Entrevistas

Da ponte pra cá

Lucas Veloso & Léu Britto Publicado em: 16 de março de 2023

Da série Já encheu, de Léu Brito

O improviso das casas, a rotina diária de trabalhadores e trabalhadoras em busca do pão de cada dia, a ausência do poder público e a potência cultural nas bordas das cidades são assuntos onipresentes nas imagens do fotojornalista Leonardo da Silva Britto, 34, mais conhecido por onde passa só como Léu. O fotógrafo conta hoje com um acervo de mais de 50 mil fotografias de favelas e periferias do Brasil. E não é por acaso que essa geografia aparece nas lentes.

Nascido na favela do Monte Azul, na zona sul de São Paulo, sua primeira foto foi de uma ação que atendia pessoas em situação de rua no centro de São Paulo. Anos depois atuou como comunicador na Agência Solano Trindade, importante organização que promove ações culturais nas quebradas, como também são conhecidos os lugares que Léu circula.

Com um livro lançado, mais de uma década de carreira, e sócio do DiCampana, coletivo de fotógrafos com o intuito de mudar o olhar das pessoas sobre as periferias, segue na rua (inclusive enquanto você lê esse texto) mostrando o quão ‘o mundo é diferente da ponte pra cá’, como cantam os Racionais MC’s.

Da série Engenheiros sem diploma, de Léu Britto

Você nasceu e cresceu na Favela Monte Azul. De lá, como começou seu interesse pela fotografia? Quando isso entrou na sua vida?

Léu Britto: Mano, vou contar de trás pra frente. Eu entrei na faculdade de jornalismo entre 2010 e 2014, mas não concluí. Fiz 3 anos e meio, o último semestre, eu tranquei por falta de grana. Então, faltou fazer o TCC. Se eu tivesse entregue meu TCC, seria um fotolivro sobre um tema que me causava muita perturbação assim que saí do colegial em 2005: pessoas em situação de rua.

Um detalhe aqui: eu não acho que nada na vida se legitima se você tem um canudo de um diploma nas mãos. Isso, pra mim, até hoje, é importante pro mercado, pro sistema e pra quem quer se aparecer e dizer que fez isso e aquilo na vida acadêmica. Pra mim, só existem dois tipos de conhecimento: aquele que você mostra que aprendeu e faz, e aquele que você teoriza, fala bem sobre, mas nunca faz bem feito.

Então, em cima desse ponto, eu sei que aprendi fotografia sendo autodidata. É aqui que te explico como ela entrou na minha vida. Em 2006, quis conhecer organizações que atuassem em apoio à população em situação de rua. Nesse momento, conheci o Robson Mendonça, o presidente do Movimento Estadual da População em Situação de Rua. Ele percebeu meu interesse e empatia para com as pessoas que estavam nessa vulnerabilidade.

Anualmente, ele e sua organização, faziam, no dia 21 de abril, na frente da Catedral da Sé, um dia de encontro para seus atendidos, com música, alimentação, CAT (Centro de Apoio ao Trabalhador) para tirar documentos, e chamavam uma escola para oferecer corte de cabelo e barba, além da Unidade Básica de Saúde (UBS) local para apoio médico a quem necessitasse.

Foi dentro deste contexto que registrei minha primeira série fotográfica, com uma câmera Cybershot da Kodak modelo C813, que era da minha mãe Katia.

Outro fato que acho importante marcar nesta iniciação foi outra série – Corpos – que fiz quando já era repórter estagiário dentro da Rede Brasil Atual (RBA) entre 2011 e 2012.

Nesse trabalho, eu tive que ser repórter e jogaram uma câmera na minha mão para fazer os registros das pautas. Foi a primeira vez que tive a oportunidade de exercer o fotojornalismo, e, por mais que a faculdade tenha me dado um semestre de fotografia, não aprendi muito lá. Foi fora da instituição que estudei, pelos tutoriais, para saber mexer na Nikon D3100 com um lente 18-55mm e fazer fotos aceitáveis.

Sobre a tal série que citei acima, eu trampava na redação da RBA, que era na São Bento. E sempre ia de metrô para o trabalho, chegava muito cedo, muitas vezes de madrugada no centro e via aquele mar de gente deitada no concreto gelado e, na maioria das vezes, amontoados, na tentativa de se aquecerem. Então, fiz registros dessas pessoas dormindo, com o cobertor cobrindo 100% de seus corpos. E quando registrei e vi na tela da câmera, pensei: “realmente, aqui, ninguém sabe se a pessoa está viva ou morta”, pois a cena deles dormindo no Pátio do Colégio, adjacência da estação da Sé e em outros pontos da São Bento, davam a impressão de que podiam estar mortos. Por isso, o nome da série: Corpos.

