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Leia na íntegra o ensaio O terno e a fotografia, do crítico John Berger, parte do livro Para entender uma fotografia

John Berger Publicado em: 25 de julho de 2017

 

 

Lançado recentemente no Brasil, o livro Para entender uma fotografia, reúne 24 ensaios do crítico e escritor inglês John Berger (1926-2017). Escritos ao longo de 40 anos, os textos deste livro, selecionados e organizados por Geoff Dyer, homenageiam fotógrafos favoritos de Berger, como Henri Cartier-Bresson, André Kertész, Sebastião Salgado e August Sander, entre outros. Berger se dedica a levantar e responder questões sobre a fotografia nem sempre abordadas de forma direta e aprofundada: qual a linguagem específica da fotografia? É arte?

A editora Companhia das Letras cedeu com exclusividade para ZUM o ensaio O terno e a fotografia, em que Berger analisa três imagens de August Sander (1876-1964) para ressaltar, a partir desta peça do vestuário ocidental, as mudanças ocorridas na migração de uma sociedade camponesa para as cidades da Europa do início do século passado. Um ótimo exemplo da genialidade de Berger sobre como “entender uma fotografia” para além da superfície da imagem.

Leia abaixo, na íntegra, o ensaio inédito em português.

 

O terno e a fotografia

John Berger

August Sander, Jovens fazendeiros, 1914. Reprodução.

O que disse August Sander (1876‑1964) a seus modelos antes de tirar a fotografia? E como foi que ele disse, para que todos acreditassem nele da mesma maneira?

Cada um deles olha para a câmera com a mesma expressão. Por mais que haja diferenças, elas são resultado da experiência e do caráter do modelo — o padre vive uma vida diferente da do forrador de paredes, mas para todos eles a câmera de Sander representa a mesma coisa.

Será que ele disse simplesmente que suas fotografias seriam uma porção registrada da história? Teria ele se referido à história de tal maneira que a vaidade e o acanhamento dos fotografados se desvaneceram, e eles olharam para a lente contando de si mesmos, usando uma estranha tensão histórica: Eu tinha este aspecto. Não temos como saber. Simplesmente devemos reconhecer a singularidade de sua obra, que ele planejou sob o título geral de “O homem no século xx”.

Todo o seu objetivo era encontrar, em torno de Colônia, sua terra natal, arquétipos que representassem todos os possíveis tipos, classes sociais, subclasses, empregos, vocações, privilégios. Ele esperava tirar, no total, seiscentos retratos. Seu projeto foi interrompido e encurtado pelo Terceiro Reich de Hitler.

Seu filho Erich, socialista e antinazista, foi enviado à prisão, onde morreu. O pai escondeu seus arquivos no campo. O que ainda resta deles é um documento extraordinariamente social e humano. Nenhum outro fotógrafo, tirando retratos de seus conterrâneos, jamais foi tão translucidamente documental.

Walter Benjamin escreveu em 1931 sobre a obra de Sander:

Não foi como um erudito, aconselhado por teóricos sobre raça ou pesquisadores sociais, que o autor [Sander] empreendeu essa enorme tarefa, mas sim, nas palavras de seu editor, “como resultado de imediata observação”. É realmente uma observação sem preconceitos, audaciosa e ao mesmo tempo delicada, muito no espírito do que Goethe observou: “Existe uma forma delicada do empírico que se identifica tão intimamente com seu objeto que com isso se torna teoria”. De acordo com isso, é bem apropriado que um observador como Döblin lançasse uma luz exatamente sobre os aspectos científicos dessa obra e ressaltasse: “Assim como existe uma anatomia comparada que permite que se entenda a natureza e a história dos órgãos, aqui o fotógrafo produziu uma fotografia comparada, com isso obtendo um ponto de vista científico que o situa além do fotógrafo de detalhes”. Seria lamentável que circunstâncias de caráter econômico impedissem a ulterior publicação desse extraordinário corpus… A obra de Sander é mais do que um livro de fotos, é um atlas de instrução.

Com o espírito inquisidor das observações de Benjamin, quero examinar a famosa fotografia de Sander, dos três jovens camponeses numa trilha, à tarde, indo dançar. Há tanta informação descritiva nessa imagem quanto nas páginas de um mestre da descrição, como Zola. Mas só quero considerar aqui uma coisa: seus ternos.

O ano é 1914. Os três jovens pertencem, no máximo, à segunda geração que usava ternos assim na zona rural europeia. Vinte ou trinta anos antes, essas roupas não existiam a um preço que camponeses pudessem pagar. Entre os jovens de hoje, ternos escuros formais tornaram‑se raros nos vilarejos, ao menos na Europa Ocidental. Mas na maior parte do século xx a maioria dos camponeses — e a maioria dos operários — usavam ternos escuros de três peças em ocasiões cerimoniais, nos domingos e nos feriados.

