Exposições

A língua de Lenora de Barros

Priscila Arantes Publicado em: 2 de fevereiro de 2023

A cara. A língua. O ventre., de Lenora de Barros, 2022. Vídeo comissionado pela Pinacoteca do Estado de São Paulo.

Ocupando três galerias do segundo andar da Pinacoteca Luz (SP), a exposição Lenora de Barros: minha língua apresenta cerca de 40 obras da artista realizadas entre 1975 e 2022 e um trabalho inédito instalado na sala central da mostra. No vídeo A Cara. A Língua. O Ventre , dividido em três partes, a artista utiliza a argila para modelar formas diversas, ‘videoformas’, nas palavras de Augusto de Campos, que se metamorfoseiam em objetos escultóricos colocados no meio do espaço expositivo.

Em um dos vídeos, Lenora modela uma enorme língua em argila em primeiro plano, que parece sair de sua cavidade bucal. Com suas mãos ela alisa a língua em repetidos gestos simulando o movimento da fala, de dentro para fora, até a língua se partir ao meio.  No mesmo vídeo, manipula a argila nas palmas das mãos para criar formas que evocam rostos, com olhos e bocas que se movem produzindo ruídos sonoros em um balbuciar vociferante.  Estas formas, como a máscara e a língua, atuam como fio condutor de toda a exposição e podem ser vistas em diálogo com as obras que constituem as duas salas laterais da mostra: Caras e Bocas e Eu não disse nada. Compostas por produções em diferentes linguagens Lenora de Barros: minha língua, que conta a com a curadoria de Pollyana Quintela, é um convite para entendermos as articulações entre corpo, imagem, poesia e linguagem ‘modeladas’ pelas mãos da artista.

Presente no título da exposição, a palavra Língua ganha, na mostra, uma pluralidade de sentidos. A um só tempo órgão muscular, situado na boca e na faringe, responsável pelo paladar e auxiliar na mastigação e na deglutição, a língua integra o aparelho digestivo e por isso lambe, mastiga, engole e come.  A língua é músculo que produz ruídos, sons, balbucios e fala. Ela institui regras, leis, ordens; ela edifica e estrutura a cultura. Língua é linguagem e sistema abstrato de signos que comunica ideias através de formas diversas. Muitas vezes estas formas se manifestam através de imagens que, para além de serem lupas para entendermos o que nomeamos por realidade, são códigos que se alimentam de sentidos diversos em um movimento contínuo de criação e ressignificação da Linguagem.

Linguagem, de Lenora de Barros, 1990-2022. Fotografias: Fabiana de Barros (1979), Ruy Teixeira (1990), Marcos Augusto Gonçalves (1994), Marcos Ribeiro (2008), Tatiana Dalla Bonna (2017), Gustavo Machado (2021) e Marcos Ribeiro (2022).

As imagens poéticas de Lenora de Barros criam mundos e realidades próprias. Não por acaso, na entrada da sala Caras e Bocas, nos deparamos com a série Linguagem (1990- 2022), obra em processo em que a artista registra, através da imagem fotográfica, a sua própria língua em processo de envelhecimento e transformação. Trata-se de uma sequência de sete imagens em que a artista apresenta o registro de sua língua em diferentes anos – 1979, 1990, 1994, 2008, 2017, 2021 e 2022 – em um mesmo enquadramento e em big close. Para além de nos apresentar a fotografia de uma língua humana, Linguagem, como indica o título do trabalho, nos convida a refletir sobre a constituição da linguagem, construção que se dá no tempo e em contínuo processo de transformação.  Aqui as rasuras, fissuras e sulcos cobertos de mucosa que fazem parte das características da língua humana ganham outros sentidos; se transformam em marcas gráficas, em códigos e signos que, como uma espécie de texto cifrado, se materializam em Linguagem.

As imagens em Linguagem constroem uma narrativa visual com uma espécie de sequencialidade algo cinematográfica que expressa o gosto pela imagem-tempo, característico de outros trabalhos da artista.  O corpo aqui, ou melhor, a língua é uma imagem-tempo tornada poesia; uma poesia não intermediada por palavras escritas somente, mas por códigos imagéticos.

Poema, de Lenora de Barros, 1979. Publicado em 1981 na Revista Zero À Esquerda e em 1983 no primeiro livro da artista, ONDE SE VÊ. Registro fotográfico: Fabiana de Barros

Em Poema, obra de 1979, temos também uma imagem contundente deste corpo-língua tornado imagem como poesia. Formada por seis imagens colocadas na vertical como uma espécie de ‘coluna vertebral’, a obra manifesta o encontro íntimo entre a língua e a máquina de escrever. Cada ‘fotograma’ de Poema apresenta um momento chave desta relação com mudanças de plano e enquadramento. Da primeira imagem da boca e da língua da artista, em um grande close, passando pela língua que percorre e lambe os teclados para ser devorada pela máquina de escrever, Poema nos convida a testemunhar o ato de sua criação. Apesar de não ter aqui nenhuma palavra, a não ser no título da obra, é do gesto criador e da comunhão erótica entre língua e escrita, entre língua e linguagem, que fala o poema; ideia que se repete no trabalho Dizendo quase nada (1979-2013), uma sequência de três imagens na vertical em que a artista acopla a imagem de sua boca a teclados de máquinas de datilografar.  

Dizendo quase nada, de Lenora de Barros, 1979-2013. Fotografia: Fabiana de Barros e Ruy Teixeira.

Diferentemente de Linguagem, em Poema percebe-se o recurso da fotomontagem como dispositivo narrativo na criação do poema visual. As imagens estão recortadas e colocadas em sequência e afixadas em um fundo neutro fortalecendo a carga imagética da relação entre a língua e a máquina. Através da manipulação manual a artista interfere na fotografia; recorta, cola, isola, criando um poema visual que revela o processo da criação poética.

