Exposições

Por uma botânica rebelde

Mateus Nunes Publicado em: 15 de junho de 2022
Bndeamided dualoamtanat, da série Flora mutandis, de Giselle Beilguelman, 2022. Imagem criada com Inteligência Artificial (Style GAN2).

No princípio, não era a palavra. Ou pelo menos não a que conhecemos, a que nos foi imposta, que impõe categorias limitantes e despreza complexidades. Antes da “costela-de-adão”, talvez fosse só imagem. Imaginar a natureza antes da taxonomia moderna – portanto, antes da transferência de artificialidades eurocêntricas para o que é natural – é um exercício que detecta, de certa forma, uma genealogia do preconceito paulatinamente naturalizada. A partir das relações da história com os nomes dados a seres naturais, do colonialismo histórico ao datacolonialismo, a artista e pesquisadora Giselle Beiguelman propõe a revisão de um ecossistema epistemológico e semiológico, opondo-se a uma ciência hegemônica afixada sobre a visão artificial que se tem acerca da natureza. A combater um discurso cientificista reinante, a exposição Botannica Tirannica é uma pesquisa artística de Beiguelman que se desdobra em uma constelação de imagens que investigam a naturalização, na botânica, do uso de nomes ofensivos a grupos sociais. Culminando com esse projeto, o sólido corpo de trabalho de Beiguelman nos âmbitos artísticos, acadêmicos e editoriais busca desconstruir um imaginário colonialista através de uma rebelião científica e informacional.

Vídeo da série Flora rebellis, de Giselle Beiguelman, 2022

No projeto Botannica Tirannica, Beiguelman apresenta, com certo protagonismo, três elementos principais: a obra Errante e as séries Flora rebellis e Flora mutandis. São, essencialmente, um conjunto de vídeos e imagens a partir de cruzamentos botânicos feitos por sistemas de inteligência artificial com interferências da artista, feitas a partir de robustos bancos de dezenas de milhares de imagens coletadas e preparadas por ela. A formação desse arcabouço imagético através da coleta de imagens é análoga às históricas expedições naturalistas que inventariavam e representavam espécimes naturais em solos invadidos.

Os vídeos que compõem a série Flora rebellis têm formato quadrado e duração de 2 minutos e 55 segundos cada; são exibidos em loop, e chamam-se Judeus, Roma, Indígenas, Negros e Mulheres. Cada um deles é o registro do processo de cruzamento digital de imagens de plantas e fungos batizados com nomes pejorativos a esses grupos minoritários, como judeu-errante, ciganinha, coração-de-índia, nigger-toe (castanha-do-Pará) e maria-sem-vergonha, respectivamente. A artista busca reiterar a artificialidade dos preconceitos tomados como naturais e enraizados na tradição e na atualidade, espelhando sobre a natureza intolerâncias culturais, em um claro movimento antropomórfico e injurioso ditado sobre o mundo vegetal.

Um conjunto de 18 imagens estáticas constituem Flora mutandis, série criada a partir dos mesmos mecanismos, cruzando espécies de plantas batizadas com nomes científicos ou vulgares ofensivos, expressando preconceitos sobretudo relativos a partes do corpo e traços fenotípicos culturais. Os nomes das espécies criadas – que também intitulam as obras – são geradas algoritmicamente a partir do embaralhamento dos nomes originais das espécies cujas imagens compõem os bancos de dados que a artista opera digitalmente. Segundo Beiguelman, “o título da série faz referência à maior obra botânica sobre o Brasil, Flora brasiliensis, e a expressão latina ‘mutatis mutandis’, que significa ‘mudando o que tem de ser mudado’”.

O compêndio botânico a que a artista se refere, Flora brasiliensis, é uma publicação decisiva para os estudos da botânica no Brasil, organizada entre 1840 e 1906 por Carl Friedrich Philipp von Martius, August Wilhelm Eichler e Ignatz Urban, naturalistas europeus que inventariaram 22.767 espécies vegetais de forma amplamente ilustrada. A obra sintetiza uma série de movimentos cientificistas que aconteciam desde o período colonial – esforços europeus para registrar e domar a natureza do Novo Mundo –, como os registros amazônicos da Viagem Filosófica (1783-1792) de Alexandre Rodrigues Ferreira, desenhadas por José Joaquim Freire e Joaquim José Codina, que também se expandia a registros zoológicos, cartográficos e antropológicos. Objetivava-se, além de uma representação formal, um desenho útil, dotado de sucessivas camadas de informação a serem analisadas no âmbito naturalista.

Errante se constitui como uma obra independente das séries supracitadas, sintetizando em uma imagem o resultado da combinação imagética de todas as espécies de plantas nomeadas vulgarmente como judeu-errante (cujo nome científico é Tradescantia Zebrina) em vários idiomas. Apregoa-se essa narrativa preconceituosa desde o século 13, associando a fábula de que a denúncia de um judeu teria causado o martírio de Jesus Cristo, e por isso havia tido seu povo condenado a vagar pela Terra sem descanso. Além de embasar um antissemitismo que tentava se provar científico no século 19, esse raconto tomou-se como recorrente na propaganda nazista, associando o judeu a uma pessoa desterritorializada. Isolar o indivíduo do seu território original é, em essência, ferramenta motriz do colonialismo.