Quando vou a um enterro no vilarejo em que vivo, os homens de minha idade e mais velhos ainda os usam. Claro que houve mudanças na moda: a largura das calças e das lapelas e o comprimento dos paletós têm mudado. Mas o caráter físico do terno e sua mensagem não mudam.

Consideremos primeiro seu caráter físico. Ou, mais precisamente, seu caráter físico quando os que o vestem são camponeses de uma aldeia. E, para tornar a generalização mais convincente, olhemos para uma segunda fotografia, a de uma banda musical da aldeia (abaixo).

August Sander, Banda de música, 1913. Reprodução.

Sander tirou a foto desse grupo em 1913, ainda que pudesse ser a banda na festa para a qual os três, com suas bengalas, se dirigem ao longo da trilha. Faça agora uma experiência. Cubra os rostos na foto da banda com um pedaço de papel e considere apenas seus corpos vestidos.

Nenhum esforço de imaginação fará você acreditar que esses corpos pertencem a pessoas da classe média ou da classe dominante. Eles podem pertencer a operários, em vez de camponeses; mas fora isso não há dúvida. E a prova disso não está em suas mãos, onde estaria se fosse possível tocá‑las. Então por que a classe a que pertencem está tão aparente?

É uma questão de moda e da qualidade do tecido de seus ternos? Na vida real tais detalhes seriam reveladores. Numa pequena fotografia em preto e branco eles não são muito evidentes. Mas a fotografia, estática, mostra, talvez mais vividamente do que na vida real, a razão fundamental pela qual os ternos, longe de disfarçar a classe social de quem os veste, a sublinham e enfatizam.

Seus ternos os estão deformando. Ao usá‑los, eles parecem como se estivessem fisicamente desfigurados. Um estilo ultrapassado nas roupas frequentemente parece absurdo até ser reincorporado pela moda. De fato, a lógica econômica da moda depende de fazer o ultrapassado parecer absurdo. Mas aqui não estamos lidando primariamente com esse tipo de absurdo; aqui as roupas parecem menos absurdas, menos “anormais”, do que os corpos dos homens que as vestem.

Os músicos dão a impressão de estarem descoordenados, pernas arqueadas, traseiro baixo, torcidos ou escalenos. O violinista mais à direita é apresentado de modo a quase parecer um anão. Nenhuma de suas anormalidades é radical. Elas não nos suscitam piedade. São apenas suficientes para minar a dignidade física. Estamos olhando para corpos que parecem toscos, desajeitados, como que em estado bruto. E de forma incorrigível.

Agora faça a experiência contrária. Cubra os corpos da banda e olhe apenas para seus rostos. São rostos do campo. Ninguém poderia supor que são um grupo de advogados ou diretores de empresa. São cinco homens de um vilarejo que gostam de fazer música e o fazem com algum respeito próprio. Quando olhamos para seus rostos, podemos imaginar qual é o aspecto dos corpos. E o que imaginamos é bem diferente do que acabamos de ver. Na imaginação, nós os vemos como seus pais devem se lembrar deles quando estão ausentes. Nós lhes concedemos a dignidade que eles normalmente têm.

Para esclarecer melhor essa questão, consideremos uma imagem na qual roupas sob medida, em vez de deformar, preservam a identidade física e, portanto, a autoridade natural daqueles que as vestem. Escolhi deliberadamente uma fotografia de Sander que tem um aspecto antiquado e poderia facilmente se prestar à paródia: a fotografia de quatro missionários protestantes em 1931 (abaixo).

August Sander, Missionários urbanos, 1931. Reprodução.

Apesar de sua imponência, nem mesmo é necessário fazer o experimento de cobrir seus rostos. Está claro que aqui os ternos efetivamente confirmam e reforçam a presença física de quem os veste. As roupas transmitem a mesma mensagem dos rostos e da história dos corpos que elas escondem. Ternos, experiência, formação e função sociais coincidem.

Volte agora aos três a caminho da dança. Suas mãos parecem grandes demais, seus corpos finos demais, suas pernas curtas demais. (Eles usam suas bengalas como se estivessem tangendo o gado.) Podemos fazer a mesma experiência com os rostos e o efeito é exatamente o mesmo que o da banda. Apenas seus chapéus podem ser usados por eles e continuar parecendo adequados.

Aonde isso nos leva? Simplesmente à conclusão de que camponeses podem até comprar bons ternos, mas não sabem como usá‑los? Não, a grande questão aqui é, mesmo que pequeno, o exemplo gráfico (talvez um dos mais gráficos que existem) do que Gramsci chamou de hegemonia de classe. Olhemos mais de perto as contradições aqui envolvidas.

