Ficções coloniais
Publicado em: 10 de abril de 2025
Finjam que não estou aqui!
A primeira vez que me lembro de ser fotografado por alguém que não conhecia, foi para performatizar uma mentira: fingir que aquele senhor, um cosplay de Indiana Jones, não estava ali, com uma lente 50 mm mirando nossos corpos como se fôssemos a capa da próxima Vogue, pedindo várias poses “naturais”. “Ajam naturalmente.”
Vários cliques, várias poses. Muito obrigado, vocês são lindos.
Nunca mais ouvi falar do Indiana Jones com sotaque alemão, jamais soube o que foi feito daqueles registros. Talvez numa página da National Geographic, com a manchete: “Fotógrafo alemão se aventura pela Amazônia selvagem e registra tribos e animais maravilhosos”. Alles klar!
Olha passarinho…
Meu primeiro contato com fotografia foi com uma máquina Love com filme acoplado e descartável. Foi amor à primeira vista; com ela, pude assassinar toda a comunidade, clique após clique, até acabar a munição.
Falling in love. Um amigo da família levou a máquina para Manaus, para revelar o filme e ampliar as fotografias. Meses depois, as tão esperadas fotos chegaram – todos os fotografados estavam com a cabeça cortada. Erro de paralaxe. Engraçado e tétrico.
Motivo de risos dos mais jovens e de ira dos mais velhos. Uma parte deles havia sido roubada. Decapitação fotográfica. Registros descartáveis, como a Love.
“Ele está nos fotografando, está roubando nossa alma.”
Essa frase, que conheci na cidade grande em forma de anedota, também é um erro de paralaxe, dessa vez colonial. Um erro de observação causado pelo desvio óptico a partir do ângulo de visão do observador estrangeiro. Do ponto de vista de quem está de fora, olhando por uma janela colonial, não é possível compreender o todo; então, no meio disso tudo, algo se perde ou é amputado.
Anga ou sangawa significa tanto medida de tempo, vestígio, índice, retrato, fotografia, como espírito ou alma. Imaginei que o roubo da alma, então, não se referia talvez ao espírito metafísico, mas à captura dos direitos à própria imagem e narrativa. Ninguém assinou a autorização de uso de imagem, como eu não assinei quando fui fotografado. E, apesar de a fotografia ser apenas um fantasma do que já fomos no momento do clique, ela ainda possui nossos corpos, aprisionados por uma ficção. Após a morte, a fotografia é esse espectro que nos assombra na sala de estar, trazendo saudades ou alegrias.
Luz, câmera e ação!
O primeiro filme de que me recordo foi Alien, o oitavo passageiro. Não deve ter sido o primeiro, mas foi o que me marcou. Tive pesadelos, um medo irracional de uma coisa que eu nunca tinha visto antes – alienígena assassino de pessoas inocentes.
Não vi no cinema, longe disso. O filme é de 1979, e só fui ter contato com ele dez anos depois. Naquela época, eu mal havia sido apresentado a uma Philco preto e branco de 12 polegadas – acho que eram essas as características desse aparelho alienígena que pousara na comunidade. A mesma que me apresentou Fernando Collor e Lula. Assisti a Alien num desses horários dedicados a filmes, logo após um dos debates políticos pela presidência do país. Toda a comunidade se reunia para ver o futuro do Brasil em frente de uma televisão minúscula, em preto e branco, com mais fantasmas e ruídos que o filme e o país. O futuro chegou, e não é melhor que o passado.
Caixa mágica!
