros não acontecem em um ambiente artificial, epistemológico, mas materializam-se no mundo real, político, reforçando preconceitos, amplificando as desigualdades e tirando a vida de pessoas que não se enquadram nos estritos limites do que seria aceitável em um pensamento computacional e eugênico.

Tiacaomotli acuamtns, da série Flora mutandis, de Giselle Beilguelman, 2022. Imagem criada com Inteligência Artificial (Style GAN2).

O estabelecimento de critérios puros – pureza essa intimamente atrelada à concepção de belo e às tradições artísticas – estruturam os sistemas de pensamento e poder autoritários e tecnocratas. A partir de uma postura tirânica e ditatorial, o que não se encaixa nos inflexíveis e rigorosos parâmetros estabelecidos por quem configura a máquina política é descartado, tomando os desvios de padrão como violações. Beiguelman utiliza esse mesmo procedimento para expor a tirania que o estrutura, mas em um campo altamente controlado e provocativamente inofensivo, que é o do cruzamento digital de imagens botânicas.

Botannica Tirannica não é essencialmente sobre plantas, mas sobre suas nomenclaturas; não é sobre o ato da gênese, mas do batismo. Ler o ato da instituição da terminologia – ou do “descobrimento” – como o da criação evidencia uma confusão de ordens, tomando uma referência individual e ensimesmada como parâmetro universal. Não é por coincidência que as dinâmicas colonialistas, tão ligadas à exploração natural, reiteram esse ciclo, decretando origens artificiais a coisas há muito tempo firmadas.

A pesquisa de Beiguelman reitera, na história da botânica colonial, a planejada retirada das funções ritualísticas, religiosas e de cura já instituídas pelos povos tradicionais à natureza, como em uma assepsia forçada do outro. Apagam, inclusive, muitos dos nomes dados pelas comunidades nativas, em um isolamento imagético que almeja o purismo científico, encarando as tradições dos grupos originários como máculas a serem saneadas, ou infestações a serem controladas. Essas dinâmicas de elaboração através do apagamento constituem sistemas estéticos ainda reverberantes, baseados em uma visão utilitária da imagem. ///

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A exposição Botannica Tirannica tem curadoria de Ilana Feldman e está em cartaz no Museu Judaico de São Paulo até 18 de setembro.

Mateus Nunes é doutor em História da Arte pela Universidade de Lisboa, com período na Universidade de São Paulo (USP), onde é professor convidado. Arquiteto e Urbanista pela Universidade Federal do Pará (UFPA), em Belém, é pesquisador integrado do Instituto de História da Arte da Universidade de Lisboa (ARTIS).