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Lentes ativistas e a arte indígena

Naine Terena Publicado em: 3 de dezembro de 2019

Noite de Toré, fotografia de Edgar Kanaykõ.

Num momento em que a questão indígena é tecida por diferentes discursos, observa-se como tendência cada dia mais dominante o agenciamento dos próprios indígenas de suas ações e falas, sejam elas individuais ou coletivas. Tais discursos ganham força com as novas mídias. E, como personagens que compõem este tempo de autorrepresentação, temos a constante emergência de indígenas artistas-comunicadores em produções quase sempre carregadas de uma linguagem ativista e que apostam no documental. Normalmente, o objetivo é atender as necessidades dos grupos a que pertencem, abrindo espaço para o lugar de fala dos atores sociais indígenas perante a sociedade nacional e internacional.

Políticas voltadas aos povos indígenas no Brasil e a mudança social pautada no respeito ao ser indígena e aos direitos constitucionais, são elementos sempre presentes nas produções desses indivíduos ou grupos, que cada vez mais ocupam espaços no campo da comunicação e das artes. Este complexo conjunto de atos e redes é o que venho temporariamente chamando de “quarto momento”, algo que acontece com mais clareza desde o final do século 20.

Para falar desse quarto momento é preciso dar um passo atrás na história indígena brasileira para reconhecer os outros três momentos, intimamente ligados às políticas indigenistas praticadas no Brasil. Segundo estudiosos do tema, o primeiro momento teria sido marcado por uma tentativa de extermínio físico das populações indígenas; o segundo na integração dos povos indígenas e a tentativa de apagamento total das culturas e identidades originárias; e o terceiro a partir da Constituição Federal de 1988, onde os indígenas conquistam maior agenciamento de seus desejos e de sua existência (o que pode parecer que não existiu nos dois primeiros períodos, mas a própria arte indígena é forte indício de resistência às políticas de integração e extermínio aplicadas no país). Este quarto momento, que aqui nomeio, se escancara na última década do século 20, avançando com rapidez pelo  século 21, e é marcado pela junção dos três momentos anteriores mais a luta representada pelos movimentos indígenas de resistência.

Frame do filme Aikute: O território nas crianças Xakriabá, de Edgar Kanaykõ.

É nesse cenário que este quarto momento abraça as tecnologias de comunicação e da informação, expandindo a produção artística e a sua utilização e tornando-os fortes aliados na busca de uma autorrepresentação. Essas ferramentas são utilizadas de forma ativa para defender direitos constitucionais, convenções (como a de número 169 da Organização Internacional do Trabalho – OIT, que trata de povos indígenas e tribais) e processos democráticos. E também para reunir outros agentes e militantes da temática indígena e ambiental, redes de interesses que se formam rapidamente com a difusão célere de ideias e memórias. Quando questionados, muitos dos artistas indígenas contemporâneos remetem sua produção ao engajamento nas pautas que marcam a resistência indígena. Nesse aspecto, a pegada ativista predomina, visando causar impacto ao mesmo tempo em que busca resguardar memórias e, quem sabe, sensibilizar uma audiência cada vez maior a respeito de questões sociais e discursos estereotipados acerca dos povos indígenas.

O enfoque, os enquadramentos, as possibilidades narrativas, os registros dos rituais cotidianos são transformados em testemunhos de lutas. Utilizam ferramentas e tecnologias disponíveis para dar visibilidade a essas questões. Ainda é cedo para marcar este quarto momento definitivamente, para cravar se estamos falando de processos comunicacionais, de fruições artísticas, de comunicadores-artistas, de artistas-comunicadores ou tudo isso junto e misturado. É cedo também para definir quais indicadores medirão o impacto dessas produções no imaginário da sociedade brasileira.

Mas não há dúvida de que esses novos autores tomaram a cena. Com suas estéticas e equipamentos variados, registram, recortam, colam, remontam, ritualizam e produzem estéticas relacionadas às suas próprias vivências e mobilizações. Escolhem personagens, momentos, lugares e poéticas. Atendem aos desejos de seus anciãos e comunidades, envolvendo-os e tornando-os coprodutores de suas obras. Abrem mão (ou não) das técnicas clássicas de produção. Ainda é cedo para conclusões. Mas enquanto o momento se desenrola, é importante conhecermos os trabalhos de alguns desses artistas na expectativa de que possamos descortinar a temática, lançando um olhar limpo às especificidades e aos processos híbridos tecidos neste período.

 

Festa Tawarawana, na aldeia Khikatxi do povo Khisêtjê, vídeo de Kamikia Kisedje, 2019.