Não me lembro quando descobri que cinema é fotografia, mas foi genial saber que são fotos agrupadas em sequência e que, quando passadas rapidamente, dão a ilusão de movimento. Nossos olhos nos enganam, e o cérebro ajuda. Isso me fascinou. Então é isso. É possível roubar a alma em várias fotos e, depois, juntar tudo e revivê-la, com movimentos e voz. Um poder de criação digno de um deus – criar do zero uma vida, uma história. E, nela, vilões, heróis, mocinhos e bandidos, vilãs, heroínas, mocinhas, bandidas e qualquer coisa que desejássemos. Ao mesmo tempo, apagar a vida de quem serviria como modelo para essa criação. Não importa se alguém é pescador ou professor, posso matá-lo com a câmera e, depois, dar-lhe vida novamente, na qual ele pode ser um cirurgião plástico ou um aviador, conforme o poder de quem edita as imagens. A fotografia é um homicídio doloso, em que há a intenção de matar, e o álibi é a ressurreição a partir do ângulo de visão do observador que se esconde atrás das lentes. Eu matei, mas ressuscitei.
A fotografia nos dá o direito de matar e, com o morto-vivo, construir uma narrativa que caiba nos nossos interesses. Um fantasma numa casca de sais de prata. Ghost in the shell.
Cinema Paradiso!
Comecei a rever alguns filmes antigos. E, tão animado quando Totò de posse do projetor de películas, fui descobrindo a morte de alguns velhos conhecidos meus. Agora já não acho que o xenomorfo Alien era o vilão. Ele estava lá na sua aldeia, tranquilo, vivendo seu cotidiano, quando chegaram naves que, para ele, eram alienígenas e começaram a perturbar o modo de vida dele e de seus parentes.
Assim como a metáfora da chegada de alienígenas que destroem o modo de vida humano ou de como o progresso avança pelo que é natural e acaba revivendo um monstro que a humanidade não conhecia, esse é basicamente o processo de colonização que vivemos neste território.
Nós, indígenas, somos aqueles que impedem a civilização de avançar para dentro dos lugares ainda não destruídos pela exploração.
Penso que o King Kong retirado de suas terras para ser exibido como troféu e aberração bem poderia ser os tupinambás enviados à Europa para exibição em praças públicas; o Godzilla, o Monstro do Lago, o Kraken bem podem ser representações do que acontece quando o progresso decide avançar para dentro das florestas, dos rios e dos ecossistemas. O mundo ocidental imagina ataques alienígenas que destroem gentes e cidades porque foi isso que fez ao longo dos tempos, e teme um revide histórico. Pois, para os diversos povos originários deste planeta, um dia os alienígenas foram o mundo ocidental.
Invenção da tradição!
E, mesmo que a fotografia seja uma cópia da realidade, ainda assim é uma mentira. E é mentindo ou ocultando verdades que criamos tradições. É com erros de paralaxe e colagens de imagens que construímos a História, às vezes com boa vontade para ajudar e acidentalmente cortando vozes, e noutras propositalmente apontando a objetiva e enquadrando apenas o que nos atrai.
Imagino a arte indígena como direito de resposta e direito de ficcionar também uma história do Brasil, por isso, trago metáforas rasuradas de ícones que nos acostumamos a ter em nosso lar, emolduradas por telas de televisão, salas de cinema e celulares. Unir realidades tão distantes da compreensão colonizadora é provocar um debate sobre apropriação, direitos de imagem e reprodução, em que o guaraná é o original Sateré-mawé e a pipoca é guarani.
E, agora, finjam que não estou aqui e curtam o filme. ///
Artigo publicado originalmente na edição impressa da revista ZUM #20 de abril de 2021. Veja também nesta edição: Limitrofe Television & Analcancer2009 & Bouquet International, Carrie Mae Weems, ToiletPaper, Paiter Suruí & coletivo Ixomasoden, Orhan Pamuk, Lita Cerqueira, Allan Weber e Paulo Tavares
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Denilson Baniwa (Barcelos, AM, 1984) é artista visual. Participou da 33ª Bienal de São Paulo, do 29º Programa de Exposições do CCSP e do Festival Climax-Global Warming (Bordeaux, França), em 2019, e da 22ª Bienal de Sydney (Austrália), em 2020. Venceu o prêmio PIPA Online em 2019.