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O espanhol Joan Fontcuberta fala sobre fotografia e a decadência da mentira no festival Solar, que começa hoje em Fortaleza

Publicado em: 5 de dezembro de 2018

Manbaa Mokfhi diverte os seus companheiros agindo como um equilibrista em cima da sua mula. O instantâneo capta precisamente a pirueta chamada ‘estrela do céu’, muito apreciada entre os mujahideen, da série Desconstruindo Osama, de Joan Fontcuberta, 2002. Cortesia do autor.

De passagem por Fortaleza, onde participa da primeira edição do Fotofestival Solar, o fótografo e escritor catalão Joan Fontcuberta respondeu algumas perguntas sobre seu trabalho, principalmente em torno da pós-verdade e fake news, temas que sempre abordou em seus projetos. “Cada época adota seu regime de verdade. Hoje vivemos o regime da ‘mentirocracia’. Apesar de assistirmos à irrupção furiosa da pós-verdade e dos fatos alternativos, o paradoxo é que, para manipular, hoje em dia não é preciso nem mentir”, comenta Fontcuberta.

Ao redor do tema Abismo, o I Fotofestival Solar, que começa hoje na capital cearense, apresentará exposições, debates, projeções e filmes até o próximo dia 9 de dezembro. As mostras Terra em transe, Sobre a cor da sua pele, Sueño de la razón, Miragem e Vento solar acontecem em diferentes espaços do Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura. No ciclo de debates, além da presença de Joan Fontcuberta, o festival contará, entre outros, com a presença de Maureen Bisilliat, Nair Benedicto, Berna Reale e Tatewaki Nio (ganhador da Bolsa ZUM de Fotografia 2017).

Leia abaixo entrevista com Joan Fontcuberta: 

Seu trabalho como curador, escritor, fotógrafo, artista e pesquisador está sempre, de maneiras diferentes, perguntando: até que ponto podemos acreditar nas fotografias? Então pergunto: até que ponto podemos acreditar em Joan Fontcuberta?

Joan Fontcuberta: Acima de tudo, o motor que tem guiado minha vida e meu trabalho é a dúvida. É com a dúvida que a racionalidade se impõe ao dogma. Você tem que duvidar de tudo, até da necessidade de duvidar. Portanto, definitivamente também devemos duvidar de Joan Fontcuberta.

Manbaa Mokfhi, com um guarda-costas, descansa no palácio enquanto espera pelo tapete voador que o levará ao local da luta, da série Desconstruindo Osama, de Joan Fontcuberta, 2004. Cortesia do autor.

Quanto à crença na veracidade das imagens, como mudou (se é que mudou) sua percepção sobre o tema desde seus primeiros trabalhos na década de 1980 (como Herbarium ou Fauna) diante de casos mais recentes de fake news com impacto decisivo em importantes questões políticas, como Brexit e as eleições de Trump e Bolsonaro?

JF: Cada época adota seu regime de verdade. Hoje vivemos o regime da “mentirocracia”. Apesar de assistirmos à irrupção furiosa da pós-verdade e dos fatos alternativos, o paradoxo é que, para manipular, hoje em dia não é preciso nem mentir. Basta uma dose de informação interessante que distorça a interpretação dos eventos. Desde Maquiavel e Goebbels que essas técnicas são bem conhecidas. A diferença agora está na gestão das evidências. Desviar o olhar e focar nos acontecimentos de uma maneira discriminatória são recursos bem eficientes para a demagogia e a distorção de informações. Umberto Eco já escreveu em seu romance Número zero: “os jornais não foram feitos para difundir notícias, mas para escondê-las”. A mídia não quer mais informar, mas persuadir. Não quer mais fazer jornalismo, mas sim política.

Solenoglypha polipodida, da série Fauna, de Joan Fontcuberta, 1987. Cortesia do autor.

Os rótulos e categorias em torno da fotografia (documental, artística, etc.) são cada vez mais fluidos e questionáveis. Para muitos profissionais, isso soa assustador e intimidante. Que conselho você daria para estes fotógrafos e artistas?

JF: Sempre achei que não há fotografias boas ou ruins, mas bons ou maus usos da fotografia. Agora, com a inteligência artificial, os algoritmos e machine learning, o ato de olhar está se deslocando do olho. Fazer fotografias é cada vez mais o resultado de processos automatizados. E a produção de imagens está se tornando mais fácil, sem exigir talento nem competência técnica. Neste contexto, o que importa é a gestão da imagem, a prescrição de um sentido. Precisamos repensar os “quartos” que a fotografia habita.

Você pode nos contar um pouco sobre seus projetos em andamento? Para onde está indo a sua fotografia?

JF: Além de alguns projetos focados na metodologia do fake, estou interessado em pensar a desmaterialização da imagem. Nesse sentido, estou a alguns anos desenvolvendo uma série chamada Trauma, visitando arquivos na busca de imagens em estado de deterioração traumática: fotografias doentes, fotografias que sofreram algum tipo de distúrbio que tenha perturbado sua função documental e as desabilite a continuar “habitando” esse arquivo. Se antes nos gabávamos de usar a câmera para vencer o tempo e aprisionar experiências e histórias, agora percebemos que essa ilusão pode ter durado muito. Mas não dura para sempre e, eventualmente, o tempo acaba cobrando sua vingança: a fotografia, antes um baluarte da memória, torna-se amnésica e a imagem vira um fantasma.///

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Mais informações sobre o I Fotofestival Solar aqui.

 

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