Traçar – seja o nome ou a imagem – garantia aos europeus, a partir da sua perspectiva, uma segurança de dominação da informação. Temia-se o inclassificável, o inominável, o incompreensível. Adestrar o que lhes parecia tão indomável fazia com que se encaixasse, de forma reducionista, algo tão imenso e distante em suas pequenas caixinhas classificatórias, provenientes de sistemas epistemológicos totais e totalitários. Desse modo, os naturalistas europeus não só dominaram espécies até então desconhecidas por eles, mas naturalizaram preconceitos e nomenclaturas problemáticas.

Instigando a pensar a dimensão decolonialista fora do imposto binarismo entre natureza e cultura, Botannica Tirannica propõe uma postura pós-naturalista que questiona os princípios de utilidade e especificação que pautam a prática naturalista. Beiguelman proporciona uma leitura de que as imagens obtiveram outros sentidos úteis e específicos. Na dadosfera, transferem-se os princípios que há séculos eram aplicados às imagens de plantas, animais e indígenas assentes em solo a ser conquistado para os usuários conectados, em um datacolonialismo. A precisão anatômica dos desenhos naturalistas dá lugar à especificidade das informações sobre os usuários, classificando-os em faixa etária, localização exata, gênero, tempo de tela, compras recentes, sites recém-visitados etc. Nota-se que o escopo do que se define como explorável através da imagem apenas foi redirecionado.

Assim, a botânica se configura como uma tecnologia do império colonialista, amplamente preocupada em princípios de categorização e identificação como instrumentos de controle, impondo princípios culturais a uma natureza autônoma. Esse manejo sobre a natureza fundamentava, de um lado, o extrativismo e o pensamento agricultor de monocultura, e do outro, o combate a ervas daninhas, a plantas inúteis e incontroláveis. A catalogação é, portanto, útil não somente para o que deve ser cultivado, mas para o que deve ser exterminado. Paralelamente, a pesquisa de Beiguelman destaca que boa parte das plantas que têm nomes tirânicos se enquadram no âmbito das ervas daninhas – que apresentam alto grau de resistência –, em uma hierarquia inferior totalmente artificial. Na série, a artista apresenta letreiros de LED que anunciam que “toda erva daninha é um ser rebelde” e que “a nomenclatura é um ritual de apagamento”.

Todas as obras foram feitas a partir da técnica de geração de imagens por inteligência artificial StyleGAN2 (“GAN” é sigla do termo em inglês “generative adversarial network”, que pode ser traduzido como “redes neurais adversárias”). Essa estratégia faz com que dois sistemas generativos briguem entre si, em um método de machine learning aplicável principalmente para treinamento de geração de imagens. Por “generativo”, nesse contexto, pode-se entender que essas redes criam, a partir de inteligência artificial, novos dados com base em dados prévios.

Quando Beiguelman ordena que se comecem os processos dos cruzamentos de seu repertório botânico – que demandam centenas de horas de processamento –, os sistemas de inteligência artificial entendem como dados existentes as coordenadas georreferenciadas, modelos de câmeras e diversas outras informações contidas nos bastidores de cada imagem das plantas. Varrem todas essas camadas de metadados e começam a procurar coincidências entre elas. Dessa forma, as imagens não são geradas a partir de aspectos visíveis, mas de informações “escondidas” entranhadas nos arquivos digitais, infiltradas como as ervas daninhas que a artista honorifica. A artista reitera que toda imagem computacional é uma imagem espessa, com muitas camadas de informação digital. Além das inesgotáveis leituras interpretativas que as imagens podem ter, Beiguelman atesta que esse manancial de informação também se materializa nos códigos dos arquivos dessas imagens.

A operação de Beiguelman se diferencia dos atuais aplicativos que reconhecem e identificam plantas através de imagens, disponíveis para celulares e criados também com maquinário de inteligência artificial. Esses aplicativos, inclusive, detectam plantas que se enquadram na categoria “erva daninha” e propõem soluções de jardinagem doméstica para aniquilá-las, reiterando as balizas combatidas pela artista.

 

Oean aomorpoenctho, da série Flora mutandis, de Giselle Beilguelman, 2022. Imagem criada com Inteligência Artificial (Style GAN2).

No processo de geração das imagens, a artista reverte propositalmente uma “eugenia maquínica”. Automaticamente, os sistemas de inteligência artificial utilizados por ela desprezam tudo aquilo que é dissonante entre as imagens, indo apenas pelos caminhos de semelhança e proximidade – nesse caso, não das imagens, mas dos metadados, informações invisíveis atreladas a elas. Combatendo o estabelecimento desses “sistemas puros” para analisar a sociedade contemporânea, a artista interfere manualmente no processo de aprendizado de imagem. Usualmente, para obter-se um modelo considerado puro quanto às diretrizes de geração de imagem por inteligência artificial, é montado um banco de dados com milhares de imagens de uma mesma espécie, para que as redes encontrem conexões entre os exemplares e apurem seus mecanismos de identificação e aproximação.

