Ensaios

Vera Albuquerque e o espetáculo do mundo

Vera Albuquerque & Renata Martins Publicado em: 5 de junho de 2024

Da série Boi da Madre Deus, por Vera Albuquerque, 1978

Perceber a vida por uma perspectiva diferente através da expansão consciente do processo de ver o mundo ao seu redor: esse era o exercício cotidiano de Vera Albuquerque, que faleceu no início deste ano. Durante quase cinco décadas, a fotógrafa maranhense capturou com sua câmera pessoas comuns, festividades populares, artistas, personalidades, encenações teatrais e suas coxias, paisagens naturais e topografias urbanas, além de realizar uma série de experimentos com luz e técnicas de manipulação fotográfica.

Vera Albuquerque produziu um acervo de milhares de imagens analógicas e digitais que ilustram e eternizam fatias memoráveis do seu tempo e espaço. Seus registros fotográficos nos revelam a sensível espectadora do mundo que foi, capaz de reconhecer, absorver e transmitir a aura mítica e particular daqueles e daquilo que lhe cruzavam o caminho. Residente desde 1980 em São Paulo, Vera pensava, respirava e exercia o ofício de fotografar de forma orgânica. Tinha consciência da importância de seu papel pedagógico, que exercia ao revelar às pessoas um recorte de sua visão de mundo, especialmente em tornar acessível aquilo e aqueles que eram inacessíveis ao olhar comum.

Por mais de 40 anos na capital paulista, exerceu práticas pedagógicas como professora de fotografia no Sesc Pompeia, em diferentes galerias de fotografia e no Museu Lasar Segall, instituição onde passou a coordenar o setor de fotografia de 1991 até o início da pandemia de covid. Sua vocação didática nata de fomentar o exercício de ver o entorno ordinário e cotidiano sob diferentes enquadramentos e perspectivas tinha objetivos claros: estimular tanto a expansão do processo de captar visualmente realidades inacessíveis e excluídas da mirada coletiva comum, como a composição de um vocabulário visual como ato artístico de seus alunos. Segundo Vera, assim como um texto é tecido por palavras, uma fotografia é composta de um vocabulário visual que contempla ocorrências essenciais como luz, movimentos, formas, cores, texturas, perspectiva – responsáveis por gerar novos significados a recortes fotográficos. E, assim como quando menina se impressionou com a “mágica” da revelação de fotografias feita em casa por seu pai, um fotógrafo amador, como docente ela fazia questão de que seus alunos se impressionassem com a natureza da fotografia desde suas ocorrências visuais até a mágica química de sua revelação.

Através da justaposição das ocorrências visuais em uma fotografia, a artista exercitava conscientemente o ato humanista de ressignificar e revelar seu entorno e seus agentes através de narrativas imagéticas que estimulavam a imaginação das pessoas que se deparavam com elas. Além disso, seus registros permitiam – e ainda hoje seguem permitindo – a seus observadores terem acesso ao “lado B”, àquilo que era invisibilizado e muitas vezes marginalizado. Nesse aspecto, os testemunhos fotográficos de Vera Albuquerque revelam uma importante tarefa sociocultural não somente como docente, mas também como artista.

A utilização da linguagem fotográfica como seu meio de expressão sobre e com o mundo tornou-se evidente justamente após seu contato no ano de 1976 com um livro do fotógrafo franco-tcheco Josef Koudelka (1938) sobre grupos de ciganos. Conforme afirmou certa vez, tais imagens lhe impressionaram de tal forma que, a partir daquele momento, não poderia fazer outra coisa que não fosse se expressar através da fotografia.

Esse olhar sensível e humanista recaiu em 1979 sobre um cortiço de São Luís (MA), onde Vera e sua câmera transitaram para retratar com dignidade, respeito e sensibilidade seus moradores, suas moradas e seus pertences no ensaio Rua do Trapiche. Nesses registros são percebidos diálogos tácitos, um intercâmbio de miradas que sustêm uma cumplicidade natural e mútua entre as pessoas retratadas e a retratista em um pacto afetivo iluminado por ângulos e uma atmosfera de confiança únicos. Impressionado pela força imagética desse ensaio, Miguel Paladino, gestor cultural, curador, produtor teatral e seu companheiro por mais de quatro décadas, decidiu inscrever esse trabalho na I Trienal de Fotografia (1980) no MAM de São Paulo sem o conhecimento da artista. Por esse ensaio, Vera Albuquerque foi contemplada com o prêmio de aquisição. “Eu sempre disse que ela fotografava o que ninguém via e, além disso, nunca esquecia do que se tratava aquela cena, de onde era cada paisagem, quais os personagens que quase invariavelmente olhavam para ela (para sua câmera) com uma cumplicidade que delatava um acordo advindo daquele encontro, naquele instante decisivo.”, afirma Paladino.

Através de suas fotos, Vera cultivou um interesse genuíno pelas pessoas e coisas tais como eram. Muito provavelmente seja essa a razão pela qual agentes e espaços se abriam para sua câmera de forma natural. Expressões populares genuínas, como a festa do Boi da Madre Deus (1978), um bairro popular de São Luís (MA), tiveram seus protagonistas eternizados pela lente de Vera. O mundo circense foi igualmente tema de trabalhos da fotógrafa, como nas séries Circo da Raposa (1978) e Companhia de Ballet La Mínima, com Domingos Montanier e Fernando Sampaio.

O mundo do espetáculo teatral paulistano também foi registrado pela fotógrafa. Porém, o que interessava e instigava seu olhar eram justamente os bastidores, seus camarins e coxias – o lado não visto por espectadores comuns. Seus modelos sabiam que estavam sob a mira da objetiva de Vera e se deixavam ser capturados por ela em seus momentos privados e de desmascaramento de seus personagens, como Tereza Freire, Ary França e Marshall Netherland no camarim de O Doente Imaginário (1986) ou Patricio Bisso (1957-2019), ator e jornalista argentino. Outro argentino, o artista plástico León Ferrari (1920-2013), mostrou-se para a lente Vera durante seu período de exílio em São Paulo em impressionantes registros que ressaltam a dramaticidade fantasmagórica de sua escultura Medusa (1985).

A relação de cumplicidade que Vera criava, tanto com as pessoas como com os ambientes que retratava, nos permite ter contato com um código visual singular através de sua perspectiva sensível sobre seu entorno social. Sua visão ágil e inquieta captava o momento chave da incisão da luz sobre seu entorno e agentes e, seguindo sua perícia, recortava cirurgicamente esse instante, eternizando-o em uma narrativa imagética em constante expansão. E, assim como aquela Vera garotinha se impressionava com a magia das revelações fotográficas de seu pai, a Vera adulta nos surpreende ao revelar a magia de detalhes ocultos do espetáculo do mundo que frequentava e assistia com graça e maestria. Com ela, aprendemos a expandir nosso processo de ver. ///


Renata Martins (1980) é educadora, crítica de arte e curadora independente natural de São Paulo e residente em Bonn, Alemanha. É mestre em Literatura Alemã pela USP e especialista em Curadoria de Arte pela Universidade das Artes de Berlin. Foi residente do programa Vila Sul do Instituto Goethe de Salvador (2020-2022), onde concebeu e organizou o Catálogo Arte Mais – Panorama de Artistas Transvestigeneres nos Brasil @catalogoartemais.



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