Quais foram as principais dificuldades no percurso até aqui?

LB: Equipamento sempre foi uma questão para mim. Adquiri minha primeira câmera usada, uma Canon 7D com uma lente 28-135mm, em 2013, por R$ 4 mil, parcelado em 4 vezes. Comprei-a de um segundo dono, mas ela estava em ótimo estado e me serviu muito bem durante meus primeiros 7 anos de fotografia que fiz com ela. Abriram-se portas e oportunidades. Outra questão é ser produtor de imagens: computador e armazenamento são essenciais. Foi só em 2015, quando ganhei meu primeiro edital VAI Tec, que consegui comprar meu primeiro Macbook Pro de 17 polegadas, modelo 2011, e uns HDs externos.

Atualmente, trampando na área, já atualizei esses equipamentos há algum tempo. Mas a vontade de atualização do mercado nos empurra sempre a adquirir equipamentos novos, o que é uma dificuldade latente para todos os profissionais. As dificuldades pessoais de conhecimento e de saber fazer uma tal composição ou estilo nunca foram barreiras para mim. Estudar essa área é uma coisa que faço constantemente para ficar a par do que preciso fazer. Amigos e amigas também foram grandes parceiros no compartilhamento de conhecimento pessoal.

Da série Engenheiros sem diploma, de Léu Britto

Lembra quais foram os primeiros registros que fez? Como chegou neles?

LB: Me considero um profissional, mesmo quando, em 2013, entrei na Agência Solano Trindade para preencher um cargo de comunicador da agência de notícias. Na época, fui desafiado a me virar na cobertura de cultura, educação e denúncias de violação de direitos humanos. Então, meu primeiro documentário, feito junto com meu amigo e sócio José Silva, do DiCampana (que nem existia na época), foi a cobertura de uma enchente muito forte que os bairros de Pirajussara, Macedônia no Campo Limpo e Jardim Silvio Sampaio, em Taboão da Serra [cidade na Grande São Paulo] sofreram, devido à ausência de manutenção de um piscinão da região. Dentro da Solano, muitas portas se abriram para mim: cobertura da 31ª Bienal de Arte de São Paulo, conhecimento de terreiros de candomblé no Rio de Janeiro e muitas outras coisas boas aconteceram desde então, como o DiCampana Foto Coletivo, Agência Mural, e por aí vai, a vida.

Quais suas inspirações profissionais? Quem ajuda a definir seu olhar sobre favelas e periferias?

LB: Não dá pra citar nomes, é impossível. O que posso afirmar é que todos favelados e faveladas com uma câmera na mão me inspiram a seguir clicando o povo empobrecido das nossas quebradas, até o dia em que nossas imagens se tornem obras de museu, a pobreza seja algo do passado e não tenhamos que continuar denunciando o sofrimento do povo, que seja arte pela arte, assim como os “boy” e os abastados fazem desde que conhecem as artes e as expressam para o mundo.

Ricos não têm tempo para chorar as dores das mazelas humanas, eles já nascem no conforto do fazer e existir. Os grandes fotógrafos(as) do mercado e da mídia não são referência pra mim, são material de estudo. Quando nós, sujeitos periféricos, começamos a fazer arte, entendemos que nunca ninguém foi igual a nós, somos únicos, potentes e latentes no que nos propomos a fazer, e os museus e academia são pequenos pro tamanho da nossa maneira de fazer. Essa é a realidade atualmente para mim.

Para além de um registro do dia a dia, acha que seu trabalho também ajuda a criar um acervo visual das periferias, muitas vezes estigmatizadas?

LB: Contribui, mas ele não será reconhecido agora, nessa década, deste século, como em tudo para os periféricos, não serão museus com o nome de favela que vão ajudar a mudar esses estigmas. Pois, há muito tempo, Eustáquio Neves, Luiz Braga, Jamel Shabazz, Felicia Abban, Liz Johnson Artur e muitas outras pessoas já desconstroem o imaginário sobre o que é o povo e sua sobrevivência, mas, novamente, os mais ricos, políticos e oportunistas, que têm condições de auxiliar a tirar esses problemas das vidas das pessoas, não querem fazer, e não importa a foto que eu e os meus façamos, eles sempre estarão cegos para nossas imagens.

Acredita que ser da periferia torna seu olhar e seu trabalho diferente de alguém com uma trajetória diferente?

LB: Sim, com certeza. Uma câmera e uma lente de última geração podem registrar as vidas entre becos e vielas, mas, como já dizem os profetas da favela [o grupo de rap Racionais MC’s], “só quem é de lá sabe o que acontece”. Sabe por quê? Porque tem que acontecer empatia com os empobrecidos, e isso não ocorre quando você pisa no quintal deles, mas quando é convidado a adentrar.

