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Documenta 15: filmes e arquivos fotográficos destacam narrativas divergentes

Nathalia Lavigne Publicado em: 18 de agosto de 2022
Still do filme Projeto do Sistema de Águas, de Cao Minghao & Chen Jianjun, Wen Chuan, 2019. Foto: Cao Minghao e Chen Jianjun.

Não dá para se esperar pouco de uma mostra que nasceu com a ambição de reerguer a imagem de um país colapsado pela Segunda Guerra e culturalmente em ruínas. Fundada em 1955, grande parte com a missão de dissociar a Alemanha da sombra do Nazismo, a documenta de Kassel se tornou rapidamente o evento de arte mais importante do mundo ocidental. A ambição de apresentar a cada cinco anos (inicialmente quatro) uma produção artística internacional e democrática, nas palavras de seu fundador, Arnold Bose, se manteve como discurso oficial ao longo dos anos, embora na prática o resultado fosse outro. Por muito tempo, boa parte do mundo ficou de fora do que se entendia como “global” – inclusive artistas da vizinha Alemanha oriental e do leste europeu, que só nos anos 1970 ganhariam espaço na mostra. A ideia de um evento democrático também foi se revelando bastante falaciosa. Um trabalho do coletivo Guerrilla Girls sobre a documenta 8 – “Por que em 1987 a documenta é 95% branca e 83% masculina?” – resume bem o problema.

Na curadoria, foi apenas em 2002 que um não-europeu assumiu a direção artística – o nigeriano Okwui Enwezor. Ainda assim, a representação de artistas do Sul Global seguiu bastante restrita depois disso. É nesse contexto que a documenta 15 traz uma mudança de eixo importante, especialmente levando-se em conta o histórico da mostra. Com o coletivo indonésio ruangrupa assinando a direção artística, essa é a primeira vez que um grupo de artistas e ativistas toma a frente da curadoria da instituição na qual se consolidou a figura do curador profissional, centralizador de escolhas que definem tendências e gostos.

Tudo isso é posto em xeque nessa edição, que propõe uma transformação radical nos formatos e modelos institucionais. A começar pelos nomes: ouve-se por toda parte falar dos Lumburgs – termo usado na zona rural na Indonésia para os celeiros onde o excedente da colheita de arroz é armazenado de forma comunitária, adaptado aqui como modelo de trabalho colaborativo, definindo a estrutura da mostra. Ou também de nongkrong, a arte de sair e socializar. O Fridericianum, um dos primeiros museus públicos do mundo e principal espaço da documenta, passou a ser chamado de Fridskul, um museu-escola onde acontecem cursos, seminários e alguns artistas estão vivendo temporariamente.

Sim, os nomes soam estranhos, e leva-se um tempo para se adaptar a eles e à proposta curatorial como um todo. E tempo é artigo raro para quem está maratonando por dois ou três dias para visitar o máximo possível dos 39 espaços espalhados pela cidade. Mas o modo de ver uma exposição como essa documenta é outro. Muitas vezes nem há muito o que ver, de fato, já que grande parte dos trabalhos só acontecem verdadeiramente quando ativados.

É nesse sentido que a produção audiovisual e de imagem acaba tendo um dos papéis mais importantes nessa edição. Primeiro, pelo aspecto documental. Se essa não é uma exposição de objetos, e nem sempre é possível acompanhar o que acontece ao vivo, é por esse formato que o trabalho dos artistas e coletivos é apresentado. E há de fato uma preocupação bastante didática da curadoria em contextualizar, por meio de entrevistas e depoimentos, outras metodologias que envolvem ações de impacto político ou social. Há também um nome criado para isso: Harvest (colheita), uma documentação traduzida na linguagem de práticas artísticas de cada um, às vezes mais poética ou bem-humorada.

É o caso dos vídeos no formato de sitcom do coletivo chinês BOLOHO, uma sátira ao gênero de programas que os integrantes assistiam na infância, carregados de mensagens ideológicas em defesa de valores familiares. Um dos episódios, O Sonho de Bolohope (2022) – uma referência ao nome do grupo, que em cantonês significa “núcleo da jaca” – conta a história um tanto absurda de um mundo paralelo que existe dentro da fruta, uma metáfora bem-humorada sobre produções fora dos grandes centros descartadas de antemão. Difícil avaliar a qualidade dos vídeos em si sem dizer que eles ficam passando na cafeteria de uma antiga fábrica transformada pelo coletivo em um restaurante cantonês. Ou seja: são facilmente imperceptíveis com todo o ruído e distração desse ambiente, e talvez seja essa situação de pano de fundo que deixa as narrativas non sense mais curiosas e interessantes.