A maioria dos camponeses, se não sofre de desnutrição, é fisicamente forte e bem desenvolvida. São bem fornidos devido ao trabalho pesado e extremamente variado que fazem. Seria muito simples fazer uma lista de suas características físicas — mãos largas por terem trabalhado com elas desde a mais tenra idade, ombros largos em relação ao corpo pelo hábito de carregar coisas e assim por diante. Na realidade, também existem muitas variantes e exceções. Podemos, contudo, falar de um ritmo característico de atividade física que a maioria dos camponeses, mulheres e homens, adquire.

Esse ritmo é diretamente relacionado com a energia demandada pela quantidade de trabalho que deve ser feito em um dia, e se reflete em movimentos e posturas físicas peculiares. É um ritmo prolongado e abrangente. Não necessariamente lento. Os movimentos tradicionais de ceifar ou semear podem exemplificá‑lo. O jeito de os camponeses montarem a cavalo é característico, e também o seu modo de andar, como se testassem o solo a cada passo. Além disso, camponeses têm uma dignidade física especial: isso é determinado por um tipo de funcionalidade, uma forma de estar totalmente à vontade no esforço.

O terno, como o conhecemos hoje, foi criado na Europa como um traje profissional da classe dominante na última terça parte do século xix. Quase anônimo como um uniforme, foi o primeiro traje da classe dominante a idealizar um poder puramente sedentário. O poder do administrador e da mesa de reuniões. Essencialmente, o terno foi feito para o ato de falar e de calcular abstratamente. (Distintos, em comparação com os trajes anteriores das classes mais altas, dos atos de montar, caçar, dançar, duelar.)

Foi o gentleman inglês, com toda a aparente distinção que o novo estereótipo implicava, que lançou o terno. Era um traje que inibia uma ação vigorosa, e que a ação amarrotava, desvincava e estragava. “Cavalos suam, homens transpiram e mulheres brilham.” Na virada do século, e cada vez mais após a Primeira Guerra Mundial, o terno passou a ser produzido em série para os mercados de massa urbano e rural.

A contradição física é óbvia. Corpos que estão completamente à vontade no esforço, corpos acostumados a movimentos amplos e abrangentes: roupas que idealizam o sedentarismo, a distinção, a ausência de esforço. Eu seria o último a reivindicar a volta dos tradicionais trajes de camponeses. Um retorno desses teria um sentido escapista, porque esses trajes eram uma forma de capital transmitido ao longo de gerações, e no mundo de hoje, em que cada esquina é dominada pelo mercado, um tal princípio seria anacrônico.

Podemos observar, contudo, como as roupas de trabalho ou de festa tradicionais de camponeses respeitavam o caráter específico dos corpos que vestiam. Eram geralmente folgadas, e justas apenas nas emendas, de modo que permitissem movimentos mais livres. Eram a antítese das roupas sob medida, roupas cortadas para que impusessem a forma idealizada de um corpo mais ou menos estacionário e depois ficarem nele pendentes!

Mas ninguém obrigou os camponeses a comprarem ternos, e os três, em seu caminho para a dança, estão nitidamente orgulhosos deles. Eles os vestem com uma espécie de petulância. É exatamente esse o motivo de o terno poder se tornar um exemplo clássico e facilmente ensinado de hegemonia de classe.

Aldeões — e, de um modo diferente, operários na cidade — são persuadidos a preferir ternos. Pela publicidade. Por fotos. Pela nova mídia de massa. Por vendedores. Pelo exemplo. Pela observação de novos tipos de viajantes. E também por desenvolvimentos políticos de acomodação e de organização central do Estado. Por exemplo: em 1900, por ocasião da grande Exposição Universal, todos os prefeitos da França foram, pela primeira vez na história, convidados a um banquete em Paris. A maior parte deles era de prefeitos camponeses de comunas de aldeia. Vieram quase 30 mil! E, naturalmente, para aquela ocasião, a grande maioria usava terno.

As classes trabalhadoras — sendo que os camponeses eram ainda mais simples e mais ingênuos quanto a isso do que os trabalhadores da cidade — aceitaram como sendo próprios delas certos padrões da classe que os governava — neste caso, padrões do que era meritoriamente chique e “de alfaiate”, ou seja, sob medida. Ao mesmo tempo, essa aceitação plena de tais padrões, sua conformidade com essas normas que não tinham nada a ver nem com sua herança própria nem com sua experiência cotidiana, os condenou, dentro do sistema desses padrões, a ser sempre, e reconhecidamente pelas classes acima deles, de segunda classe, desajeitados, broncos, defensivos. Isso é, de fato, sucumbir à hegemonia cultural.

Talvez, entretanto, se possa aventar que, depois que os três chegaram e beberam uma ou duas cervejas, olharam as moças (cujas roupas ainda não tinham mudado tão drasticamente), penduraram seus paletós, tiraram as gravatas e dançaram, talvez usando seus chapéus, até a manhã do dia de trabalho seguinte.///

Março de 1979

 


Para entender uma fotografia
John Berger
Tradução: Paulo Geiger
Editora: Companhia das Letras, 2017
263 páginas
R$ 59,90

 

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