Entrevistas

Os paredões e as memórias de Gabrielle Guido

Gabrielle Guido & Lucas Veloso Publicado em: 23 de maio de 2024

Foto da série Paredão, de Gabrielle Guido, 2017

Gabrielle Guido é direta: sua fotografia não existiria não fosse a oportunidade de cursar a faculdade de Produção em Comunicação e Cultura na Universidade Federal da Bahia (UFBA). Tocantinense, teve contato com a primeira máquina fotográfica na faculdade. De lá, saiu registrando objetos, pessoas, espetáculos teatrais e o que tinha na frente dos olhos. Alguns anos depois, seu trabalho circula por jornais, revistas, espaços de arte nacionais como o Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo, além de galerias de arte nos EUA, em cidades como Nova York e Miami.

Hoje, nos encontros e desencontros das paisagens urbanas e rurais, a fotógrafa encontra terreno fértil para explorar as complexidades da identidade e da memória. Sua câmera é uma testemunha silenciosa dos rituais cotidianos, das histórias não contadas e das transformações sociais que moldam as comunidades que ela retrata.

Filha de Francisca Edilma e Elias Guido, e irmã de Vinicius Guido, Gabrielle busca, nas imagens, encontrar vestígios de uma jornada pessoal e coletiva, a fim de capturar não apenas momentos efêmeros, mas também os laços invisíveis que unem as pessoas às paisagens que habitam.

Na carreira, Gabrielle ajudou a fundar a Entre Becos, plataforma de comunicação que promove reportagens a partir das perspectivas das periferias de Salvador, é sócia da teia!,  empresa que atua com projetos culturais de impacto social, e também foi correspondente da Agência Mural de Jornalismo nas Periferias, em Salvador.


Nalde, por Gabrielle Guido

Qual é a história da primeira foto feita por você?

Gabrielle Guido: A história da minha primeira foto não é tão marcante para mim. Não consigo lembrar exatamente quando foi tirada. Não tenho uma história cinematográfica, como algumas pessoas têm, como ver o mundo de uma nova maneira ao viajar de carro, ou ter pais fotógrafos. Foi na universidade que tive acesso a uma câmera fotográfica, quando comecei a estudar produção cultural. Lembro-me de ter um desejo de estudar cinema como uma possível carreira.

Entrar no mundo da fotografia me deu acesso a equipamentos e conhecimentos que antes não tinha. Minhas primeiras fotos eram ruins, eram basicamente retratos, sem muita noção de edição. Ao longo do tempo, fui aprendendo mais sobre fotografia e desenvolvendo meu estilo. A universidade me proporcionou essa oportunidade de aprender e explorar esse mundo da fotografia, algo que considero muito relevante para minha trajetória. Se não tivesse tido essa oportunidade, minha vida poderia ter sido muito diferente.


Foto da série Alimento diaspórico, de Gabrielle Guido

Seu olhar fotográfico de hoje foi treinado em que paisagens, vivências e locais do Nordeste?

GG: Morando em Salvador quase toda a minha vida, minha experiência é uma mistura de influências de diferentes lugares. Meu pai nasceu no Maranhão, minha mãe em Goiás (atual Tocantins), e eu nasci em Araguaína, Tocantins. Nossa família transitou entre o Norte e o Nordeste, o que contribuiu para uma mistura de referências e histórias.

Crescer em Salvador, com suas paisagens variadas e caminhos únicos, também influenciou meu olhar. Além disso, as viagens pela Bahia, Piauí e Maranhão, e até mesmo a imaginação de lugares que gostaria de conhecer, contribuíram para minha percepção fotográfica. Então, não há um lugar específico, mas sim uma combinação de experiências e imaginação que moldaram minha visão fotográfica.


A série Paredão destaca a reunião de jovens periféricos para dançar e ouvir música. Qual a relação que suas imagens estabelecem com essa cultura?

GG: A série Paredão estabelece uma relação profunda com a cultura dos jovens periféricos que se reúnem para dançar e ouvir música. Foi um processo complexo de pesquisa, onde busquei entender a manifestação cultural dos paredões não apenas como produtora cultural, mas também como fotógrafa. A escolha de fotografar os paredões veio da vontade de legitimar essa forma de diversão e expressão cultural. Quis capturar não só os retratos das pessoas, mas também os objetos e escolhas fotográficas que caracterizam esses espaços, transmitindo a intensidade da vibração, das cores e dos graves das caixas de som. Para mim, as imagens buscam representar não apenas o que é visível, mas também a sensação de estar presente nesse ambiente vibrante.


Você é uma pessoa que passou por várias regiões, com sua família, como Tocantins, Pará, Maranhão, Bahia, etc. De que modo isso impacta suas pesquisas visuais hoje?

GG: A experiência de passar por diferentes regiões, junto com minha família, tem um grande impacto na forma como realizo minhas pesquisas visuais. Esses trânsitos influenciam na construção da minha identidade. Apesar de me sentir próximo e pertencente a Salvador, ainda me sinto diferente daqueles que têm raízes mais profundas na cidade. As histórias, os hábitos, a culinária e até mesmo o que considero importante fotografar mudam conforme essas vivências. Essa diversidade foi construindo uma percepção de mundo muito híbrida e uma identidade que duvida de onde pertence. Isso reflete também na minha abordagem fotográfica e na busca por criar um imaginário que represente essa identidade diversificada e enraizada no trânsito entre diferentes visualidades.

