Arthur Omar e o glorioso da face carnavalesca
Publicado em: 9 de fevereiro de 2018A minha série Antropologia da face gloriosa começou em 1973 como um percurso através do Rio de Janeiro no Carnaval, registrando a multiplicidade quase alucinatória nas ruas da cidade. Nos anos 1970, a presença popular ainda era muito marcada. Se por um lado hoje isso diminuiu um pouco, por outro, o projeto se tornou mais sutil e meticuloso.
No início, era espontâneo, inocente. Ia porque achava divertido. Não tinha qualquer obrigação. Aos poucos, percebi que uma atividade constante e coerente estava sendo executada ali, na materialidade do que fazia. Era uma relação com o outro, a aparição do rosto do outro. Uma relação fotográfica de fascínio e obsessão, repetitiva e insistente, misto de gozo e terror, cujo produto era reunido num arquivo que não cessava de crescer.
Aos olhos do fotógrafo, naqueles momentos cruciais, momentos de intensa dilapidação da essência, os retratados pareciam vindos de outro universo. Cada um era uma população ou uma tribo de uma só pessoa, pertencente a uma esfera de total disfarce, mas, ainda assim, dividido em grupos estudáveis e passíveis de descrição (embora in-descritíveis). Ali, havia simulações de mundos que aparentemente eram primitivos, saídos do interior do inconsciente coletivo e transformados pela fantasia concreta de outros mundos, encaixados como cartas de baralho.
Apesar de próximos a mim na cidade, eram oriundos de uma grande distância experiencial. A rua era a mesa. As cartas empilhadas num monte, ou ocultas na mão dos jogadores. Não era um jogo de paciência, mais parecia pôquer, onde o olhar faz parte da técnica do jogador. Nesses momentos iniciais, ainda blefava e tentava dominar a atividade dos olhos.
A insistência fotográfica e a singularidade absoluta
A diferença de olhar, que é mais ou menos comum no universo antropológico, a relação entre dois mundos culturais em confronto, o meu olhar e o deles, é o que me fez continuar a atividade ao longo dos anos. Mas, nessa antropologia, trata-se apenas do confronto de olhares, não de coisas ou de culturas. Meus olhares sincronizados como num corpo de baile, que se tornou, mais e mais, sistemático e em permanente refinamento visual e conceitual. Foi em busca de conhecer, e até de dominar, essa diferença — sem saber ainda que fotografia não é para conhecer, mas para lapidar o desconhecimento — que passei a fazer a Antropologia da face gloriosa.
Cada face ali era singular. Singularidade absoluta, como um universo etnográfico próprio, em expansão para dentro e para fora de si. Um universo povoado por uma só pessoa, ou uma só imagem — a daquela face. Talvez, reconheço, seja uma projeção de como me via: fragmentado, nesse universo de universos.
Quando me afastei fisicamente do espaço documental do Carnaval, e me concentrei no pós-fotografar, inaugurei a etapa antropológica propriamente dita. Uma antropologia autêntica, fundada na estética, no olhar e na simulação. Um método completo e um verdadeiro campo de investigação, com técnicas e tarefas específicas. Um longo trabalho sobre a imagem, sem a câmera, organizando, comparando, conceituando, planejando e, principalmente, nomeando a imagem.
Existe, portanto, um elemento fortemente documental em Antropologia da face gloriosa. É o corpo a corpo com a realidade, típico de todos os meus trabalhos, seja na Amazônia, seja no Afeganistão. Ao mesmo tempo, há uma operação formal, cujo ponto de partida, ainda colado ao momento fotográfico original, levará a uma transformação da imagem, praticamente criando um ser novo.
Meu objetivo é o registro, sim, a captação de seres humanos num instante extático — o momento em que saem de si e entram em outra realidade. A própria fotografia é outra realidade. De alguma forma, aquele rosto é estranho ao próprio dono do rosto. Ao mesmo tempo, ele é estranho a mim. Mas, além do registro, trata-se de uma produção. Contato de mundos diferentes: a Antropologia da face gloriosa é isso. Uma criação de novas faces, que passam a existir somente ali. Através de intervenções e micro-distorções, mas principalmente através de uma atenção do olhar, executada, tanto no momento da foto, dentro da câmera, como depois sobre o material fotografado. Às vezes, um negativo fica comigo anos, intocado, e de preferência não visto. Até que algo dele me cause uma sensação de estranheza.
