Ensaios

Chile, 50 anos de um golpe em imagens

Carolina Amaral de Aguiar Publicado em: 15 de setembro de 2023

Exército nas ruas, Santiago, Chile, entre 21 e 30/09/1973. Evandro Teixeira/Acervo IMS

No dia 18 de agosto de 2023, a poucas semanas da efeméride dos 50 anos do golpe de Estado no Chile, uma multidão formada por pessoas de diferentes idades disputava um lugar no auditório do Museu da Memória e dos Direitos Humanos em Santiago. Tratava-se de um evento bastante esperado: o fotojornalista holandês Chas Gerretsen voltava ao Chile, país que deixou em 1974, para participar da inauguração da exposição Rebobinar, reimaginar, reportar de Chas Gerretsen, em cartaz no mesmo museu. Sua visita também antecipou o pré-lançamento em espanhol do fotolivro Chile. El archivo fotográfico 1973-1974, já publicado em inglês. A emoção de ver uma intensa disputa para escutar o fotógrafo veterano, cuja experiência passa pela presença nas guerras do Vietnã e do Camboja e pelo trabalho no filme Apocalypse Now (1979), foi intensificada logo no início da conversa. Ao ser perguntado pelo jornalista Daniel Matamala sobre quais recordações guardava de sua experiência chilena anterior, quando fotografou intensos conflitos políticos e o golpe, o senhor franzino de chapéu se desfez em um choro incontrolável.

A capacidade de comoção de um fotógrafo de guerra 50 anos depois talvez seja mais forte, no presente, do que aquela suscitada por suas imagens, que se tornaram alguns dos emblemas mais conhecidos e replicados do 11 de setembro de 1973. Com credencial de jornalista estrangeiro, Chas Gerretsen esteve nos arredores do palácio enquanto o La Moneda era bombardeado pelas Forças Armadas chilenas. Além da conhecida foto de um cachorro vira-lata em primeiro plano, com o palácio que queima ao fundo, Gerretsen fotografou também a tentativa de resistência dos apoiadores de Allende vista de uma varanda. Mas nem todas as suas fotografias icônicas foram tiradas no dia do golpe. Ele esteve no centro de eventos anteriores e posteriores, como a primeira tentativa de derrubada da democracia (el tanquetazo, ocorrido em 29 de junho de 1973) e os primeiros comunicados da Junta Militar golpista. Sua fotografia mais famosa é, sem dúvida, a que mostra Augusto Pinochet de óculos escuros e braços cruzados, um momento capturado em 18 de setembro de 1973. A famosa foto foi replicada em inúmeras mídias, inspirando caricaturas do ditador e cartazes de solidariedade que circularam pelo mundo. Converteu-se, assim, na imagem por excelência não apenas de Pinochet, mas da personificação do mal presente nas ditaduras latino-americanas.

As fotografias de Chas Gerretsen mostram que a iconografia do 11 de setembro tem uma duração temporal mais longa do que o dia do golpe. As cenas de prisão, os tanques militares nas ruas, as ruínas do La Moneda e a queima de livros foram alguns dos momentos intensamente registrados no Chile do pós-golpe e que circularam em veículos mIdiáticos internacionais distintos, desde a imprensa escrita até a televisão e o cinema. O Chile esteve no centro das atenções do debate político mundial desde a chegada de Salvador Allende à presidência, por eleições democráticas vencidas por uma ampla aliança de partidos de esquerda: a Unidade Popular. A UP, como foi chamada, converteu-se em uma referência para as esquerdas ocidentais ao unir socialismo e democracia, o que foi visto como uma alternativa ao modelo revolucionário cubano. Naquele contexto, nos anos em que Allende governou (1970-1973), jornalistas e fotojornalistas povoaram o país. Essa intensa presença produziu imagens icônicas, como as sequências audiovisuais nas quais o camera man argentino-sueco, Leonardo Henrichsen, que trabalhava para a televisão pública da Suécia, filmou sua própria morte durante el tanquetazo. Antes mesmo de serem incorporadas pelo documentário A batalha do Chile (1975, 1976, 1979), de Patricio Guzmán, a cena em que Henrichsen focaliza o soldado que logo se tornaria seu carrasco foi replicada pelas televisões de vários países.

 

Foto de Luis Orlando Lagos Vásquez, feita em 11 de setembro de 1973. Heritage Image Partnership Ltd / Alamy /Fotoarena

As primeiras imagens do golpe transmitidas pelas televisões estrangeiras saíram por uma linha aberta que se conectava com a cidade de Mendonza, na Argentina, onde se encontravam os correspondentes que esperavam a abertura das fronteiras (caso dos brasileiros Evandro Teixeira e Paulo César de Araújo, ambos trabalhadores do Jornal do Brasil). Um transmissor de fotografias garantiu ao exterior visualizar rapidamente a violência perpetrada em 11 de setembro e nos dias posteriores, o que fez com que as imagens fixas tivessem um papel importante na difusão das notícias sobre o país cerceado. Nesse contexto, é necessário destacar também a importância de chilenos, como Luis Orlando Lagos Vásquez, fotógrafo oficial da presidência que fez a última foto de Allende. A imagem do presidente com um capacete militar, segurando uma metralhadora, a mesma com a qual cometeria pouco depois o suicídio, converteu-se à época no símbolo da resistência – mesmo que, na prática, a resistência armada não tenha conseguido se opor de forma significativa às forças de segurança do Estado.