Vestígios é um resgate de imagens analógicas da sua família. A manutenção da memória familiar está em que lugar para você?

GG: Este trabalho ocupa esse lugar tanto das imagens analógicas resgatadas de tempos passados e de outros eventos, quanto de uma memória que é transmitida de geração em geração. É uma memória que estou construindo a partir da herança familiar, que não é algo tangível, mas sim a história e a infância dos meus pais, que foram muito diferentes da minha. Isso não é apenas pela experiência individual deles, mas também pela interação com outros eventos, como as migrações entre estados, especialmente na região norte-nordeste. Isso abre muitas possibilidades de ver o mundo de maneiras que eu não via antes.

Para mim, Vestígios representa uma forma de compreender nossa relação com esses estados e nossa própria história, coisas que eu não experimentava aqui em Salvador ou na escola, mas que ouvia dos meus pais, narradas de outras perspectivas. Assim, tenho um entendimento mais amplo desses territórios, não apenas através da história acadêmica ou da sala de aula, mas também do contexto histórico vivenciado por eles.


Foto da série Paredão, de Gabrielle Guido, 2017

Você vive na periferia de Salvador, atuando com fotografia e cultura. Mantêm uma rotina de saídas fotográficas? O que te interessa?

GG: Hoje estou morando no centro, há quatro meses. Estou construindo uma relação com esse espaço ainda. Mudei-me por uma oportunidade de emprego na produção cultural, um lugar que me proporcionou oportunidades de subsistência e pagar as contas de forma objetiva. Estou em outro território agora. Mantenho uma rotina de tentar olhar para o mundo fotograficamente, pensando nas escolhas que faço.

Nos últimos anos, tenho tentado reduzir o ritmo de cliques e construir relações. Depois disso, elaborar a imagem tem sido um processo interno de tentar responder por que fotografo e que relação estou construindo com cada espaço. Estou usando a câmera analógica, o que me permite mais presença e escolha ao pensar nas imagens. Faço exercícios de deriva, andando e reconhecendo novos lugares na cidade, pois apesar de ter feito muitos trabalhos com paisagens, o ambiente urbano também me interessa muito.

Misturo esses universos, brincando como se fosse uma crônica, um caminho que vai se formando. Para mim, o trânsito está muito nesse lugar. Estou sempre com a câmera na mochila, pois se surgir algo, consigo fotografar. Até o momento da revelação da imagem, é outra história, reunindo os filmes e mandando revelar para viabilizar isso. Isso traz uma nova história para a fotografia, pois é algo que, mesmo morando aqui há quatro meses, ainda não vi. Quando vejo, já tenho uma nova história em relação a isso.


Foto da série Deriva em Marte, 2022

Quase contrária a Paredão, a série Deriva em Marte, de 2021, foca na natureza, no céu. Qual a sua busca ali?

GG: Essa questão de fotografar, né? Tanto sobre o Paredão quanto Deriva em Marte. É quando comecei a trabalhar com fotografia. Tanto nas pesquisas mais poéticas quanto no fotojornalismo, atendendo e prestando serviços para artistas, produtores e pessoas em geral, sempre foi no campo do retrato. O retrato é algo que me encanta muito porque é uma conexão direta com a pessoa, criando algo juntos naquele momento. Então, abre-se um espaço de criação que considero muito mágico quando retratamos alguém. Mas também envolve muita responsabilidade em relação ao outro. É uma coisa coletiva, onde ambas as pessoas detêm o poder sobre a imagem.

Pensar na paisagem também foi um exercício de imaginação, de ter menos conexão com a realidade e mais liberdade criativa. Foi uma tentativa no sentido de buscar essa possibilidade e acho que fazer isso com a imagem do outro exigiria uma relação diferente. Então, foi tentar procurar paisagens para encontrar liberdade nesse espaço criativo.

Você já participou de exposições no Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo, além de trabalhos expostos em Nova York e no Goethe Institut de Salvador. Como você vê suas produções nestes espaços?

GG: Sempre é surpreendente. Acho que o trabalho também acontece quando é visto, né? Quando é sentido, percebido pelas outras pessoas, elas questionam, discordam, se emocionam ou não. Acho que essa é uma etapa muito importante porque um trabalho guardado, às vezes, é só um rascunho, né? Assim, ele existe a partir da percepção de quem vê também. É sempre muito gratificante ver isso. É uma ocupação importante, tem um trabalho árduo de inscrições e muitas coisas, entender que a gente investe tempo para tentar enquadrar em alguma proposta, para tentar viabilizar uma exposição. Às vezes, nem sempre é sobre ser rentável, mas é sobre conseguir colocar isso no mundo, expressar uma das milhões de perspectivas interessantes que existem por aí. Todo mundo contribui de alguma maneira com isso, né? Então, eu fico feliz, acho que é um caminho de deixar uma marquinha ali sobre essa história, seja das ruas de Salvador, por onde consegui chegar até ela, os caminhos que percorri entre o Norte e o Nordeste. Então, quando vejo o trabalho sendo visto, é isso, é deixar uma perspectiva, um ponto de vista, para que possa contribuir com várias formas de ver o mundo. ///

Lucas Veloso é jornalista audiovisual e cofundador da Mural – Agência de Jornalismo das Periferias, onde também colaborou com reportagens, além de outros portais, como Alma Preta e Rio On Watch. Atualmente, edita conteúdos no Expresso na Perifa, suplemento hospedado no Estadão, além de colaborações no UOL e matérias audiovisuais na TV Cultura.

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