O eterno retorno da alteridade
Voltei às imagens do livro Antropologia da face gloriosa (1997) várias vezes. E sempre a imagem específica de um rosto surge diferente — seja acrescentando fotografias, seja empregando uma técnica de copiagem e de impressão nova, seja no digital, seja no químico. O rosto é uma obra em aberto.
Monto coleções de rostos, mas não numa sucessão temporal. Não tem rostos mais antigos ou mais recentes. Todos estão contidos em uma enciclopédia sincrônica, ou melhor, contêm, eles próprios, uma sincronia enciclopédica. Posso voltar a uma imagem capturada há trinta anos e considerá-la extremamente atual e contemporânea.
Trabalho agora sobre os volumes. A própria forma muda, e a antropologia assume uma história. Algumas imagens, no início trabalhadas como coisas chapadas, bidimensionais, agora têm ênfase no volume, e o rosto adquire um formato arredondado, torneado, quase escultórico. Mas é a mesma foto de origem. Se a tecnologia avançar um pouco mais, serei capaz de explorar o que tem por trás de cada rosto, no outro lado da cabeça, ou, como se trata de imagem, a face branca do papel estampada no suporte. Talvez precise de uma segunda vida inteira para isso.
Retorno permanentemente, mas não ao mesmo. Às vezes, crio novas faces a partir de imagens em preto e branco, as melhores fotos, as que se tornaram clássicas. Aplico transformações cromáticas, desestabilizações visuais na superfície, de forma que a mesma fotografia pode originar variações coloridas, com intervenções de cores bem brutais, outras tão sutis que nem dá para ver. Vermelhos, azuis, dourados, que se deslocam como placas tectônicas vindas à tona depois de um cataclismo.
Esse é o fundamento do trabalho. No início, as fotos eram todas capturadas em filme preto e branco, mas como muitas delas passaram posteriormente por alterações de cor, gerando a série cromatizada A pele mecânica, hoje considero o preto e branco apenas uma possibilidade, uma das variações. Nem sempre a foto em preto e branco é a primeira versão ou a autêntica, mesmo que as versões cromatizadas tenham saído dela, e que o filme tenha sido um Tri-X.
A face prescinde do rosto
Cada rosto é uma fórmula. Cada rosto e o êxtase que o atravessa no momento é um conjunto de incógnitas, números, frações, sinais, que fornece a estrutura, as características básicas daquele êxtase, sem nome e inominável. E, como fórmula, puro signo, abstração, pode existir após a transformação e destruição do rosto — e de todas as imagens dele. A fórmula pode mesmo existir sem que esse rosto jamais tenha existido, pelo menos sob o comando daquele êxtase. A face gloriosa, não apenas se refere a uma pessoa real, como também a uma imagem concreta. É uma ideia complexa, que chamei, no livro, de Doutrina Secreta. Só podemos abordá-la indiretamente.
Na verdade, a face prescinde da existência do rosto. Assim, há o rosto concreto, tal como expresso ou criado na imagem, e há a fórmula abstrata onde a matemática desse rosto se generaliza. Cada rosto é uma fórmula que precisa ser executada concretamente, uma estrutura abstrata, mas que podemos materializar de muitas maneiras, em preto e branco, em cores suaves, em cores densas, em alto contraste, cortadas, superpostas. E, como fórmula, não depende de carne, de pele, de ossos, de biografia, de cultura, de situação e nem mesmo de instante. É um pedaço de linguagem flutuando no tempo, indestrutível. Nem todas as imagens são vistas — nem todas são feitas para serem vistas — nem todas são feitas para serem feitas — e nem todas são para serem o que são, pois o que não são é também parte desse ser insaciável.
