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Uma análise das listas de melhores fotolivros de 2019

Renata Baralle Publicado em: 23 de dezembro de 2019

Passadas as feiras, festivais e lançamentos, dezembro é o mês em que pipocam pela internet as famosas listas de melhores fotolivros do ano. É nessa época que livrarias, editoras, revistas e críticos de fotografia escolhem seus títulos favoritos — e em boa parte das vezes procuram deixar claro que não se tratam dos melhores, mas de suas preferências pessoais a partir do que tiveram acesso ao longo do ano.

Os números são surpreendentes e oferecem um bom termômetro da produção internacional de publicações fotográficas: até o dia 22 de dezembro, a fotógrafa Viory Schellekens —conhecida na internet por suas compilações de listas ou “metalistas” de final de ano— havia contabilizado um total de 86 listas individuais, totalizando 481 fotolivros escolhidos por 175 pessoas e instituições. Em sua página no Facebook, Schellekens publicou uma espécie de “ranking” dos livros com pelo menos duas citações em listas de selecionados. Até o momento dessa recompilação, ainda não tivemos conhecimento de listas de publicadas no âmbito do Brasil e da América Latina.

Mas afinal, o que centenas de fotolivros escolhidos por curadores, fotógrafos, livreiros e colecionadores têm em comum? Fizemos uma análise das seleções publicadas por oito veículos online —sites de editoras, livrarias, revistas e jornais, listados abaixo— e elencamos os principais aspectos observados nas resenhas das publicações destacadas. Os temas e histórias tratados nos fotolivros foram de longe a abordagem mais utilizada pelos críticos para justificar suas escolhas. No entanto, também surgiram comentários sobre o design e a sequência (soluções formais), sobre as compilações temáticas, geográficas e temporais (livros sobre fotolivros), e sobre as reimpressões de publicações consagradas, entre outros. Sendo assim, os critérios empregados para definir as categorias foram pensados como uma lista de fatores que saltaram aos olhos dos críticos ao elegerem suas publicações prediletas. Também apresentamos alguns exemplos dentro de cada categoria, dando ênfase aos mais citados em diferentes listas.

 

Abordagens originais 

O aspecto mais recorrente nos fotolivros listados foi sem dúvida o tema abordado por cada fotógrafo e a forma que utiliza para apresentá-lo. Um ótimo exemplo disso é o campeão de indicações das listas de final de ano The Pillar, do inglês Stephen Gill. Nota-se que os comentários sobre a publicação são fruto de interpretações incrivelmente variadas da obra. As justificativas de eleição do título costumam começar com uma breve descrição —uma sequência de imagens tiradas a partir de uma câmera posicionada em frente a um pilar, ponto fixo no qual o movimento dos pássaros ativa o sensor de disparo das fotos— seguida de comentários como tratar-se de uma obra com “imagens e sequências tanto engraçadas quanto bonitas e inusitadas” (Martin Parr), retratar um “pilar que recebe a vida” (Terri Weifenbach) e “um dos livros mais encantadores dos últimos anos” (Josh Lustig).

Como o ponto comum de praticamente todas as resenhas é uma descrição objetiva da própria publicação, nota-se que a forma como Gill trata o tema abordado é extremamente clara e precisa—característica essa que, mesmo não sendo explícita nos textos, acaba emergindo ao observarmos a obra e seus comentários. O livro é citado nas listas de Brad Feuerhelm, Ed Templeton, Bryan Schutmaat, Gabriela Cendoya, Sarah Allen, Rachel e Gregory Marker, Mark Steinmetz, Rudi Thoemmes, Rinko Kawauchi, Fred Cray, Martin Parr, Edie Peters, Josh Lustig, Rudi Thoemmes, entre tantos outros.

Outro livro cuja história é citada de forma recorrente em diversas listas é Slant, do também inglês Aaron Schuman, sobre o qual Jason Fulford destaca “a simplicidade que se converte em algo complexo, com camadas de significado, humor e peso” — elogiando também o aspecto formal de equilíbrio entre imagem e texto. A publicação também foi indicada por Brad Feuerhelm, Robin Titchener, Mark Power, Rebecca Norris Webb e Sean O’Hagan.

Por mais que tenha um design interessante com fotografias sobrepostas em páginas transparentes, So it goes, de Miho Kajioka, se destaca nas listas pela forma com a qual aborda temas abstratos, como a passagem do tempo e a memória. Em sua resenha, o curador Simon Baker salienta a maneira com que a fotógrafa representa em seu livro o tempo e suas camadas, deslocamentos, repetições e deslizes; a organização 10×10 Photobooks acrescenta como ponto positivo a articulação entre design e conteúdo, comentando que as características físicas dão força aos temas tratados na obra — e que, por se tratar de um livro impresso em folhas transparentes, acaba reforçando na repetição das imagens a sensação de “fragmentos de sonhos captados em um tempo indefinido”.