Meme publicado pelo perfil do Instagram Cem A., criador da página @freeze_magazine

O humor dos memes também tem espaço nessa edição com a colaboração de Cem A., criador da página do Instagram @freeze_magazine, que ironiza especialmente a precariedade dos formatos de trabalho no mundo da arte. Sua participação na documenta como curador-assistente é diversa: inclui desde ilustrações feitas para publicações, aulas e outras ações autoirônicas no formato de crítica institucional. Em uma festa de aniversário na cozinha colaborativa do Fridskul, ele distribuía tatuagens de henna com dizeres como ‘I love Kassel’, aplicando e fotografando em quem se voluntariasse.

Mural do Arquivo das lutas de mulheres na Argélia, uma coleção de coletivos feministas e de direitos das mulheres desde os anos 1990. Foto: Hichem Merouche, cortesia do Arquivo das lutas de mulheres na Argélia.

Práticas arquivistas independentes são outro recorte importante, concentradas no segundo andar do Fridericianum (ou Fridskul), onde estão o Archives des luttes des femmes en Algérie, o Asia Art Archive e o The Black Archives. O primeiro, criado em 2019 no contexto das manifestações contra o governo argelino, reconstitui outros momentos de protestos sociais nos anos 1980 e 1990 em que as mulheres tiveram um papel central e pouco reconhecido em um país altamente patriarcal. A pouca representatividade de mulheres na história da arte asiática é também um dos focos do Asia Art Archive, com sede em Hong Kong, que desde 2000 vem conectando artistas e pesquisadores de diversas partes do continente, discutindo outras formas de arquivar imagens em diálogo com histórias locais.

É uma proposta parecida dos artistas chineses Cao Minghao e Chen Jianjun, que apresentam alguns dos vídeos mais bonitos dessa edição. Um deles é o Water System Museum (2015-18), em que a dupla investigou um controverso projeto de irrigação na cidade de Sichuan, trabalhando em colaboração com urbanistas, moradores e ambientalistas. Além do vídeo, há também uma série de fotos mostrando um barco de madeira abandonado reutilizado como plataforma de encontros para se debater sobre o sistema de água local – um grande problema ambiental nessa região rural da China, onde aldeias inteiras já desapareceram.

A ideia de mapear as lacunas nos arquivos é outro recorte de projetos ativistas como o Instituto de Artivismo Hannah Arendt (INSTAR), criado em 2015 pela artista cubana Tania Bruguera para leitura coletiva do livro As Origens do Totalitarismo (1951), desdobrando-se em diversas ações desde então. Na mostra, o grupo apresenta o que chama de Factografia Operacional – um mural em construção com nomes de artistas e intelectuais censurados pelo governo entre 1959 e 2022, alguns com os retratos em forma de marionetes.

Coletivo A Comunidade do Filme de Rojava, filmando Histórias de cidades destruídas, em Derbesiye, 2016. Foto: Nadia Derwish.

Outro aspecto que chama atenção é a quantidade de ambientes de sociabilidade ou espaços para sentar e deitar, especialmente onde estão os vídeos. Acaba sendo um atrativo imediato e determinante na decisão de permanecer mais tempo vendo uma obra. É o caso da sala onde são exibidos os filmes do coletivo The Rojava Film Commune, projeto fascinante de uma escola de cinema criada na região autônoma no norte da Síria, que mesmo antes da guerra já tinha sido bastante afetada por políticas de apagamentos de culturas locais. Ou na instalação do Centre d’art Waza, coletivo fundando em 2010 por artistas e curadores do Congo, onde assistimos o vídeo em um domo, visível apenas para quem está deitado. Ou, ainda, no ambiente de estudo criado pelo Le 18, do Marrakesch, no qual é possível escolher qual DVD assistir entre a seleção disponível de filmes marroquinos. 