Dilatar o esquecimento
Quando se diz que a fotografia é uma arte do tempo, em geral se quer dizer que é dominada e acontece no instante, o tipo de tempo eleito como o rei da fotografia, de sua factibilidade. Mas isso é apenas uma pequena parte do processo, já que o tempo me traz a possibilidade oposta: guardar, aguardar, resguardar e dilatar o esquecimento sobre a foto, para que, muito tempo depois, mas muito mesmo, reencontre essa coisa, de tal forma que sua aparição venha no bojo de um ato espasmódico e vindicatório.
Entre o tempo da captação e o momento do trabalho sobre uma cópia final, passam-se, no mínimo, três anos. É uma dilatação do tempo em que a imagem faz valer sua latência. Reservo um negativo de hoje para coisas que vou sentir daqui a cinco anos. Eu, num ponto do tempo em que consegui a façanha de ser diferente, eu num futuro mudado, eu a partir de outros olhos, como aposta, como jogo, como risco, como beira de um abismo que signifique a perda total, ou seu oposto. É um ato de coragem, porque assumo o compromisso de viver até lá.
Tem-se uma ideia da fotografia como algo puramente visual, como se as coisas estivessem colocadas à frente da câmera, e você fosse simplesmente um registrador. Para mim não. Vejo a fotografia como a inserção do fotógrafo — com seu corpo, sua mente, sua história — num determinado espaço. Ele se inscreve ali, interage, reage, adquire uma posição psíquica, subjetiva em relação ao que faz. E essa posição, mais que uma localização física, geométrica, que todos imaginam ser a que leva a encontrar o posicionamento para apontar sua câmera, o ângulo. Ao contrário, é uma posição subjetiva: ele tem que estar com a atitude correta, inserido em um espaço.
Às vezes, duas pessoas numa mesma localização física, fazendo fotografias de uma mesmíssima coisa, apontando a câmera exatamente para o mesmo lugar e apertando o botão ao mesmo tempo, produzirão imagens completamente diferentes, pois são duas pessoas com atitudes e mentes diferentes — essa é a hipótese. Às vezes, uma produz, a outra não. Às vezes, uma faz algo interessante, e a outra não viu nada, mesmo estando plantadas no mesmo lugar, olhando a mesma coisa.
A fotografia não admite nenhum pecado capital, qualquer pecado nela é sempre mortal. Cada atividade humana descreve o seu inferno de forma particular. No inferno da fotografia, a condenação é tão instantânea quanto ela própria, e o último círculo é o do consumo imediato nas chamas eternas do instante.
Correção para isso: partir da determinação de saber-se estar fotografando. Ou seja, saber-se concentrado na atividade fotográfica, penetrante no real através do furo da lente, é uma exigência fundamental para pelo menos atravessarmos com vida o purgatório, visando o céu dali a algum tempo. É essa determinação que leva a uma ruptura com a atitude convencional, e dispara no ser vegetativo um gosto pela animalidade predatória. Todas as substâncias são carne para essa carni-omnivoracidade que se instaura quando é grande o que a alma pretende fazer.
Para a fotografia, todas as aparições são matéria, toda matéria é feita de materiais, todo material conduz aos objetos, todo objeto é feito de corpos, todos os corpos são corpos humanos, todos os corpos humanos são vistos como faces, todas as faces são assinaturas, todas as assinaturas são a subscritura de um cheque, todos os cheques caucionam um valor, todo valor é sempre uma pura abstração.
Essa é a linhagem da matéria à abstração, tal como se dá na sequência intemporal das etapas fotográficas, no percurso que ela impõe na decodificação do mundo visível, nesse fio vermelho que conduz através do labirinto e chega até o olho humano, pronto para fazer o caminho de volta. O que pode ser muito perigoso.///
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Veja trecho do filme Um olhar em segredo, de Arthur Omar, com imagens e depoimento do artista sobre o ensaio Antropologia da face gloriosa.
Leia Limbo, ensaio escrito por Adolfo Montejo Navas e publicado na ZUM #11 sobre o trabalho Viagem ao Afeganistão, de Arthur Omar.
Arthur Omar (1948), fotógrafo e artista multimídia nascido em Poços de Caldas (MG), é autor de Antropologia da face gloriosa (1997), Viagem ao Afeganistão (2010) e Antes de Ver (2014), entre outros.
Tags: Carnaval, fotografia, Fotografia de rua, fotolivro