Em sua resenha sobre o livro American Origami, do norte-americano Andres González, a revista Time comenta que “uma das virtudes do fotolivro, comparado com outras formas de experienciar a fotografia, é que ele nos permite um mergulho profundo em um tópico ou tema e revela os detalhes ocultos de histórias familiares”. O livro de González —também indicado nas listas de Jason Eskenazi, Kevin Kunishi, Shane Lavalette e Sean O’Hagan— apresenta uma extensa pesquisa fotográfica sobre o fenômeno dos assassinatos em massa nas escolas dos Estados Unidos.

 

Soluções formais

A segunda característica mais destacada nos fotolivros listados foram os aspectos formais das publicações. Os avaliadores citam como pontos positivos a sequência de fotografias, o design, a edição, a consistência e até o fato de o livro conter apenas fotografias e “andar com as próprias pernas”, sem o auxílio de textos para sua compreensão. A sequência de imagens chama a atenção de Todd Hido nos livros Errors of Possession, de Garrett Grove —“sequência de imagens provocativa”— e Unsettled City, de M.H. Frøslev — “depois de folhear quatro ou cinco páginas sabia que precisava ter o livro”, comenta. Outro destaque sob esse aspecto vem da resenha de Feuerhelm sobre o livro Murder, de Guillaume Simonneau — “do começo ao fim, a sequência desse livro é provavelmente uma das mais fortes que já vi até hoje”.

Além da sequência, Should nature change, de John Gossage, se destaca pela atenção ao detalhe, design e consistência, além da sua “capacidade em falar em um diálogo fotográfico”, continua Feuerhelm. Terri Weifenbach também chama a atenção para essa característica em sua resenha do livro Christmas Day, Bucks Pond Road, de Tim Carpenter —também citado por John Gossage e Raymond Meeks— esclarecendo que seu principal critério para a escolha do livro é o fato de ser conduzida pelas fotografias e ter uma dependência mínima do texto que o acompanha.

O design de alguns dos livros, como Were it not for, de Michael Ashkin, e The Coast, de Sohrab Hura, é também sublinhado por seus avaliadores, Michael Mack e Owen Kobasz, respectivamente. O livro de Hura segue atrás de The Pillar em número de menções em listas, e é destacado na seleção do jornal Financial Times pelo efeito cumulativo “poderoso e hipnótico” da repetição das imagens. Caiti Borruso também sublinha a forma com que Hura põe em prática um exercício de edição que apenas o formato livro permite e sobre como novas histórias ou significados são capazes de emergir a partir de diferentes combinações entre as imagens. Desta forma, além de se integrar à própria história, a sequência de The Coast lança uma luz sobre o próprio processo edição fotográfica nos fotolivros, constituindo uma obra “magnífica, expansiva e autorreferencial”, destaca Borruso.

 

A metalinguagem na fotografia 

A inserção do próprio discurso fotográfico nos fotolivros foi citada por alguns selecionadores como Brad Feuerhelm, que chama a atenção para Paul’s book, de Collier Schorr, no qual a fotógrafa além de adotar uma abordagem interessante, integra em sua obra observações sobre a cultura fotográfica.

A incorporação de fotos familiares e imagens de arquivo também é vista como referência ao próprio meio fotográfico por alguns avaliadores. Ao utilizar fotografias de sua família em The Unforgetting, Peter Watkins se debruça sobre “como a memória, a perda e a prática fotográfica são empregadas para manter a memória de um ente perdido”, comenta Feuerhelm. O livro também figura nas listas de Terri Weifenbach, Mark Power, Sean O’Hagan e Ola Søndenå. Outro caso de livro que seu conteúdo remete ao próprio universo fotográfico —mas que tem como objeto os vulneráveis arquivos fotográficos da era digital— é Richard Prince 1234 Instagram Recordings, de Sebastien Girard (destacado por Simon Baker, John Gossage e pela RVB Photobooks), que contém os registros de postagens de Richard Prince no Instagram antes do artista apagar sua conta.

Já Sophie Calle em seu livro Parce que… aborda a interação entre a linguagem fotográfica e a linguagem textual. Para Rémi Coignet, um significado claro começa a emergir a partir do contato com as imagens fotográficas quando vistas em contrapartida aos textos. O livro também foi selecionado por Amanda Ling-Ning Lo.