É interessante refletir brevemente sobre a circulação das imagens do golpe. A imprensa escrita, com maior capacidade de replicação, serviu de suporte para fotografias que, depois, ganharam meios audiovisuais. O exemplo mais emblemático foi a revista Chili: spécial reporter objectif, publicação bilíngue (francês e inglês) da agência Gamma, que reuniu 82 fotos tiradas no Chile por três fotógrafos estrangeiros. Além de uma série de fotografias de Chas Gerretsen, estavam presentes registros de Raymond Depardon realizados em 1971, ainda durante os anos de Allende, e do estadunidense David Burnett, autor de várias imagens captadas nos primeiros dias da ditadura, que mostram cenas do interior do Estádio Nacional e de soldados queimando livros nas ruas. Chili: spécial reporter objectif ganhou o prêmio Robert Capa dado pela associação dos correspondentes estrangeiros nos Estados Unidos.

 

Frame do filme O tigre saltou e matou, mas morrerá… morrerá…, de Santiago Álvarez, 1973. Na imagem, a foto clássica do fotojornalista David Burnett.

As imagens da publicação da Gamma povoaram o cinema documentário. A foto de David Burnett que centraliza a feição assustada de um prisioneiro no Estádio Nacional (identificado como Daniel Cespedes), por exemplo, foi usada pelo diretor cubano Santiago Álvarez e pelos cineastas franceses Paul Bourron e Pierre Camus. Mas, se as fotografias desempenharam um papel central nos meios audiovisuais, como arquivos, o cinema também produziu suas próprias imagens icônicas. Permanece na memória coletiva sobre o evento histórico as sequências gravadas pelo camera man alemão Peter Hellmich, em 11 de setembro de 1973. Hospedado no Hotel Carrera, localizado diante do palácio, Hellmich filmou o bombardeio de um ângulo privilegiado, permitindo que o mundo testemunhasse a violência militar. Essas sequências estiveram presentes em muitos filmes, como em A batalha do Chile. No documentário de Patricio Guzmán, o diretor intercala o bombardeio com outras imagens do 11 de setembro, captadas pelo chileno Pedro Chaskel. Mais distante do acontecimento, Chaskel registrou os jatos Hawker Hunter que se dirigiam ao palácio para lançar as bombas.

  

A repercussão de imagens foi fundamental para gerar comoção e articular uma recusa da opinião pública internacional à ditadura chilena e sua afronta aos direitos humanos. Porém, embora tenham causado um grande impacto em seu momento, ao longo dos 50 anos muitas dessas imagens se tornaram repetições previsíveis para os chilenos ou para aqueles que se dedicam a estudar esse evento. No entanto, recentemente, começaram a alcançar maior visibilidade novos olhares para o golpe de Estado. Em 2010, o jornalista Juan Ángel Torti doou para a Cineteca Nacional do Chile material bruto filmado, em 16mm, nos dias 11, 13 e 14 de setembro de 1973. As fotografias de Evandro Teixeira feitas no Chile do pós-golpe, integrantes da exposição “Evandro Teixeira. Chile 1973”, organizada pelo Instituto Moreira Salles, foram exibidas ao grande público em 2023. A maioria delas teve pouca difusão em seu momento: das mais de 500 fotos tiradas por Teixeira em seus 16 dias no Chile, apenas sete foram publicadas nas páginas do Jornal do Brasil. Essas iniciativas recentes mostram que, no aniversário de 50 anos do golpe, ainda é possível ver esse evento por meio de perspectivas inéditas ou pouco usuais.

Jovem preso no Estádio Nacional sendo identificado e fotografado por militares, Santiago, Chile, 22/09/1973. Evandro Teixeira/Acervo IMS

Mesmo as imagens icônicas, como aquelas de Chas Gerretsen, que se tornaram repertório comum do 11 de setembro, trazem novas reflexões ao serem revisitadas em um contexto em que a constituição chilena, maior legado da ditadura, pode ser substituída. Vale lembrar que esse processo, iniciado com o estalido social de 2019, está sendo conduzido, hoje, majoritariamente pela direita, ainda em parte refratária da ditadura. Em 2023, em uma pesquisa de opinião, 36% dos chilenos declararam que os militares estavam certos ao dar o golpe de Estado. Nesse cenário, o choro do fotógrafo veterano na abertura de sua primeira exposição no Chile é um indício de que a ameaça à democracia ainda pode comover. Indagado sobre a razão de seu pranto, Gerretsen falou sobre a “inocência” de um Chile pré-ditadura, que acreditava que uma intensa transformação social podia ser feita sem reação. Nas palavras do fotógrafo, “não imaginavam o que estaria por vir”. Diante da demanda pela memória gerada por toda a efeméride, é possível que as fontes visuais do passado ajudem a lembrar que a democracia pode ruir ante a violência, mesmo quando parece ancorada em sólidas edificações. ///

Carolina Amaral de Aguiar é professora de História da América da Universidade Estadual de Londrina (UEL). É doutora em História Social pela Universidade de São Paulo (USP), onde concluiu um pós-doutorado em Cinema. Entre suas publicações, destaca-se o livro O cinema latino-americano de Chris Marker (Alameda, 2016).

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