Entrevistas

Imagens como rituais de descolonização

Laís Ribeiro & Laryssa Machada Publicado em: 7 de junho de 2023

Sem título IV, da série Interferências (vírus e lila), de Laryssa Machada, 2019

Nascida em Porto Alegre, a artista visual Laryssa Machada seguiu uma vida de trânsitos. Atualmente vivendo entre Salvador e São Paulo, seus trabalhos giram em torno da construção da imagem decorpos dissidentes: LGBTQIA+’s, indígenas, afrodiaspóricos, povos da rua.

Machada constrói imagens como rituais de descolonização, buscando novas narrativas de presente e futuro. “Fico pensando como caçamos de volta essas imagens a nosso favor. Hoje tem muita gente falando sobre memória, ancestralidade, cura – o que é incrível. A partir da exposição a essas imagens, as pessoas vão absorvendo essa cultura, de uma forma ampla, reconhecendo os saberes dos mais velhos, das crianças, das aldeias, quilombos, terreiros. E vejo que isso já vem trazendo mudanças nas estruturas.Lentas, mas já palpáveis”, comenta a artista em conversa com a jornalista Laís Ribeiro.

Quando a fotografia surge na sua vida?

Laryssa Machada: Começo no jornalismo, nessa ideia de fotografar o “real”, de cobrir fatos. Mas chega um momento que não me parece o suficiente. Iniciei meu percurso audiovisual construindo material documental com quilombolas, indígenas, pequenos agricultores, pessoas que sofriam supressão de seus direitos básicos pelo Estado. São discussões urgentes e necessárias, mas chegou um momento que desejava pensar outras linguagens para trazer essas visualidades, direcionar essa cocriação para um outro imaginário visual – e é quando a ficção chega, quando o real não é o suficiente para determinados corpos. Foi algo que foi chegando, no como visualizar aquelas imagens faziam as pessoas (ou eu mesma) enxergar sua força, ter firmeza para instaurar esse bem-viver cotidianamente.

Ouro por espelho, de Laryssa Machada, 2019

Como define seu trabalho? E qual a relação dele com suas origens?

LM: Eu vejo esse movimento que vem acontecendo nas artes não só no meu, como em vários trabalhos, nesse lugar de negociar imaginários. Parece clichê, mas a quantidade de imagens que foi consumida ao longo desses mais de 500 anos instaurou muitos absurdos acerca dessa ficção brasileira. Muita violência. Então a gente vem tentando flechar um reencantamento, uma justiça visual, sabe?

E é a partir disso também que faço essa volta à minha história, que é a de milhões de brasileires, de um processo de mestiçagem que apaga identidades, saberes, histórias e nomes. É juntar essas imagens de sonhos, de antes, de agora e de coisas que vou ouvindo pelo caminho. São elementos que eu ou xs retratadxs trazem para evocar essa comunicação entre os tempos, dobrar esse tempo-espaço que não nos cabe.

São aprendizados e desesquecimentos que vamos construindo a partir da troca, da escuta, da encruzilhada. Fico pensando como caçamos de volta essas imagens a nosso favor. Hoje tem muita gente falando sobre memória, ancestralidade, cura – o que é incrível. A partir da exposição a essas imagens, as pessoas vão absorvendo essa cultura, de uma forma ampla, reconhecendo os saberes dos mais velhos, das crianças, das aldeias, quilombos, terreiros. E vejo que isso já vem trazendo mudanças nas estruturas. Lentas, mas já palpáveis.

Sem título, da série Interferências (lila, dinho e vírus), de Laryssa Machada, 2019

E as cidades? Os trânsitos?

LM: Acho que os trânsitos vão acontecendo por um recorrente sentimento de estar estrangeira ao lugar. Estar em Porto Alegre e me sentir estrangeira, em Salvador e em São Paulo. O próprio trânsito e o tempo vão ensinando, vão mostrando que esse processo de apagamento é uma questão estrutural, é um plano de nação, a eugenia, higienizar o país é o plano. Sai de um lugar pessoal e você percebe que o Brasil em si tem uma dívida enorme com esse território. De visualizar os conhecimentos, a força de trabalho, as culturas que constituíram nossa inteligência coletiva. É uma dívida impagável, como diz Denise Ferreira da Silva, você construir um país a partir de tantos genocídios.

