ZUM Quarentena

A imagem da pandemia – 1918-2020

Ana Maria Mauad Publicado em: 22 de setembro de 2020

A influenza que entrou para a história como “gripe espanhola” foi a pandemia mais avassaladora do século 20. Grassando em um território já combalido pelos quatro anos da Primeira Grande Guerra, estima-se que tenha sido responsável pela morte de 20 a 50 milhões de pessoas entre os anos 1918 e 1919.

O vírus ganhou esse apodo porque a Espanha – que havia se mantido neutra no conflito – foi a primeira a detectar casos e anunciar os perigos da doença. Contudo, suspeita-se que ela tenha migrado dos porcos para os seres humanos em fazendas do Kansas, nos EUA, e desembarcado na Europa junto com os soldados americanos quando o país entrou na guerra, em 6 de abril de 1917. Além de cidades assoladas pelo conflito, na Europa o vírus encontrou grandes concentrações de soldados – cenário perfeito para uma contaminação em massa.

Segundo matéria publicada pelo jornal inglês The Independent (“A grande praga”, 21 de fevereiro de 1920), a característica mais marcante da epidemia – identificada como Spanish influenza – era a sua extensão. Além do caráter pandêmico, o artigo destacava a forma como a gripe de 1918 atacava a população, com um maior número de óbitos nas comunidades indígenas e entre os jovens de 20 a 40 anos, poupando a vida de crianças e idosos. A extensão e rapidez do contágio e o perfil dos óbitos levou o articulista à seguinte conclusão: “A ciência médica raramente foi confrontada por tão estranho quebra-cabeça”.

Cem anos depois, a humanidade confronta-se com outro trágico quebra-cabeça. Embora a ciência, nesse intervalo, tenha descoberto muita coisa sobre os vírus, as condições de transmissão no mundo globalizado e fatores políticos colocaram em xeque nossa capacidade de lidar com esse jogo de vida ou morte. A partir de um paralelo entre a covid-19, provocada pelo novo coronavírus (SARS-CoV-2), e a gripe espanhola de 1918, provocada por uma variação do influenza H1N1, podemos fazer um panorama dos universos visuais que se configuram em torno dos dois eventos pandêmicos. Embora ainda em curso, a pandemia de covid-19 já deixou um rastro de imagens significativas, que, provavelmente, serão acionadas pela memória futura, em um repertório semelhante àquele criado pela gripe espanhola.

 

Detalhe da capa do jornal A Noite de 15/10/1915. Na legenda, lê-se: “Luiz Lopes, o ‘espanholado’ que morreu na rua da Misericórdia”. A imagem foi replicada na edição de 16 de outubro da Gazeta de Notícias. (Acervo da Fundação Biblioteca Nacional – Brasil)

 

1918

Nos tempos do telégrafo e do transporte a vapor, o vírus da gripe espanhola chegou ao Rio de Janeiro, então capital federal, entre fins de setembro e início de outubro por duas vias: a primeira de Dacar, no Senegal, trazida pelas forças brasileiras que atuavam na região; e a segunda por meio do navio mercante inglês S.S. Demerara, que havia percorrido a rota Liverpool-Dacar-Recife-Salvador-Rio de Janeiro, onde aportou sem nenhuma quarentena.

A influenza de 1918, com toda a sua virulência, trouxe a doença para o centro do noticiário, deslocando a Grande Guerra na Europa a manchete secundária. A epidemia invadiu os jornais na terça-feira, 15 de outubro, quando os principais matutinos e vespertinos estamparam em suas capas, em letras garrafais, a situação calamitosa da capital: “O Rio é um vasto hospital: a invasão da influenza espanhola/a desídia criminosa do governo” (Gazeta de Notícias, 15/10/1918); “A epidemia da gripe toma cada vez maior vulto: tem-se a impressão que o Rio de Janeiro é um vasto hospital” (Correio da Manhã, 15/10/1918); “O Mal: a população apreensiva – É desolador o aspecto da cidade. Estabelecimentos que se fecham. Escolas, teatros, cinemas, fábricas” (A Noite, 15/10/1918). As três edições traziam fotografias, algo então pouco usual nos jornais diários. Em cada veículo, a tragédia ganhou o aspecto do desespero.

 

As manchetes que explodiram em outubro revelavam o drama provocado pelo aumento exponencial da epidemia, que teve sua divulgação censurada nos meios militares logo ao chegar. Nos jornais diários, a bomba epidêmica que explodiu na edição de 15 de outubro continuou lançando estilhaços até o fim do mês. No dia 31, o jornal Correio da Manhã estampou em sua primeira página a “estatística dos mortos” feita pelo governo da capital, com dados fornecidos pelos administradores dos cemitérios, evidenciando que, entre 12 e 30 de outubro, 7.730 pessoas haviam sido enterradas nos 11 cemitérios da cidade e arrabaldes. Os números finais revelam um quadro catastrófico: de uma população de 30 milhões de pessoas, 66% infectados e cerca de 35 mil mortos – 15 mil só na capital.

