Entrevistas

Do fluxo, da rua, do funk

Lucas Veloso & Fernanda Souza Publicado em: 12 de dezembro de 2022

“Tá ligado?” é uma gíria que revela a origem paulistana da fotógrafa Fernanda Souza, 27. Nas conversas, no rolê e nas articulações que faz, a expressão não sai da boca dela. Cria do Grajaú, periferia no extremo sul da capital paulista, ela diz que se ver como profissional de foto nunca foi natural para ela. Sem ter feito faculdade para aprender técnicas e teorias, foi na rua, botando a mão na massa e buscando dicas e aulas online que Fernanda desenvolveu as habilidades que coloca em prática hoje.

O interesse por registrar momentos e pessoas começou depois que ganhou do pai uma Cyber-shot encontrada no lixo. Logo nos primeiros dias passou a registrar o cotidiano do bairro, como a escola e os próprios bailes. A memória deste período é afetiva, mas também profissional: “A fotografia surgiu por causa do funk”, comenta.

Hoje, com um arquivo de mais de 3 mil fotos, além de uma exposição individual no currículo e outros trabalhos envolvendo sua criatividade visual, Fernanda olha para o futuro cheia de planos, incluindo uma ‘exposição diferenciada’ que ela prefere não revelar ainda para os ‘bicos’ [intrometidos] não copiarem.

Como a fotografia entrou na sua vida? Teve um acontecimento específico?

Fernanda Souza: Quando eu puxo na memória, foi no ensino médio. Lembro que o meu pai tinha achado uma câmera no lixo, uma Cyber-shot que ele acabou me dando. E aí eu ficava tirando foto dos meninos no ensino médio, no baile, das roupas. Eu curtia muito roupa, tá ligado? Achava os bagulhos do funk muito chave [estiloso, bonito], principalmente pela ostentação. Eu achava daora também ser a pessoa que tirava foto deles.

E isso é uma memória afetiva. Fui crescendo, tive outros caminhos e fui mudando. Lembro que em 2015 e 2016 comecei a fazer fotos no meu bairro. Eu guardava e continuava fazendo foto de baile também.

Só que entender isso mesmo como trampo e começar a investir foi em 2019. Quando eu fiz umas fotos dos moleques de boné de crochê no baile. Na pandemia, comecei a querer registrar o que estava rolando, tá ligado? Mas assim, a minha primeira foto de baile foi em 2016, mas só passei a levar a sério em 2019. Falei: “Porra, mano. Acho que eu vou começar”, e ainda não achava que era fotógrafa, mas eu fazia fotos.

E o funk, o fluxo? Como chegou para você? A fotografia entrou por conta disso também?

FS: Ah, o funk está na minha vida desde o ensino médio. Mano, de uma forma muito natural. Tipo, quem é de quebrada, mas não necessariamente todo mundo, é funkeiro. Nós não somos todos iguais, mas é inevitável dizer que o funk está presente e começou a se consolidar na quebrada, lá em 2008, 2009, tá ligado?

E aí começam os fluxos, aqueles carrinhos com a cornetinha, né? Aqueles carros com aquelas cornetas de som nas quermesses e tal. Não tinha como, tá ligado? Todo mundo escutava. Comecei aí. Alguns vão criando uma afeição, outros não. Criei muita afeição. Tipo, de quinta-feira na escola, a gente cabulava aula pra ver show de funk. Eu chamava de baile de bolsa porque todo mundo tava de bolsa. Depois começou o fluxo de rua.

Na minha família, o pessoal gosta de funk para caramba, tá ligado? Então eu ia para o baile funk com o meu irmão mais novo. Eu sempre gostei muito de funk. Ou era hip-hop ou era funk. Eu ouço outras coisas, conheço outras coisas, mas o funk sempre foi algo muito presente. Em determinado momento até tentei deixar de lado essas paradas porque eu vi que ia me trazer uma certa marginalidade, mas não consegui, mano, porque tava para além disso.

Então eu falei: “não cara, eu não posso deixar de ser quem eu sou”. Eu gostava de fluxo. Até hoje, inclusive, eu sinto que sou muito marginalizada por frequentar, mas a fotografia surgiu através do funk.

Como se vê como fotógrafa? Como define seu trampo?

FS: Parça, é muito foda. Essa pergunta, como você se vê como fotógrafa. Eu demorei muito para me ver fotógrafa. Às vezes, ainda hoje, não me vejo fotógrafa. Tenho muita dificuldade por não ter passado numa faculdade.

Eu aprendo tudo sozinha, tipo, eu tenho medo das pessoas não me respeitarem como artista por ser do funk, mas agora estou me vendo como fotógrafa. Pô, eu tive uma exposição e eu fiz um corre mesmo, tá ligado? Eu tenho minhas câmeras analógicas que eu garimpo. Compro filme. Estudo sozinha, e é muito difícil estudar fotografia analógica sozinha. Tipo, resolvi que eu quero ser fotógrafa de analógica porque gosto da estética. Então, estudo sozinha, junto dinheiro para comprar os filmes sozinha, para revelar sozinha, mano.