Língua Vertebral, de Lenora de Barros, 1998/2010. Colagem digital. Fotografia: Marcos Ribeiro.

A língua como elemento de linguagem aparece em várias obras da artista, estabelecendo diálogos potentes com questões cruciais da arte brasileira. Em Língua vertebral, realizada no contexto da 24a Bienal de São Paulo em 1998, Lenora amplia, por meio de recursos digitais, sua língua, colocando sobre ela uma coluna vertebral em metal como uma espécie de metáfora visual estruturante. Já no poema visual No país da língua grande daí carne a quem quer carne (1998) a artista apresenta a imagem de sua boca mastigando a própria língua. O título do trabalho faz alusão à frase no país da cobra grande presente do Manifesto Antropofágico de Oswald de Andrade, expressando a ideia de uma ação devoradora de sentidos. Podemos dizer que nesses trabalhos, ambos apresentados no contexto da ‘Bienal da Antropofagia’, a artista aproxima a dimensão do corpóreo e da linguagem à discussão sobre a identidade cultural brasileira. Por meio da boca e do ato canibal, quase sinônimos do ato antropofágico e da devoração do Outro, neste caso da Linguagem, a boca come sua própria língua a fim de assimilar suas potencialidades.

Homenagem a George Segal, de Lenora de Barros, 1975/2014.

A utilização do rosto da artista também se faz presente na fotoperformance Homenagem a George Segal (1975), um dos trabalhos mais antigos da exposição: uma sequência de nove imagens em que a artista desenvolve a ação cotidiana de escovar os dentes. Seu rosto, no entanto, é totalmente coberto ao final da performance por uma espuma branca, criando uma espécie de máscara visual. Adquirindo diferentes texturas e materialidades em outros trabalhos, ora através de gorros como nas videoperformances Ela não quer ver (2005), Há mulheres (2005) e Já vi tudo (2005), de perucas como em Procuro-me ou de membranas de plástico ou sacos de papel como em Mim quer sair de si (1993) e Eu não disse nada (1990), as máscaras adquirem muitas vezes um carácter cênico e performático nos trabalhos de Lenora de Barros. Em Homenagem a George Segal, a máscara de espuma branca estabelece não somente um diálogo com a obra do artista pop George Segal que criava esculturas em gesso branco mas, ao mesmo tempo, aponta para a ideia de engessamento e paralisia da linguagem.

Silêncio e Calaboca 1, de Lenora de Barros, 1990/2006. Foto performance + vídeo. Fotografia: Ruy Teixeira. Edição: Lenora de Barros e Luciano Mariussi. Fotografia e câmera: Luciano Mariussi. Som: Cid Campos.

Em Calaboca e silêncio (1990-2006) a interdição da fala adquire contornos mais evidentes. Neste trabalho temos oito fotografias em sequência colocadas em formato horizontal. Em todas as imagens temos uma boca aberta, em primeiro plano, com uma letra formando em seu conjunto a palavra silêncio. O que se ingere pela boca não é somente o alimento, nem só o ato poético, mas também a violência e a interdição da linguagem. Nesta fotoperformance a artista faz uso da serialidade para falar do dito e do não dito, dos limites da expressão e da fala, da comunicação e liberdade. Muitas vezes em um tom irônico e antagônico, as obras de Lenora criam um diálogo potente com o contexto presente e os debates sobre as narrativas e falas silenciadas.

CALABOCA, de Lenora de Barros, 2006. Videoperformance, 52”. Edição: Lenora de Barros e Luciano Mariussi. Câmera e fotografia: Luciano Mariussi. Som: Cid Campos.

A boca, a voz, a língua e a fala passam a ser alvo e lugar de disputa de narrativas também nas obras Silêncio (A enfermeira), (2014), Alvos (2017) e Estudo para facadas (2013). No vídeo CALABOCA (2006) a artista ‘martela’, letra por letra, a palavra silêncio em sua língua.

Pregação, de Lenora de Barros, 2014/2022. Fotografia: Fernando Laszlo

Seria possível a existência de um mundo sem a povoação dos signos e da linguagem? Seria possível o silêncio absoluto? Em Pregação temos o registro fotográfico da palavra silêncio, resultado da performance coletiva que ocorreu em 2016 na exposição Issoéossodisso no Paço das Artes. Nesta ação os participantes, munidos de martelo e pregos, fixavam no meio de um barulho ensurdecedor a palavra silêncio no espaço expositivo. A obra, composta por códigos sonoros, performáticos e visuais, reivindicava não uma pausa acústica, mas este espaço povoado de linguagem e da ação coletiva de corpos em movimento. É neste jogo entre a ação corporal coletiva e a palavra que o poema e a linguagem se constroem. Não seria exagero dizer que esta ideia de origem, quase metafísica da Linguagem, faz parte de vários trabalhos de Lenora como em seu vídeo A Cara. A Língua. O Ventre. Na última parte deste tríptico Lenora de Barros modela em argila seu próprio ventre circunscrevendo seu umbigo, orifício corporal por onde passou o cordão umbilical. A Linguagem é Corpo, é Poesia. É o seu próprio corpo, seu rosto, sua língua, seu ventre feminino que se materializa em força poética e que se traduze em linguagem em uma produção repleta de sentidos. ///

Priscila Arantes e crítica, curadora, gestora cultural e pesquisadora. É professora do departamento de artes da PUC-SP,  pesquisadora colaboradora  do MAC-USP e vice-presidente da ABCA . Entre 2007 e 2020 foi curadora e diretora do Paço das Artes (SP).

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