ZUM Quarentena

Cápsulas para quarentena

Taisa Palhares Publicado em: 14 de julho de 2020

Frame do vídeo Instituição_Intuição, de Ana Pi, 2020

O programa IMS Convida propôs a um conjunto de artistas e ativistas, entre músicos, compositores, escritores, performers, artistas visuais, cineastas, fotógrafos, arte-educadores, entre outros, que registrassem por meio de suas práticas o momento de isolamento que estamos vivendo desde meados de março de 2020. Na seleção convidada, predomina a diversidade de representação por estado, gênero e estrato social, o que permite tomar contato com as diversas formas de vivência de um acontecimento que, por sua excepcionalidade e gravidade, já se configura como um dos marcos históricos do século 21.

Seria impossível tratar de todas as propostas e todos os trabalhos contidos na plataforma no âmbito deste texto, por isso convido o leitor que reserve um tempo para navegar pela página do projeto no site do IMS, que ainda receberá mais trabalhos. Chamo a atenção para as proposições coletivas, como Ação Educativa (SP), Agência de Redes para Juventude (RJ), Feira Preta (SP), Imagens do Povo (RJ), Slam das Minas (RJ) e A Rocinha Resiste (RJ), que apresentam projetos envolvendo uma grande diversidade de ações e agentes culturais, cujo resultado nos leva a pensar como a política oficial de combate ao vírus é mais uma faceta da ausência do Estado na realidade das populações mais pobres. À essa ausência, artistas, produtores e educadores respondem com novas formas de organização, a fim de que suas vozes não sejam silenciadas. Por isso, é de extrema importância que agora possam ser acessadas pela página de uma das instituições culturais mais importantes do país.

Também merece destaque a contribuição de artistas indígenas que comparecem com trabalhos dos mais diversos campos, desde o rap indígena do Brô MC’s (MS), formado por jovens das etnias Guarani e Kaiowa, até a Ecolive de Jaider Esbell, artista multimídia, curador e pesquisador da etnia Makuxi. O projeto Nhemongueta Kunhã Mbaraete, de Michele Kaiowá, Graciela Guarani, Patrícia Ferreira Pará Yxapy e Sophia Pinheiro, propõe uma troca de “videocartas” entre três mulheres indígenas e uma não indígena. Com extrema delicadeza, e por meio de imagens e narrativas, apresentam o cotidiano e a rotina dessas mulheres na aldeia. São vídeos que nos relembram que as formas de resistência e cuidado de si em um momento de urgência sanitária, política e social, seguem caminhos que vão muito além dos protocolos científicos oficiais. Em sua poesia do cotidiano, nos dão a conhecer que a relação com a natureza, o tempo, o passado e o presente pode ser tramada por uma sabedoria que insistimos em ignorar, mas que talvez seja determinante para enfrentar o futuro pós-pandêmico. Pois acredito que este momento de suspensão compulsória que estamos vivendo também sirva para refletir o quanto a adoção cega do paradigma de uma ideia homogênea de progresso técnico, que guia as sociedades ocidentais desde pelo menos o final do século 18, finalmente chegou a seu limite natural.

Atuando no território cultural entre dois mundos, que não precisam estar necessariamente em oposição, têm destaque nos últimos anos as produções de dois artistas indígenas: Denilson Baniwa (AM) e Gustavo Caboco (PR/RR). Em Máscaras para rituais do mundo em crise, Denilson produz autorretratos com as máscaras faciais de proteção da covid 19 a partir da tradição de confecção de máscaras rituais que buscam apaziguar o “Senhor das Doenças”: uma entidade que “tem uma pelagem parecida com a do bicho-preguiça e quando encontra um espírito doente o abraça e sufoca até o luto”. Ao ser obrigado a incorporar no cotidiano esse elemento estranho – a máscara de proteção –, o artista se reapropria dos materiais comuns e expande sua proteção ao recriar escudos simbólicos de luta. Denilson lembra que uma doença ou vírus, como este que hoje nos atinge, não decorre apenas de uma mutação genética, mas sinaliza também o desequilíbrio, ou a total alienação, entre o homem e a natureza. Há pelo menos 100 anos, parte do que chamamos de “mundo contemporâneo” criou para si a noção de uma “segunda natureza”, completamente manipulada e manipulável. E, para quem vive em grandes centros urbanos, é difícil medir o tamanho do processo de destruição que ela acarretou, apesar da crescente e inevitável degradação da vida urbana. Muito se pensa nos efeitos climáticos decorrentes dessa situação, mas há uma dívida espiritual que também merece atenção. Baniwa não defende, a meu ver, que os indígenas permaneçam separados desse mundo contemporâneo que, para o bem ou para o mal, é também aquele onde vivem. Ele aponta para o papel de resistência que a sabedoria dos povos indígenas, para os quais a memória dessa outra relação com o universo se manteve presente, apesar de todo processo de genocídio do qual foram e são alvos, pode servir como um guia para o momento agônico que vivemos.