A partir de novembro, a força da epidemia como notícia diária diminuiu significativamente, embora o número de óbitos continuasse crescendo, sobretudo nos subúrbios. Na edição de 6 de novembro, a gripe ainda ocupava a primeira página, mas como notícia secundária às tratativas do armistício na Europa; e não se noticiavam mais os desdobramentos da doença, mas a sua superação: “Liberando-se da ação nefasta da epidemia, a cidade normaliza-se” (A Noite, 6/11/1918). A Gazeta de Notícias, em franca oposição ao governo – a ponto de batizar a epidemia de “mal de Seidl”, em alusão a Carlos Pinto Seidl, diretor de Saúde Pública, exonerado em meio à epidemia –, concluiu a sua narrativa com o balanço final dos mortos: “As vítimas do governo Venceslau: 20.000 mortos pelo ‘Mal de Seidl’”, e acusava o governo de esconder estatísticas, “receoso de mostrar ao povo a extensão das desgraças ocasionadas pela sua criminosa desídia” (8/11/1918).

 

Revista da Semana, 16/11/1918: “A edição de sábado dia 16 de novembro apresenta a multidão em festa na Avenida, celebrando o fim da Grande Guerra, com a assinatura do armistício em 11 de novembro de 1918. As celebrações promovem grande aglomeração no centro da Capital que já considerava a pandemia de influenza superada” (Acervo da Fundação Biblioteca Nacional – Brasil)

A epidemia de influenza chegou às páginas das revistas ilustradas num sábado, dia 26 de outubro de 1918, com um atraso de quase duas semanas em relação aos jornais diários. Essas revistas semanais assumiram a narrativa visual da epidemia. Após a exoneração de Seidl, o dr. Theofilo Torres, seu substituto como diretor de Saúde Pública, então o principal órgão federal da área, delegou a Carlos Chagas, diretor do Instituto Oswaldo Cruz, a missão de organizar os serviços de atendimento à população enferma – identificada pela imprensa como “espanholados”. Uma das principais iniciativas de Chagas foi converter as escolas em hospitais, para atendimento da população, e o recrutamento de agentes de saúde para visitar as comunidades nos morros e subúrbios da Capital. As escolas haviam sido fechadas em 15 de outubro, assim como todos os serviços não essenciais – como teatros, cafés e restaurantes –, por decreto municipal do prefeito Amaro Cavalcanti. Entretanto, os serviços fundamentais, como farmácias e mercados, funcionavam apenas parcialmente, porque boa parte da população da cidade caíra doente.

Nas fotografias veiculadas, médicos, enfermeiras e agentes de saúde, junto aos doentes, foram eleitos os protagonistas da trama. A população perambulava pela cidade em busca de víveres por conta da grave crise de desabastecimento; filas se formavam em frente às principais escolas municipais, quartéis e casas de caridade para receber alimentos das mãos de senhoras da elite; os mortos se multiplicavam, empilhados em caminhões ou sendo enterrados em valas comuns. A gripe não poupou nem o presidente eleito Rodrigues Alves, que, diagnosticado com a moléstia, faleceria sem tomar posse.

 

 

Ao encapsular a epidemia em notícia, a imprensa, diária e semanal, codificou o caos que se abateu sobre a cidade, definindo personagens, lugares e papéis sociais na narrativa epidêmica, inclusive naturalizando a desigualdade social. O arrefecimento da epidemia foi também delimitado pela imprensa ao elevar um outro evento – a negociação para o fim da Grande Guerra, que levou à assinatura do armistício, em 11 de novembro de 1918 – ao centro das atenções.

O impacto da influenza de 1918 na vida social se inscreveu de forma decisiva na memória histórica principalmente a partir dos discursos aqui citados, a tal ponto que eles reapareceram um século depois, agora que uma nova pandemia veio nos amedrontar.

 

2020

Nos tempos de internet, trânsito global e transportes ultrarrápidos, a covid-19 desembarcou no aeroporto de Guarulhos com aqueles que voltavam de férias da Europa, em fevereiro de 2020. Em 18 de março, o jornal Folha de S.Paulo anunciava a primeira morte pelo coronavírus, um homem falecido dois dias antes. Na sequência, em 19 de março, anunciou-se o primeiro óbito no Rio de Janeiro – quando a pandemia começaria a revelar contornos perversos: a vítima, uma senhora de 63 anos, trabalhava como empregada doméstica e fora contaminada pela patroa recém-chegada da Itália com a doença. O sinal de alerta disparava, junto com os áudios de WhatsApp, notificando que não se tratava de uma “gripezinha”, mas de uma doença grave. Apesar da baixa letalidade, o novo coronavírus apresentava altíssima taxa de contágio, levando a uma sobrecarga muito rápida do sistema de saúde.