 

Livros sobre fotolivros

Acompanhando o ritmo torrencial de novas publicações e a “redescoberta” de fotolivros de décadas anteriores em coleções particulares e sebos, o início dos anos 2000 é marcado pelo lançamento de antologias geográficas e temáticas como Fotolivros Latino-americanos e The photobook: a history. Diversos países ganharam suas próprias compilações históricas e em 2019 foi o ano dos fotolivros belgas serem reunidos em Photobook Belge 1854, livro mais citado nessa categoria. “Livros sobre fotolivros viraram uma ferramenta essencial para os amantes da fotografia, colecionadores e pesquisadores”, afirma Rémi Coignet em sua resenha sobre a compilação de fotolivros belgas. A publicação também entrou nas listas de Tod Hiddo e Colin Pantall.

Ao destacar a publicação de Femmes a l’oeuvre, femmes a l’épreuve —das fotógrafas norte-americanas Eve Arnold, Abigail Heyman e Susan Meiselas— Hiddo comenta que a categoria de livros sobre fotolivros é uma de suas favoritas atualmente e que coleciona ativamente esse tipo de compilação desde a publicação de Fotografía Pública, de Horacio Fernández.

Outra antologia geográfica que chamou a atenção este ano foi Enghelab Street, A Revolution Through Books. Iran 1979-1983, de Hannah Darabi, descrito por Colin Pantall como “um livro sobre como as imagens criam histórias, alimentam a história e destroem a história” e citado por Brad Feuerhelm como “uma das principais historiografias de fotolivros da última década”.

 

Reimpressões e releituras de obras consagradas

Neste ano, fotógrafos renomados ganharam antologias e livros consagrados ganham reimpressões. A obra de Roy DeCarava foi compilada em Light break, que reúne fotografias do “mestre das cenas de ruas iluminadas e retratos silenciosos e profundamente observativos” (Sean O’Hagan).

A influência do livro The Americans, de Robert Frank, também rendeu uma homenagem por parte do desenhista Jason Polan, que em quatro dias de produção publicou The American, uma série de desenhos de Frank remetendo a um dos fotolivros mais reconhecidos da história. Para Nelson Chan, o pequeno livro roubou as atenções na New York Art Book Fair em 2019, que lamentava o recente falecimento do fotógrafo norte-americano. Caiti Borruso comenta que o que torna esse livro tão generoso é o fato de ter sido feito por alguém que o amava tanto.

Já as reimpressões de obras importantes contam com dois destaques: Farewell Photography, de Daido Moriyama e The Park, de Kohei Yoshiyuki. Para Amanda Ling-Ning Lo, Farewell Photography mantém a coerência com a edição original, tanto na disposição das imagens sangradas quanto no tamanho e no acabamento, que inclui partes em verniz que vão amarelando com o tempo, remetendo à edição vintage. The Park, por sua vez, “se sustenta pelo tema e pela audácia da abordagem”, comenda o jornal britânico The Guardian. A vantagem dessa reedição é que apresenta imagens adicionais que não apareciam na edição original.

Outra celebrada reedição de uma publicação de 1978 é Re-visions, de Marcia Resnick, destacada por Olga Yatskevich como um fotolivro “inovador e de relevância histórica publicado por uma mulher”. O livro aborda questões femininas e auto-biográficas, posicionando a protagonista em um papel de “mulher universal”, remetendo ao gênero feminino como um todo.

As publicações California Trip, de Dennis Stock e On the Barricades, ambos originalmente publicados em 1968, também são destacadas pelo The Guardian. A antologia de Stock apresenta uma documentação da contracultura hippie nos Estados Unidos enquanto a reedição fac-símile de On the Barricades trata das revoltas estudantis em Paris naquele ano.

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Das 481 indicações de livros contabilizadas por Schellekens em sua metalista, conseguimos analisar 363, dos quais 257 são livros de autoria de fotógrafos homens e 106 de fotógrafas mulheres, revelando um desequilíbrio considerável por gênero nas publicações mais destacadas do ano. Outro fator que chama a atenção nas listas de 2019 é a concentração de indicações de autores de nacionalidade norte-americana e europeia, com relativamente poucos fotógrafos japoneses — o que é uma surpresa dado o destaque que esses autores costumam ter nas principais feiras internacionais. Também não observamos citações a publicações da América Latina e da África (salvo exceções como a citação de Santu Mofokeng na lista de Sarah Allen, da Photobook Store Magazine). ///

 

Listas pesquisadas

Viory Schellekens
Photobookstore Magazine
Photoeye
Revista TIME
Financial Times
LensCulture
The Guardian
Colin Pantall’s blog
Deadbeat Club

 

Renata Baralle é bibliotecária formada pela ECA-USP, jornalista e pesquisadora. Trabalha atualmente como consultora na organização de acervos pessoais e institucionais.

 

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