Exposições

Sebastião Salgado no país dos blefados

Mauricio Lissovsky & Sebastião Salgado Publicado em: 22 de outubro de 2019

Mina de Ouro Serra Pelada © Sebastião Salgado

Quando Sebastião Salgado chegou a Serra Pelada, em 1986, a montanha de ouro não havia mais. Fora transformada em buraco, numa cratera gigante. Dizem que a colina se chamava Babilônia bem antes que a primeira pepita tivesse sido encontrada em uma pequena gruta, em fins de 1979. Ou, não. Talvez Babilônia fora apenas uma das muitas designações que recebeu, em 1981, quando ali já fervilhavam 80 mil homens. Nas narrativas de garimpeiros não é fácil distinguir fábula e testemunho, sonho e vigília, mito e história. O fotógrafo diante do assombro, do impensável, do nunca visto, conseguiria discernir? E por que desvencilhar-se do mito se ele está assim tão entranhado no corpo e na alma desses homens? Estranho paradoxo: quanto mais difícil de escavar o ouro, mais à flor da pele sonham os garimpeiros.

Juca Martins fez a primeira grande reportagem fotográfica de Serra Pelada, em 1980. Ainda havia ali árvores esparsas, juquira para roçar, e uma réstia de céu emoldurando o horizonte. Cinco anos depois, quase todo o ouro havia sido retirado e 50 mil garimpeiros lutavam para manter seca a cava com 200 metros de fundura. É para baixo que o fotógrafo agora olha primeiro, como se a fotografia também tivesse que ser extraída do piso barrento.

Sebastião Salgado sempre teve uma sensibilidade especial para o mítico. Ninguém precisou lhe dizer que a montanha removida pela fé dos garimpeiros se chamara Babilônia (ou viria a se chamar assim). Babel estava ali, os escravos estavam ali. E o sonho havia virado do avesso, pois não é o Céu que as formigas-humanas buscavam alcançar, mas o Inferno, o mundo subterrâneo. Foi isso que viu, na borda da cava: a camiseta enlameada, enrugada, como o dorso lanhado do escravo das minas. No tempo do mito tudo retorna. Se há alguma premissa documental nesse ensaio é que não há conhecimento sem reconhecimento: o fundo mítico de onde provêm as imagens é o mesmo que alimenta os sonhos.

Na exposição do novo livro, informa-nos o release, há fotografias inéditas – como identificá-las se já as vimos antes, em tempos remotos, na cólera divina, nas lamentações de Jeremias? A coreografia solene dos garimpeiros não evolui ao acaso: ela inscreve lentamente os acontecimentos em uma história sagrada. Por isso, já se disse mais de uma vez, a iconografia de Salgado não é propriamente humanística, mas religiosa. Como ilustrações de um relato ancestral, essas fotografias existiam muito antes de terem sido feitas. A forma que assumem é aquela à qual, desde o princípio, estavam destinadas. Os gregos antigos diziam akme, o aspecto culminante de uma vida. A figuração do destino que não toma para si um acontecimento singular e fugidio, mas imagina compreender toda uma história. Akmaí: Gold é um livro de imagens maduras.

Façamos um segundo percurso pela exposição. Uma diferença havia nos escapado: os retratos. A primeira Serra Pelada de Salgado nos lembrava a história da mulher de um garimpeiro goiano que visita a mina em 1983 (no auge do ouro a presença de mulheres era proibida). Ela entrou na boleia de um caminhão que levava a dupla sertaneja Irmãs Freitas para um show no garimpo (“Não tenho notícia / não sei onde vive / aquele que amo / com todo carinho”):  “Quando saltei do caminhão percebi que estava rodeada de tantos homens sujos de lama que não conseguia identificar entre eles qual era meu marido”.

Entre as imagens que o fotógrafo logo nos ofereceu, não havia retratos. Podia haver rostos, que nos confrontavam como máscaras, mas sua identidade se diluía em meio às pernas, braços e dorsos musculosos. Agora temos a sensação que finalmente os vemos, uns pela primeira vez, outros como velhos conhecidos: o garimpeiro que segura valente a espingarda de um policial; esse outro que foi surpreendido em falta (na posse de um revólver, creio) e que logo será exemplarmente punido pelos companheiros; o jovem exausto, encostado em um mourão no centro do buraco, como outro Sebastião, o santo, à espera das flechas.

Mina de Ouro Serra Pelada © Sebastião Salgado

A novidade, ao menos para mim, são os adolescentes. Nunca havia reparado neles. Nos velhos, sim, extenuados, os corpos secos, os sacos sobre as costas, presos à cabeça para deixar as mãos livres – única maneira de galgar as encostas da cava. Sob a corda testeira, os olhos arregalados de esforço estão por toda parte. Denunciam a presença do fotógrafo e, para além dele, interrogam-nos. Pois é inútil procurar qualquer resposta nessas miradas. Não a possuem, exceto talvez esse duende antigo que já viu demais e agora nos sorri com ironia. Os demais, principalmente os jovens, encarando-nos, apenas restituem o espanto original: nosso espanto diante deles e seu próprio espanto diante de si mesmos.