Entretanto, Beiguelman insere robustos compilados de imagens de mais de uma planta na mesma operação, confundindo o sistema e forçando-o a encontrar padrões que a priori não existiriam. Ao inserir uma diversidade a que o processo não está acostumado – seja ele digital ou político –, a artista cria um conflito interno na plataforma, fazendo com que, a partir dessa orientação, a máquina encontre soluções de processamento que nem sempre atendem satisfatoriamente as interrogações de Beiguelman. Isso faz com que, dentro dos milhares de caminhos possíveis de interações gerados pelo sistema, a artista direcione alguns trechos do aprendizado a partir da seleção de vetores em um diagrama gerado pelo software, desviando um comportamento maquínico padrão. Esse processo, inclusive, coloca-se de maneira altamente crítica à eugenia social que estruturou muitas matrizes autoritárias de pensamento, como o darwinismo social e a antropologia criminal basilares no nazismo, no fascismo e no imperialismo, guiados por ideais racistas, misóginos, homofóbicos, antissemitas e xenofóbicos.

Os trabalhos dessa série – assim como o corpo recente de trabalho de Beiguelman – utilizam-se de ferramentas digitais para questionamentos sociais, fazendo com que haja uma ponte direta entre o que se conhece por ciências naturais, exatas e informáticas com as ciências humanas e sociais. Ao fazer essa relação, a artista evidencia um constante desequilíbrio na forma de pensar a transdisciplinaridade na contemporaneidade, atestando uma divergência quanto à natureza dos objetos operados por esses dois âmbitos do pensamento.

Acontecem gravíssimos erros epistemológicos – panes de sistema, caso queiramos seguir com as metáforas informacionais – quando se objetiva desenvolver estudos nas ciências sociais e humanas a partir de números e parâmetros estritamente delimitados, como usualmente ocorre nas ciências informáticas, naturais e exatas. Entender pessoas como números – ou seus múltiplos e complexos fatores em um mundo culturalmente híbrido como informações binárias – acarreta resultados limitantes, excludentes e reducionistas. O enorme problema é que esses erros não acontecem em um ambiente artificial, epistemológico, mas materializam-se no mundo real, político, reforçando preconceitos, amplificando as desigualdades e tirando a vida de pessoas que não se enquadram nos estritos limites do que seria aceitável em um pensamento computacional e eugênico.

Tiacaomotli acuamtns, da série Flora mutandis, de Giselle Beilguelman, 2022. Imagem criada com Inteligência Artificial (Style GAN2).

O estabelecimento de critérios puros – pureza essa intimamente atrelada à concepção de belo e às tradições artísticas – estruturam os sistemas de pensamento e poder autoritários e tecnocratas. A partir de uma postura tirânica e ditatorial, o que não se encaixa nos inflexíveis e rigorosos parâmetros estabelecidos por quem configura a máquina política é descartado, tomando os desvios de padrão como violações. Beiguelman utiliza esse mesmo procedimento para expor a tirania que o estrutura, mas em um campo altamente controlado e provocativamente inofensivo, que é o do cruzamento digital de imagens botânicas.

Botannica Tirannica não é essencialmente sobre plantas, mas sobre suas nomenclaturas; não é sobre o ato da gênese, mas do batismo. Ler o ato da instituição da terminologia – ou do “descobrimento” – como o da criação evidencia uma confusão de ordens, tomando uma referência individual e ensimesmada como parâmetro universal. Não é por coincidência que as dinâmicas colonialistas, tão ligadas à exploração natural, reiteram esse ciclo, decretando origens artificiais a coisas há muito tempo firmadas.

A pesquisa de Beiguelman reitera, na história da botânica colonial, a planejada retirada das funções ritualísticas, religiosas e de cura já instituídas pelos povos tradicionais à natureza, como em uma assepsia forçada do outro. Apagam, inclusive, muitos dos nomes dados pelas comunidades nativas, em um isolamento imagético que almeja o purismo científico, encarando as tradições dos grupos originários como máculas a serem saneadas, ou infestações a serem controladas. Essas dinâmicas de elaboração através do apagamento constituem sistemas estéticos ainda reverberantes, baseados em uma visão utilitária da imagem. ///

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A exposição Botannica Tirannica tem curadoria de Ilana Feldman e está em cartaz no Museu Judaico de São Paulo até 18 de setembro.

Mateus Nunes é doutor em História da Arte pela Universidade de Lisboa, com período na Universidade de São Paulo (USP), onde é professor convidado. Arquiteto e Urbanista pela Universidade Federal do Pará (UFPA), em Belém, é pesquisador integrado do Instituto de História da Arte da Universidade de Lisboa (ARTIS).

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