Por sua vez, o artista visual Wapichana Gustavo Caboco trabalha em diversos meios, como o vídeo, rituais performáticos, desenhos, textos, músicas e objetos, entre outros, que têm em comum a rememoração de saberes ancestrais de sua etnia por meio do processo de escuta de seus parentes mais próximos. Novamente não se trata de propor uma saída para um passado intocado que talvez esteja perdido para sempre, mas a ampliação de nossas limitadas visões do presente e do futuro, inclusive de nosso conceito ocidental de arte e cultura. Por isso, seu trabalho também tem a dimensão de potência e atravessamento.

Frame do vídeo Fogo Baixo, Alto Astral, de Helena Ignez, 2020

Aproveitar esse período de quarentena, que sem dúvida desencadeia ansiedade e pânico, sobretudo para aqueles que estão solitários e isolados em grandes cidades, também pode ser um momento de exercício de resistência. Fogo baixo, alto astral, da atriz e cineasta Helena Ignez, comove naquilo que tem de sóbrio e sábio, mas sem perder a dimensão do fogo incontrolável que pulsa no interior e que continua a se manifestar politicamente. A artista realizou um vídeo com cenas prosaicas de seu cotidiano, acompanhadas por breves reflexões em off. Contra a “violência do consenso”, Helena nos chama a pensar sobre o que é realmente necessário, a fim de que seja possível sair disso tudo com uma “melhor versão de nós mesmos”. O caráter visualmente despretensioso do vídeo (que afinal, como parte das imagens produzidas durante a quarentena, tem um ar caseiro) é de uma beleza insondável. Presenciar a força do corpo dessa mulher que bate panela na janela, medita e dança sozinha em sua pequena sala, é um manifesto pela coragem que habita o cerne da vida.

É significativo perceber que, mesmo frente ao caos predominante nos últimos três meses, em que à crise sanitária junta-se a degradação social, moral e política do nosso país, cujo ineditismo é estarrecedor, seja possível ainda manifestar a existência de brechas, como aquelas vegetações que nascem em pequenos vãos de concreto. É importante não se deixar abater pelos “fatos” e informações jornalísticas que martelam nossas cabeças sem cessar. A cineasta Yasmin Thayná, em seu trabalho a vida é urgente, recoloca a questão do sobreviver por meio daquilo que é o mais fundamental à vida: o ar. Em seu vídeo, corpos negros respiram de modo pausado e profundo. Esse ato de respirar, do qual o norte-americano George Floyd foi violentamente privado e que é o nosso direito mais básico. O sufocamento é uma metáfora da opressão social e da violência que afligem milhares de pessoas negras em todo o mundo. Logo, um corpo negro que respira e produz som é um corpo que exerce o papel de resistência política, um corpo que não aceita mais ser silenciado.

Frame do vídeo Outras quarentenas, de Marcelo Rocha, 2020

Em Outras quarentenas, Marcelo Rocha expõe em vídeos semanais a vulnerabilidade daqueles que desde o início seriam o alvo mais fácil para o vírus: a população periférica das grandes cidades, que não teria condições de se manter em isolamento. Com muitas mães que teriam de deixar seus filhos na rua, enquanto não podem deixar de cuidar dos filhos das “patroa”, colocando em perigo suas vidas em transportes públicos sem nenhuma segurança; trabalhadores que se arriscam para levar alimento à mesa da classe média e que não têm o que comer ao final do dia; homens que fazem a segurança de prédios espelhados de grandes bancos, enquanto sua família permanece insegura em suas próprias casas, sujeita à violência policial. A desigualdade social, o grande mal que corrói a sociedade brasileira como um vírus maligno que nos atinge há mais de 200 anos, cobraria mais uma vez com juros a vida dessa população carente. Ver e rever. Falar e mostrar. E acreditar, apesar de tudo, na potência que surge desse coletivo, que mais uma vez deve se unir por meio do afeto e da solidariedade para enfrentar o mais novo projeto de genocídio do Estado. A conta irá chegar, para todos, lembra Rocha, inclusive para os fãs de jet skis.