De resto, as novas escolhas de Salgado, revisitando seu arquivo, mantiveram-se fiéis às primeiras. Não vemos as mulheres, mesmo que sua presença estivesse autorizada àquela altura. A proibição, estabelecida por ainda outro Sebastião – o major Curió –, em abril de 1980, havia caducado. As primeiras tinham entrado “furando” pela mata, como qualquer garimpeiro clandestino. Uma dessas “furonas” conta que “andávamos em meio a milhares de homens e ninguém mexia conosco porque a lei não escrita dizia que toda mulher era homem.” Em 1986, estão por toda parte, catando as faíscas, carregando sacos, cozinhando as merendas.

Mas não nessas fotografias, pois uma distância difícil de transpor separa a elaboração mítica da facticidade jornalística. A extensa documentação que faz Salgado do garimpo tem, na verdade, uma topologia reduzida. Ninguém dorme, ninguém come, ninguém beija, ninguém dança. Habita-se apenas o fundo da cava, as encostas e as escadas – uma delas, de 180 degraus, chamada “adeus mamãe” –, e a “apuração”, onde, com auxílio eventual da luz elétrica busca-se no fundo da bateia a faísca de ouro em meio à terra lavada. Quaisquer outros personagens são difíceis de discernir: os donos dos barrancos, os meia-praças, os pilotos, os empresários, os “bamburrados” (garimpeiros que enricaram). A sociedade dessas fotografias é toda constituída por “cavadores”, “formigas” e “apuradores”, seres que só podem existir debruçados sobre a terra, agarrados a ela, chafurdando. Mas, ouro, ouro mesmo, não se vê. Ninguém acha nada no buraco ou dentro do saco; nada cintila, a não ser o reflexo da esperança no rosto de quem mantém os olhos fixos no cascalho.

Quando as fotografias de Serra Pelada foram internacionalmente publicadas, em 1987, compunham o panorama inacreditável da maior mina a céu aberto do mundo, encravada na floresta amazônica como a cratera de um meteoro, um cupinzeiro decepado do qual não cessavam de brotar térmitas humanas. Revisitadas nessa exposição, depois do ouro e depois de tudo, são um monumento aos blefados. Aos que cavaram, cavaram, e nada acharam – mas precisavam acreditar que seu dia chegaria, pois é dever de todos cavar em vão para que alguém encontre o grão. Blefados também são os formigas que não tem mais qualquer esperança a não ser a de que o dono do barranco ainda disponha de capital para continuar pagando a jornada. E são também os furões, que chegaram à mina quando o ouro escasseara. Blefados aos milhares, espalhados ainda hoje pelos rios e serras da Amazônia, disputando seu palmo de lavra com as grandes empresas mineradoras, invadindo as reservas indígenas, entupindo os veios e as veias com mercúrio.

Mina de Ouro Serra Pelada © Sebastião Salgado

Garimpeiro de manhã, sem-terra de tarde, sem-teto de noite. Se somos um país de blefados, que fiquem onde estão, que se internem cada vez mais na mata, pois atrás deles vai a queimada, o gado, a soja. Um dia vão calcular, na ponta do lápis, se a riqueza extraída de Serra Pelada cobriu os custos de manutenção e vigilância da mina e o prejuízo ambiental do lago envenenado que é seu maior legado à floresta. Todos sabiam, no estertores da ditadura, que era preciso manter a cava funcionando e quanto mais garimpeiros enfiados ali, melhor. Será muito diferente hoje em dia?

Em Serra Pelada, no tempo da visita de Sebastião Salgado, circulava a seguinte piada. Morreram 20 garimpeiros e foram para o Céu. Chegaram lá e começaram a pesquisar para ver onde tinha ouro. São Pedro ficou furioso com a bagunça e falou que não ia entrar mais nenhum garimpeiro no paraíso. Dias depois, morreu um garimpeiro velhinho. Apareceu na porta totalmente equipado com bateia, picareta, pá e rede. São Pedro barrou: “Garimpeiro aqui não entra mais, já tem muito”. O velhinho insistiu e prometeu tirar todos os garimpeiros do Céu. São Pedro concordou e o velhinho entrou. No dia seguinte, os demais garimpeiros começaram a pedir para ir embora. Saíram todos e a paz celestial voltou a reinar. Um mês depois o velhinho também pediu para sair.  São Pedro se surpreendeu, mas concordou, com uma condição: “antes você tem que me dizer como fez pra tirar os outros daqui”. E o velhinho: “Eu menti para eles que no Inferno tinha uma grota dando muito ouro. Mas, como eles estão demorando muito para voltar, acho que encontraram ouro mesmo, e eu também vou para lá”.

O velho garimpeiro, assim como o velho fotógrafo, sabe que não se acha ouro novo em grota antiga. Mas são ambos chamados a retroceder sobre os próprios passos. E a buscar ali, em uma cintilação passageira, em um recanto esquecido da memória, o futuro que deixamos escapar e que só a nós cabe reencontrar. ///

 

Mauricio Lissovsky, historiador, UFRJ/UFPE. Roteirista de Serra Pelada, a lenda da montanha de ouro (Victor Lopes, TV Zero, 2013).

 

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