Kamikia Kisedje é um dos nomes mais expressivos do audiovisual indígena, colecionando produções e exibições dentro e fora do Brasil. Kamikia já produziu diversos vídeos a partir do projeto Vídeo nas aldeias, responsável por sua formação inicial. Tem produções individuais e também ações coletivas, junto a outros indígenas do Xingu, local de origem. Kamikia construiu um caminho muito particular como repórter indígena, atuando como um cine-jornalista-fotógrafo que registra eventos como reuniões, festas e outras manifestações culturais e políticas indígenas. Por meio de um canal na internet, acompanha o movimento nacional indígena, manifestações políticas e também as questões que envolvem seu povo. Também é fotógrafo e tem sido requisitado para ministrar oficinas, assim como acompanhar eventos ligados à temática indígena, em especial do seu povo Kisedje. Mora na Aldeia Ngôsoko, Terra Indígena Wawi (MT), e trabalha nas associações Indígena Kisedje e Terra Indígena do Xingu como cinegrafista e responsável administrativo, além de ser uma das lideranças de seu povo.

 

Frame do filme Aikute: O território nas crianças Xakriabá, de Edgar Kanaykõ.

Edgar Kanaykõ é do povo Xakriabá (MG). Mestre em antropologia pela UFMG, tem atuação livre na área de etnofotografia, atividade que denomina como sendo “um meio de registrar aspectos da cultura – a vida de um povo”. Para Kanaykõ, a fotografia torna-se uma nova ferramenta de luta, possibilitando ao “outro” ver com um novo olhar o que é ser indígena.

 

Frame do filme Mulheres que alimentam, de Olinda Yawar Tupinambá, 2018.

Olinda Muniz é documentarista e jornalista, atua desde 2005 e fez seu primeiro documentário independente – Retomar para existir – em 2015. É editora-chefe, produtora e diretora de audiovisual do blog Pau Brasil Notícias e importante mobilizadora de ações em prol dos povos do nordeste do Brasil, além de ser uma referência entre mulheres que produzem audiovisual no Brasil. Olinda é Pataxó Hãhãhãe, da tribo Caramuru-Paraguaçu do sul da Bahia.

 

Frame do filme Vamos à luta!, de Divino Tserewahú, 2002.

Divino Tserewhahú é indígena Xavante (MT) e também foi formado pelo projeto Vídeo nas Aldeias, mas sua afinidade com o audiovisual surgiu um pouco antes, quando começou a fazer filmes ainda nos idos de 1989. Entre seus trabalhos, destaques para Wapté Mnhönö – Iniciação do Jovem Xavante (1999) e Daritidzé – Aprendiz de Curador (2009), em co-autoria com Tiago Torres e Amandine Goisbault. Em O mestre e o Divino, Tiago Campos, Dalbert Heide e Divino Tserewahú se reencontram para trazer à tona os diferentes olhares acerca do audiovisual sobre povos indígenas. Hoje, Divino assume uma função importante em rituais do povo Xavante, ocupando um local novo nesses momentos, sendo aquele que, sob orientação dos mais velhos, registra as atividades ritualísticas da comunidade. Divino desenvolve também capacitações em produção audiovisual para indígenas em parcerias com universidades e a Missão Salesiana.

Frame do filme Yvy Reñoi, semente da terra, do coletivo Ascuri, 2019.

Ascuri: Nosso Jeito de Ser – Ñadereko/Kixovoku é um grupo de jovens realizadores/produtores formado em 2008 por indígenas do Mato Grosso do Sul. O objetivo da Ascuri é articular, através da linguagem cinematográfica e das novas tecnologias de comunicação,  estratégias de formação, resistência e fortalecimento do jeito de ser indígena tradicional, trabalhando em conjunto com rezadores, koixuminitis (pajés Terena) em seus filmes, oficinas e nos encontros. A Ascuri se estabelece como uma alternativa pensada por realizadores indígenas Terena, Kaiowá e Quechúa frente ao modo predominante de se pensar e de se fazer cinema na América Latina.

 

Frame do filme Darini, iniciação espiritual Xavante, Caimi Waiassé, 2005.

Caimi Waiassé Xavante é educador e um dos videomakers indígenas com maior tempo de atuação. Assim como Divino, ocupa um papel fundamental dentro da sua comunidade, no registro dos momentos da vida Xavante (MT). É membro de um dos primeiros Pontos de Cultura Indígena do país [PCIs formam uma rede de comunidades da região Nordeste do Brasil]. Além do registro ritual, também elabora vídeos-denúncia acerca de conflitos na região.

 

Marcha de mulheres indígenas, fotografia de Cristian Wairu, 2019.

Cristian Wairu é do povo Xavante (MT) com ascendência Guarani nhandeva. Criador do Canal Wariu no YouTube, seus assuntos estão relacionados quase sempre a curiosidades sobre os povos indígenas, buscando romper estereótipos sobre a sua cultura. ///

 

Naine Terena de Jesus é doutora em Educação (PUC/SP), mestre em Artes (UnB) e Comunicóloga (UFMT). Artista e midialivrista, tem pós-doutorado em Educação. É docente na Faculdade Católica de Mato Grosso e empreendedora cultural na Oráculo Comunicação, Educação e Cultura.  É pertencente ao povo Terena.

 

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