De forma parecida, as ideias de autonomia e a liberdade do espectador também conduzem o projeto apresentado por Graziela Kunsch, única artista brasileira desta documenta, que transformou um dos espaços no térreo do Fridericianum em uma creche pública, onde é possível entrar sem pagar entrada. Sua intenção, no caso, é pensar a autonomia no desenvolvimento motor de bebês até três anos, inspirada na abordagem da pediatra austro-húngara Emmi Pikler (1902-1984) desenvolvida no pós-guerra em um orfanato criado por ela em 1946. Além dos ambientes utilizando um mobiliário específico que incentiva movimentos autônomos das crianças, há uma série da fotógrafa húngara Marian Reismann (1911-1991) com uma rica documentação do processo conduzido no Instituto Pikler, e um vídeo feito por Graziela utilizando a mesma abordagem pedagógica com sua filha.

Still do vídeo Manu’s free motor development, de Graziela Kunsch, parte do projeto Public Daycare, 2019 (em andamento).

Se a (auto)documentação é um dos pontos fortes dessa documenta, não deixa de ser uma ironia e infelicidade que a recepção da mostra até o momento tenha sido marcada por um único assunto, a essa altura impossível de ser ignorado ao se falar sobre essa edição: as acusações de antissemitismo, tema que no contexto alemão tem uma conotação mais grave e inflamável, por razões óbvias. E, de fato, sobrou para todo mundo: para os autores do trabalho em questão, o coletivo indonésio Taring Padi, que se desculparam pelas ilustrações representando judeus com nariz adunco e uniforme da Mossad (serviço de espionagem israelense), imagens claramente antissemitas; para a diretora geral, Sabine Schormann, que deixou o cargo em meados de junho; mas, principalmente, para o ruangrupa, que desde janeiro vem sofrendo ataques pela acusação/suposição de antissemitismo pelo trabalho como um todo, com alegações de um posicionamento pró-palestina pelas escolhas dos artistas.

Sobrou até para quem nem participa da documenta, como a instituição de São Paulo Casa do Povo, que, recentemente, publicou um texto no e-flux negando rumores de que teriam sido desconvidados da mostra por protestos de outros participantes críticos a Israel. Na carta, eles lamentam o episódio sobre o trabalho do Taring Padi, mas saem em defesa do ruangrupa dos ataques infundados ou mesmo (também) racistas. “Estamos agora enfrentando uma inversão perigosa da violência antissemita de uma forma muito preocupante. As mesmas estratégias que sustentaram o antissemitismo por décadas estão sendo usadas no debate público para condenar o ruangrupa. Em vez de conversas abertas, o debate público é alimentado por denúncias e boatos”, escrevem.

Em outra carta assinada por 65 participantes e lida em um evento transmitido pela plataforma do INSTAR, divulgado no Instagram da artista Tania Bruguera, eles relatam a sequência de episódios envolvendo os ataques, alguns também de cunho transfóbico contra a coletivo Party Office, além de cyberstalking e outras ameaças. Reclamam da falta de posicionamento por parte da instituição sobre esses casos. Em contrapartida, enumeram uma série de medidas adotadas sem haver um diálogo com os artistas ou curadores, entre eles que a exposição passe por um processo de consultoria de acadêmicos para avaliar outros trabalhos possivelmente antissemitas, o que refutam na carta.

Interessante pensar como a repercussão dos escândalos reverbera o formato curatorial dessa edição. Por um lado, a proposta do ruangrupa parece fazer ainda mais sentido: a organização por meio de coletivos como forma de lidar com ambientes institucionais desiguais e hostis; a pluralidade de canais para que outros discursos sejam ouvidos pelos mesmos motivos. Ao mesmo tempo, difícil nesse momento não olhar para a documenta 15 com o algum pessimismo de que o formato, embora inovador em tantos sentidos, dificilmente vai ser repetido. Mais uma razão para valorizar os arquivos e a busca incessante por outras versões que o presente não comporta. ///

Nathalia Lavigne é pesquisadora, jornalista e curadora. Atualmente vive em Berlim, após um período como pesquisadora visitante da Humboldt Universität zu Berlin, contemplada com uma bolsa da DAAD em 2021.

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