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Disputas do real: representação e ficção em imagens da história

Tiago Sant'Ana Publicado em: 3 de junho de 2022

Partida para a colheita do café com carro de boi, vale do Paraíba, RJ, circa 1882 © Marc Ferrez / Coleção Gilberto Ferrez / Acervo Instituto Moreira Salles

Como as imagens de representação do cotidiano de um lugar permanecem no tempo e atravessam séculos desde a sua produção até a contemporaneidade? Por que essas figuras são tomadas como um verdadeiro “retrato” do que era aquele lugar há, pelo menos, dois séculos? Isso acontece porque essas imagens resistiram ao tempo ou porque a posição de quem executou essas obras era a de quem controlava/controla as narrativas? Essas são perguntas que constantemente aparecem nos debates sobre a representação do Brasil, principalmente no século 19. As chamadas “brasilianas”, produzidas com vistas a retratar o cotidiano de um lugar que possuía diferenças ontológicas em relação à Europa daquele período, tinham como principais produtores-artistas os chamados “viajantes europeus”. Essas imagens permaneceram no tempo e ainda hoje são amplamente utilizadas em livros didáticos, diante do discurso que as dotou de um “efeito de realidade”. Esse conjunto iconográfico, que talvez hoje seja lido sob um guarda-chuva de um método do que viríamos a conhecer como “etnografia”, tem na outridade o seu dado fundante. É precisamente acionando categorias do exotismo e da não-europeidade que essas obras possuem uma efetividade em construir uma imagem de um determinado tipo de Brasil.

Ora, se essas obras foram produzidas por artistas, também carregam consigo não somente dados que poderiam ser considerados como históricos, mas também a subjetividade de quem as criou. É na impossibilidade de refletir a realidade que essas imagens se constroem, embora seja na crença de que elas são reais que a sua ressonância tem espaço até hoje. Quando analisamos detidamente as ditas “brasilianas” percebemos que elas são contraditórias. Muitas vezes pessoas retratadas estão sempre numa situação de placidez, limpeza e organização no espaço registrado pelo artista, mesmo estando em uma condição de extrema violência, subnutrição e maus tratos.

Nessa fotografia do Marc Ferrez datada de 1882 e realizada numa fazenda de café no Vale do Paraíba essa construção de uma cena para a fotografia fica explícita. A maneira como as pessoas estão dispostas, mesmo que num cotidiano de trabalho intenso, nos dá a entender um cenário de extrema estruturação, asseio e ordem. No canto inferior direito, um homem vestido ergue o seu braço como quem lidera aquele grupo de pessoas que, sem reclamações, continuam em seu labor. Esse registro, quando lido dentro do seu contexto histórico, deixa ainda mais evidente o seu objetivo de manutenção de uma determinada ordem social. Porque, se por um lado estava perto o fim oficioso da escravidão, que aconteceria em 1888, as pessoas africanas e brasileiras escravizadas continuavam sendo a mão de obra a ser explorada no trato do campo. Vale lembrar que o tráfico de pessoas já havia sido proibido através da Lei Eusébio de Queiroz em 1850 – mesmo sendo uma lei sem completa efetividade. Somando a esses fatores sociais, o fotógrafo opta por não realizar sobreposições dos “elementos” retratos, tentando deixar em evidência a relação figura-fundo e reforçando ainda mais uma ideia de controle, agora pela visualidade fotográfica.

Aqui nesse exemplo, a violência está intrinsecamente ligada à manutenção de um sistema de exploração econômica pautada na servidão. A fotografia, nesse caso, não é meramente um retrato daquela realidade e sim uma construção de uma realidade. O que nos leva a entender que a arte também pode ser utilizada como uma cristalizadora de determinados contextos sociais e históricos, além de pensar também que a própria posição social de quem fotografa importa nesse fluxo de representações e reforço (ou quebra) de imaginários sociais. As imagens produzidas por Ferrez e outros artistas desse período nos fazem pensar que a imagem também é um espaço de disputa.

Tendo em vista que muitas dessas figuras históricas passam por aquilo que hoje conhecemos como uma prática etnográfica – que muitas vezes recorrem a métodos que acabam por tornar exótico determinado grupo social esmiuçado – como ser um artista contemporâneo que tem na história e na memória seus espaços de pesquisa, mas sem utilizar ou reforçar estratégias que reiteram as desigualdades? É possível tratar artisticamente narrativas da história sem passar necessariamente por um viés da representação do Outro?

Reprodução do livro Gold, de Sebastião Salgado, 2020.

Em 1986 o fotógrafo Sebastião Salgado capturou fotografias que mostravam um amontoado de pessoas na região de Serra Pelada, no estado do Pará, numa busca incessante pelo enriquecimento através da mineração do ouro. As imagens produzidas por Salgado tiveram ressonância não somente pela sua dimensão visual – que ora exploram as paisagens repletas de pessoas que freneticamente transitam entre rochas e estruturas humanas, ora o retrato de trabalhadores completamente cobertos pela sujeira dos dejetos da mineração – mas também pela camada de um tempo histórico em que o desejo de mobilidade social encontrava no brilho do ouro uma esperança.