É também a partir desse trânsito que você vai percebendo que as histórias se repetem, e que você pode estar na avenida Paulista, no Porto da Barra ou no centro de Porto Alegre e perceber que todos esses espaços são terra indígena. A circulação dessas informações vai realizando uma reeducação para que as pessoas que são nativas dessa terra não se sintam mais estrangeiras. Pensar imagens que legalizem o bem-viver para esses retratados, para mim, para nossas famílias. E como a gente vai fazendo as alianças nesse percurso.

E a fotografia de performance? O audiovisual?

LM: Eu considero um lugar de ritual, de mim com outra pessoa – ou comigo mesma – através de um diálogo. Há uma cocriação, como cada corpo vai expressar aquela narrativa. Tem muita coisa que acontece que nem imaginava previamente, um pouco é pensado antes e muito acontece no momento. Os elementos falam por si, de como existem, de como acessam o corpo. Existe algo que eu quero falar sobre. Uma linha condutora. Mas a imagem em si é muito do que acontece ali, naquele território, naquele encontro, naquela temperatura.

Sem título, da série Interferências (vírus e lila), de Laryssa Machada, 2019

Quais os simbolismos mais presentes na sua narrativa?

LM: Acho que a ideia central é pensar como estar nessa terra a partir de uma perspectiva de não-exploração. Venho me questionando há alguns anos. Nesse processo, nada mais justo do que ouvir pessoas que já fazem esses movimentos há séculos, que são os povos originários da terra, seja daqui, da África. Acho que aprender a escutar essas metáforas que a natureza – como a ocidentalidade costuma chamar o que é vivo – propõem. Então acho que os simbolismos que me interessam, hoje, são as coisas que são vivas.

E o fogo?

LM: O fogo é uma das primeiras estéticas que acesso, uma das primeiras tecnologias, vinda de um lugar frio. Ele está presente no cotidiano ancestral, na preparação de alimentos dos povos originários daquele território. Também fico pensando nesse lugar do poder, de ser uma destruição profunda e também um início. Em Note que sua intenção não é entregar os mapas, vídeo que fiz em 2022 para o Panorama, trago isso, que pelo fogo se dominou, mas que também pelo fogo se pode transformar. A partir disso, trazer a vulnerabilidade da imagem e a hipervalorização do que está disponível aos olhos. Trazer o elemento físico fogo enquanto violência. Se não fossem pelas armas dos colonizadores é provável que o território não teria sido dominado, já que os mesmos não conheciam os caminhos da terra. Trazer o elemento físico fogo enquanto libertação, o poder que é esconder segredos que não devem ser entregues àqueles que desejam supremacia. E que após o acender inicial, a autoria de movimentar realidades é do próprio fogo, de quem está com poder sobre ele.

Que ficções criaram pra meu corpo?, de Laryssa Machada, 2018

Qual a sua relação com o retrato? E o autorretrato?

LM: Sempre gostei de fotografar gente, as histórias, como elas narram a si mesmas. Mas chegou um momento que achava a fotografia tão íntima que não conseguia fotografar as pessoas, cristalizar um segundo de uma pessoa, mesmo com autorização. Comecei uma experimentação comigo, para entender esse lugar de exposição do corpo. É um lugar de autoconstrução, um processo de cura, construir algo que a gente deseja se tornar. É também sobre contar essas experiências de mundo e como essas vulnerabilidades são uma experiência em comum.

Na fotografia, quem te inspira? Quais suas referências?

LM: Muitos dos meus amigos são artistas, pesquisadores e isso me influencia muito. Zanele Muholi, Nair Benedicto, Claudia Andujar. Salvador, por exemplo, é realmente uma terra super fértil de criadorxs, são muitas as pessoas que me afetam. E as pessoas do cotidiano também, que estão se expressando em suas mil linguagens, buscando criar belezas em tecidos, em sons, em gestualidades. Estar aberta nos traz muitos presentes.

Sobre a moda?

LM: Acho que sempre gostei de experimentar as coisas no corpo, pegar algo e vestir para ver como dava para moldar, brincar. E depois ir fazendo isso com amigos. Anos depois também percebi que vem muito de minha mãe, que sempre vendeu roupa, vinha pra São Paulo buscar roupa para vender em Porto Alegre, e costura coisas lindas até hoje. Trajes são também comunicações. E ao trazer para o corpo vamos vendo o que eles constroem de gestualidade, como essas histórias vão se contar através do visual. O que significam essas embalagens, essas sacas de produto sobre a matéria, um cropped de um plástico de uma erva sagrada guarani, que é a erva mate, por exemplo. ///

Laís Ribeiro é fotógrafa, graduanda em jornalismo e integrante da equipe da revista ZUM.

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