Da série Já encheu, de Léu Brito

Na periferia, as pessoas entendem o valor do seu trampo? E fora dela, como é a recepção?

LB: Entender o valor, não sei! Será que minha gente preta, empobrecida e favelada, sabe a diferença entre preço e valor? Será que para minha gente, publicar um livro ou imprimir uma foto traz alguma importância no cotidiano da vida dela? O mundo capitalista, atualmente ainda mais na era das redes sociais, se você não tem X milhares de seguidores, quem é você na fila do pão? E olha que você pode ter publicado X livros, exposto em milhares de galerias e exposições, mas ainda assim, minha gente não vai saber o real valor que isso tem, assim como um galerista ou um curador de arte pode ter. Mundos diferentes, códigos acessíveis a uns e inacessíveis a outros.

Já fui vaidoso e pretensioso de me achar alguém dentro da arte da fotografia, confesso, mas depois que intensifiquei meu projeto de 10 anos, que é meu trabalho final para os próximos anos, sobre o que vi, vivi, chorei, ri e testemunhei dentro dos barracos de madeira, entre as paredes mofadas, armários vazios e peles marcadas pelo sofrimento das ausências, me despi de tudo e do glamour que a sociedade detentora dos meios de produção quer nos impor.

E sobre os ensaios Engenheiros sem Diploma e Já Encheu. Qual a ideia que pensou para os dois? O que representam?

LB: Quais são as tradicionais profissões hereditárias dos ricos? Médicos, advogados, juízes, desembargadores, dentistas, administradores de empresas, engenheiros etc. E quais são as profissões herdadas dos favelados? Faxineiras, porteiros, seguranças, motoristas, auxiliares de alguma coisa qualquer, pedreiros etc. Por outro lado, sempre observei que quem construiu as casas onde morei não foram engenheiros civis, mas engenheiros sem diploma, os pedreiros.

Como eles sabem construir tão bem? No mínimo sabem, pois bilhões de favelas permanecem de pé ainda hoje. A não ser em casos constantes de descaso e abandono social, quando a ausência de urbanização e desapropriação de terra vem derrubar nossos lares. Mas do contrário, são anos e anos, de casas construídas firmes e fortes, sustentando os tetos dos trabalhadores que mantém tudo de pé na cidade.

No caso do Já Encheu é o seguinte. “Esgoto a céu aberto é real de vários mano”, já reafirmou o rapper Ice Blue na música Tá na Chuva, em parceria com Edi Rock, ambos do Racionais MCs. O tema da série é Córregos, e este foi o primeiro assunto que minha vivência de favelado quis perseguir. Saneamento básico é o problema mais complicado que os periféricos registram em sua vida cotidiana, seja cruzando a ponte de concreto do bairro para o centro, passando pelos maiores córregos a céu aberto, como os rios Pinheiros e Tietê, ou as pontes de madeira das suas casas até o ponto de ônibus.

Fora que: nunca entendi por que só nas favelas têm córregos a céu aberto, ainda. E nos bairros ”nobres” é tudo certinho e canalizado? Em busca da resposta, persigo continuamente registrar esse contraste de CEP pra CEP.

Da série Engenheiros sem diploma, de Léu Brito

Qual seu sonho? Objetivos profissionais, quais são?

LB: Poder publicar uma obra final para minha carreira como artista visual que sou, sobre as histórias que conheci e vivi, um livro grande, aqueles de capa dura daora, como o que o Sebastião Salgado fez com Êxodos ou Genesis. Para que eles sejam distribuídos nas escolas públicas, saraus, slams, movimentos sociais e todo ajuntamento de empobrecidos que ainda irão existir quando eu morrer. Que meu legado seja ter enaltecido as imagens daqueles que foram invisibilizados, desapropriados, despojados e maltratados. Que eu possa ter contribuído com a afirmação da existência das donas Maria, seus José e João, que nascem, contribuem, pagam impostos, mas na hora que precisam de auxílio são “des-emergenciais”, por serem pobres, favelados e muitas vezes negros. Que lá na frente, quando olharem para o meu trabalho, alguém pense: “Por que ele dedicou uma vida inteira a registrar a pobreza capital e humana, causada por ‘nois memu’, seres humanos egoístas.” ///

Lucas Veloso é jornalista audiovisual e cofundador da Mural – Agência de Jornalismo das Periferias, onde também colaborou com reportagens, além de outros portais, como Alma Preta e Rio On Watch. Atualmente, edita conteúdos no Expresso na Perifa, suplemento hospedado no Estadão, além de colaborações no UOL e matérias audiovisuais na TV Cultura. Frequentador de exposições, também é interessado em artes, música e cultura.

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