Serra Pelada se tornou o epicentro da mineração após um longo hiato entre a década de 1980 e o processo de exploração de metais e pedras preciosas nos séculos 17 e 18 no Brasil com a utilização, assim como nos ciclos do açúcar e do café, da mão de obra de pessoas africanas escravizadas e seus descendentes. Embora sejam narrativas separadas por séculos, em que há, obviamente, uma maior acessibilidade técnica de registro com a fotografia e também a existência de um regime de trabalho que, embora extenuante, não esteja mais sob a égide de uma escravidão colonial-imperial, a esperança por um tipo de libertação é o que conecta as histórias das pessoas em Serra Pelada e em muitas minas coloniais.

A posição de poder de Sebastião Salgado – como um fotógrafo que, conforme relatos do próprio, tinha uma distinção social e de aparência (e racial, há que se ponderar) em relação às pessoas que trabalhavam em condições precárias em Serra Pelada – o posiciona num lugar de olhar o Outro. A busca por imagens de um lugar em que muitas das éticas sociais e dos Direitos Humanos eram postas em xeque é um dos fatores que levaram Salgado a lutar para conseguir a concessão do governo para fazer os registros de Serra Pelada. Mas o sucesso de sua série, a despeito de todo a visualidade finamente construída pelo artista, reside justamente no fato do exotismo construído em torno daquele lugar e daquelas pessoas, que migraram de diversas regiões para tentar a sorte. Embora a dimensão da questão ambiental, como é sabido, também tenha espaço de discussão nessa série.

Ou seja, aqui Ferrez e Salgado – mesmo com diferentes objetivos iniciais e artísticos – pautam os seus olhares na distinção entre o propositor-artista e o Outro, exótico, inferiorizado socialmente, permitindo realizar uma diferenciação radical de uma audiência muitas vezes privilegiada social e racialmente. Então, cabe retomar o sentido da indagação que escrevi anteriormente: é possível realizar uma arte que tenha vínculo com a história e que não necessariamente tenha que construir uma representação do Outro?

Reprodução do livro Gold, de Sebastião Salgado, 2020.

Foi pensando nessas questões, mesmo sem a necessidade categórica de as responder ou de tentar resolver essa complexidade, que comecei a investigar a história da mineração no período colonial brasileiro, tentando entender não somente as narrativas sobre a exploração do trabalho, mas também possibilidades de burlar os sistemas que muitas vezes fadavam as pessoas escravizadas à morte. Para realizar tal feito, levando em consideração que muitas vezes as representações iconográficas estão circunscritas dentro de amarras do poder de quem pode gerá-las, tenho tentado encontrar rotas de fuga a essas imagens.

Além de uma pesquisa histórica, foi necessário entender os imaginários que formavam essas narrativas. Então, para o projeto da Bolsa ZUM, intitulado Chão de estrelas, a minha proposta é imergir em ditados populares que supostamente estariam ligados a práticas “ilegais” de pessoas escravizadas para conseguir a sua própria liberdade no período da escravidão oficial. Sem procurar saber se esses ditados são verdadeiros ou não, me interessa mais pensar nos imaginários que formaram essas expressões populares. Tomemos por exemplo o ditado “lavou a égua”. Em muitos dizeres populares essa é uma expressão que está atribuída ao fato de algumas pessoas escravizadas esconderem nos pelos ou crinas de equinos pequenas pepitas de ouro, recuperadas na hora da lavagem dos animais em fontes e rios.

O projeto visa imergir nessas expressões, no entanto, sem o objetivo de criar uma ilustração para elas. As obras decorrentes delas serão na verdade essa ressonância no agora. São cenas nunca registradas oficialmente em termos de iconografia, mas que através de um imaginário social coletivo e autônomo também resistiram até a contemporaneidade. Como tal, serão processadas dentro de uma lógica da atualidade. Assim, na imagem produzida para o projeto Chão de estrelas, um homem com os dentes completamente cobertos de ouro conduz um cavalo por entre as rochas da Chapada Diamantina na Bahia, não numa situação de servidão, mas sim de controle sobre sua própria realidade e imagética. Ou seja, a alternativa que encontrei para narrar essas expressões que supostamente advieram de fatos cotidianos não é tentando cristalizar uma ilustração sobre ela e sim criando uma ficção que nos permite pensar nos lugares sociais que as pessoas negras ocupam neste momento. É um esforço de se distanciar de um requisito etnográfico e apostar numa imaginação coletiva e ficcional como um campo de disputa de narrativas. Porque, afinal, as imagens que muitas vezes foram tomadas como dado histórico são elas próprias uma ficção visual. ///

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Leia também o texto Olhos de sangue, escrito por Hélio Menezes para a ZUM #17 sobre a fotografia Partida para a colheita do café com carro de boi, de Marc Ferrez.

Tiago Sant’Ana (Santo Antônio de Jesus/BA, 1990) é artista visual, curador e pesquisador. Suas obras têm como campo de investigação as dinâmicas de produção da memória e da história, sobretudo aquelas vinculadas com as identidades afro-brasileiras. Seus trabalhos fazem parte de acervos como o do MASP, do Denver Art Museum, da Pinacoteca de São Paulo, do Museu de Arte Moderna da Bahia e do Museu de Arte do Rio. Foi um dos ganhadores da Bolsa ZUM/IMS 2021.

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