De março até hoje, as mortes se multiplicaram, o contágio está fora de controle e o isolamento social, principal arma para controlar a pandemia, tornou-se, aqui no Brasil, praticamente uma escolha individual. O cenário que se armou ao longo desses quase seis meses apresenta paralelos claros com o de 1918 – com troca de ministros da saúde, ruas vazias, receitas milagrosas de cura, falta de estatísticas confiáveis etc. Entretanto, em vez do quebra-cabeças científico que a pandemia foi no início do século passado, a deste século embaralha, sobretudo, peças políticas.

Configurar a imagem da pandemia de covid-19 não é fácil; ainda estamos no olho do furacão – sobretudo no Brasil –, sem o distanciamento necessário para mirar o passado.

No século 21, além dos grandes jornais diários, também as novas mídias marcam presença na produção do imaginário da pandemia – além das pessoas com suas câmeras. As imagens se multiplicam e se amplificam em plataformas visuais, sonoras e audiovisuais.

No campo visual, a principal diferença entre as duas pandemias reside justamente no fato de que as imagens da crise do novo coronavírus circularam em uma iconosfera global, provenientes do mundo inteiro e passíveis de serem reconhecidas pelos sistemas de busca nas plataformas digitais.

Apesar da economia visual bastante diversa dos dois períodos, a elaboração da covid-19 e da influenza de 1918 em fotografias na imprensa guarda semelhanças evidentes, permitindo-nos arriscar paralelos:

 

1 – A doença em cena: hospitais com UTIs repletas de doentes sendo atendidos pelos profissionais de saúde paramentados por EPIs; profissionais de saúde exaustos e estressados; parentes na porta dos hospitais sem acesso aos familiares internados; doentes em enfermarias.

 

 

2 – Cidades “desertas”: espaços públicos esvaziados pelo isolamento social; imagem complementada, sobretudo nos países europeus, pelas pessoas nas janelas e varandas, delineando um novo limite entre o público e privado.

 

3 – Renascimento da natureza: proliferaram imagens de animais silvestres em espaços urbanos, de águas limpas ou céu azul onde antes só havia poluição – uma espécie de fantasia escapista romântica de retorno à natureza diante do caos.

 

4 – Vulnerabilidade: imagens da população mais pobre nas filas de auxílio, nas ruas pedindo ajuda, recebendo doações; pessoas vivendo em moradias precárias, sem saneamento básico e sem condições de manter o isolamento. O assistencialismo como estratégia de naturalizar a desigualdade na organização do mundo social.

 

5 – Desigualdade: embora o vírus tenha atingido a todos, a taxa de contaminação e de óbitos foi muito mais elevada nas periferias mais pobres. Em 1918, à medida que a doença se espalhava para os subúrbios e morros da cidade, as classes abastadas subiam a serra e se deslocavam para o espaço da vilegiatura, deixando para os demais a cidade infectada. Igualmente, em 2020, a possibilidade de praticar o isolamento social é uma marca do privilégio das classes mais altas. Imagens em que se evidenciam as desigualdades do mundo globalizado.

 

6 – Poder em cena: autoridades políticas aparecem para gerenciar – ou não – a emergência sanitária e econômica decorrente das medidas de contenção da transmissão do vírus.

 

7 – A morte: corpos em sacos, câmaras frigoríficas ou na rua, esperando atendimento, caixões empilhados e covas sendo abertas, junto a gráficos e estatísticas dos óbitos, compõem o repertório visual da morte em tempo de covid-19.

 

Um panorama geral das imagens das duas pandemias tem como principal elo de ligação a desigualdade social, que ganhou contornos planetários na nova configuração visual. Nos dois momentos, as imagens que ficam são as dos mortos em massa, das covas rasas e da vulnerabilidade de um número ainda maior de pessoas.

Revela-se no jogo de imagens que configura as pandemias a dupla face de Jano: de um lado, o bem-estar social e a defesa da vida; de outro, a necropolítica, que define os que vão sobrevier e os que podem morrer. Não é à toa que, mundo afora, em 2020, a população desafia o vírus por uma causa maior, derrubando estátuas que glorificam o racismo e afirmando que as vidas negras importam. ///

 

Ana Maria Mauad é professora titular do departamento de história da Universidade Federal Fluminense (UFF), pesquisadora do CNPq e do Cientista do Nosso Estado FAPERJ. Autora de Poses e Flagrantes, ensaios de história e fotografias (Eduff, 2008) e organizadora de Fotograficamente Rio, a cidade e seus temas (FAPERJ/PPGH, 2016), entre outros trabalhos.

 

 

Tags: , , , ,