Eu sou fotógrafa, tá ligado? Eu tenho todo um rolê, mano. Hoje me vejo como fotógrafa.

Na fotografia, quem te inspira a fazer seu trampo?

FS: Quem me inspira a fazer meu trampo é um cara chamado Chi Modu. Ele fotografava as pessoas do hip-hop lá na gringa, e eu acho ele muito foda. Eu queria fazer como ele fazia, era isso, e tipo, eu briso também em fotografia analógica. Tenho umas outras referências também, que vieram muito depois porque eu comecei a fotografar sem referência, sacou? Depois eu conheci o Chi Modu em um rolê de hip-hop. Tem alguns caras lá de fora que fazem um trampo muito foda, na gringa, tipo na Europa, na África, E que fazem analógica registrando os bairros, isso também é muito foda para mim.

Você vê seu trabalho como um contraponto à visão preconceituosa da sociedade com o funk?

FS: Com certeza, o meu trampo é um contraponto a isso. Muitas vezes construo um imaginário e trago nas minhas fotos um outro ponto de vista. Tipo, cores, afetividade, símbolos. Acredito sim que o meu trampo constrói um contraponto contra o racismo e o preconceito sobre a cultura funk, os corpos das pessoas pretas. Trago pessoas periféricas também.

Trago uma nova perspectiva do que é o nosso rolê, de dentro. Falo com toda certeza que eu conheço muito sobre o meu rolê, sobre o meu movimento, tá ligado? Também tem beleza. Puxo coisas que muitas vezes as pessoas não querem ver. Tenho fotos que trazem discussões, e às vezes nem posto, como quando envolve droga. As pessoas não vão entender, elas não vão refletir, deixo essas fotos para outro momento, quando for preciso refletir, ou quando alguém do movimento quiser puxar o bonde.

Já expôs seu trabalho? Já foi publicado em algum lugar?

FS: Já expus meu trabalho. Agora, em agosto, no Centro Cultural São Paulo. Foram 10 fotografias do meu acervo com uma curadoria muito foda. Junto com a Neriê Bento selecionei as fotos, dei as legendas. Escolhi como elas iam ficar. Enfim, isso foi muito foda porque, mano, meus amigos da quebrada colaram. Pessoas do funk de fato. Galera de Carapicuiba [cidade na Grande SP], pessoas que estavam registradas nas fotos colaram. Muito foda, gente de São Mateus, de Guarulhos, gente do [Jardim] Peri, de todos os lugares.

Qual o retorno da galera que você fotografa?

FS: A galera gosta muito porque eu tenho um olhar de trazer a festividade. Eles se sentem representados. Às vezes eu tô no baile, o pessoal me reconhece, né? Eu tenho uma certa proporção no baile. ‘Ou, você não é a mina da fotografia?’, ‘Tira uma foto do nosso bonde’ ou ‘Tira foto do meu kit’. Sempre alguém tá pedindo algo para eu registrar. Isso é simplesmente foda, mano. Ser reconhecida.

Também recebo coisas no Instagram, como ‘Você colou em tal baile?’, ou ‘Você tirou uma foto minha. Você pode mandar?’. Isso é muito foda. Isso é sobre autoestima, tá ligado?

As pessoas podem falar o que quiserem de mim, mas não do meu trampo, e do que eu me proponho a fazer porque eu faço com muita afetividade. As fotografias, os filmes, o tempo de revelação, tiro do bolso. Ninguém me paga por isso. Se eu quiser ir no baile, eu vou. Tiro foto, pego e volto, tá ligado? Sai tudo do meu bolso.

Se isso vai virar algum trampo, pode ser que vire. Às vezes alguém me dá um salve para fazer fotos para marcas, coisas de baile, mas no geral eu faço o que quero com as fotografias do meu acervo. É muito porque eu quero fazer. Se quero colar em Itaquera, vou no baile mesmo, nem que seja sozinha.

Planos? Novidades para os próximos meses?

FS: Estou fazendo um acervo gigante. Tenho um plano de fazer uma exposição, mas uma exposição muito diferenciada que eu não posso falar porque você tá ligado, né? Vai que os bico aí joga energia negativa, sem criatividade, e me copia, principalmente os boy, né? Porque geralmente essas coisas vem dos boy. Mas eu quero muito fazer um bagulho, assim, da hora, na rua. ///

Lucas Veloso é jornalista audiovisual e cofundador da Mural – Agência de Jornalismo das Periferias, onde também colaborou com reportagens, além de outros portais, como Alma Preta e Rio On Watch. Atualmente, edita conteúdos no Expresso na Perifa, suplemento hospedado no Estadão, além de colaborações no UOL e matérias audiovisuais na TV Cultura. Frequentador de exposições, também é interessado em artes, música e cultura.