É da laje de sua casa na periferia de Diadema, no morro do Eldorado, que o fotógrafo Roger Cipó registra um diário de pequenas maravilhas visuais guiado pelo olhar de suas duas sobrinhas, Duda e Júlia, de três e oito anos respectivamente. Com elas, Cipó redescobre em meio à suspensão compulsória do tempo pela quarentena, a paisagem que rodeia sua comunidade, organizando um inventário de pequenas belezas. Novamente, é o afeto que alimenta aqueles que o Estado abandona. Há a consciência de que chegamos num limite. É difícil saber para onde essa energia social acumulada vai nos levar depois de uma experiência tão drástica. O Eldorado, no entanto, sobrevive como um sonho possível, pelo menos no olhar das crianças.

Frame do vídeo Instituição_Intuição, de Ana Pi, 2020

Como transformar esse momento de dor em autoconhecimento? Como retomar a conexão com o espaço exterior depois da reclusão? Essas e outras questões são colocadas pela artista mineira, radicada em Paris, Ana Pi, que num vídeo brilhante simula as atuais reuniões pelo Zoom e Google Meet que assolam nossa vida. Só que, no seu caso, os “participantes” são diferentes versões da própria artista, que conversa consigo mesma numa espécie de monólogo interior fragmentado em imagens. Esse corpo, que é um, mas que se multiplica e volatiza por meio da realidade virtual, lembra, ao final, que o fundamental é respirar.

Frame do vídeo Vitral, do Grupo EmpreZa, 2020
https://ims.com.br/convida/grupo-empreza/

É também com uma espécie de monólogo interior por meio de imagens que o Grupo EmpreZa registra sua experiência de isolamento. Paisagens vistas da janela ou tomadas do mundo exterior são contrapostas a gestos repetitivos de cuidado com o corpo, rituais de limpeza, de ócio e de ansiedade que pontuam a existência cotidiana durante a quarentena. O vídeo-mosaico Vitral capta e mistura os sons desses dois mundos que nunca estiveram tão radicalmente separados. Nada parece ter muito sentido, e o tempo de espera angustia na medida em que não se vislumbra um fim. O quanto é possível aguentar? Qual o limite?

Difícil dar uma resposta definitiva a essas questões. E, ao contrário de teóricos ou filósofos do fim do mundo, que apressadamente buscam um sentido fechado para aquilo que vivemos, a arte é capaz de manter o presente como um testemunho em aberto. Sairemos melhor ou pior dessa experiência? Haverá uma mudança radical na relação da sociedade com a natureza ou seguiremos destruindo de forma predatória, acreditando que o fim não irá nos atingir? Será que uma parte considerável da humanidade, aquela que detém em suas mãos a riqueza global, irá finalmente perceber que, sem a garantia da vida do outro, ela também não conseguirá sobreviver ao desastre iminente? Não é de hoje que se fala no fim do antropoceno.

Em Missão Perséfone, o cineasta Karim Aïnouz imagina uma viagem de reconhecimento ao planeta Azul no ano de 3020, que foi extinto depois da “última queda do céu” no ano de 2020, marcando o fim da vida animal na terra. No curta de ficção científica, passados mil anos, os descendentes dos terráqueos que sobreviveram ao “capitoloceno” fugindo para um corpo celeste localizado na constelação austral da Baleia, voltam em busca de indícios da humanidade extinta, a fim de construir uma arqueologia de seus antepassados. Deusa que habita o mundo inferior, esposa de Hades, Perséfone é também a deusa da terra e da agricultura, vivendo parte do ano no mundo dos mortos, parte na dos vivos. Simbolicamente, ela controla as estações do ano, os ciclos de fertilização, gestação, renovação e extinção. Na ficção de Aïnouz, uma mulher volta à Terra (agora em trevas) em busca de vestígios de vida animal. A viajante relata sua emoção ao pisar na superfície terrestre em busca de seus ancestrais depois de um milênio. E, nesse momento, as lembranças-cápsulas-imagens de 2020 ganham a tela, como imagens de um presente-passado perdido para sempre. Com ela, percorremos a paisagem em silêncio, em busca de algum sinal de vida. A esperança, no fim, surge pela descoberta de um sapo em meio à desolação do entorno, como o símbolo imemorial de fertilidade. Nesse sentido, talvez não seja exagero acreditar que, em tempos de isolamento, possamos ainda vislumbrar na e pela arte algo capaz de resistir à escuridão do submundo. ///

 

Taisa Palhares é professora de estética do Departamento de Filosofia do IFCH-Unicamp. Curadora e crítica de arte independente.

 

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