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Qual será a imagem da covid-19?

Giselle Beiguelamn Publicado em: 28 de dezembro de 2020

Movimentação no Cemitério Parque Nazaré para enterros de covid-19 em Belém. Crédito: Filipe Bispo/ Fotoarena

A pandemia do coronavírus é também uma pandemia de imagens. Nela se consolidou um novo vocabulário visual, fundado em estéticas da vigilância e do repertório da ciência. Ao longo do ano, naturalizamos experiências culturais que até o início de 2020 nos eram estranhas ou no mínimo raras.

Da computação gráfica que se tornou a identidade do vírus, numa estética próxima a dos estúdios Pixar, à devassa pública da fisiologia dos corpos, passando pelas videoconferências, pelas fotos das ruas vazias, pelas projeções nas fachadas, pelos rostos de máscara e chegando aos memes(muitos memes), um tsunami de imagens tornou familiares visualidades inéditas. Não menos significativas são as imagens do presidente Bolsonaro, cujas fotos expressam muito da sua abordagem política do coronavírus.

Entre tantas imagens produzidas pelo fotojornalismo aqui no Brasil e mundo afora, parece-me que as das valas escavadas mecanicamente em cemitérios constituem o discurso mais potente sobre o genocídio do qual fomos testemunhas. Afinal, o que melhor corresponderia à brutalidade social a que esses corpos foram submetidos do que a dos enterros feitos em mutirões, mediados por uma pá mecânica, procedendo a demolição final de seu futuro, como se fosse o aterramento de resíduos descartáveis?

Na padronização das sepulturas, rigidamente organizadas, instaura-se mais que uma tradução visual da escala quantitativa das mortes. Essas sepulturas têm, é evidente, classe definida. O chão de terra, as covas rasas, os caixões sem verniz, ou adorno, reúnem índices da inserção social das centenas de corpos que não aparecem nas fotos.

E é justamente na sua invisibilidade que reside a força enunciativa dessas imagens. É o ocultamento que revela as dinâmicas de exclusão e violência a que esses mesmos corpos são submetidos diariamente. Nada mais cruel que a demanda de uma escavadeira para dar conta da produção política do seu extermínio. Covas rasas para corpos frágeis que não cabem na idealização dos sujeitos “purificados” pela eugenia do Estado. Seriam essas imagens dos cemitérios o contraponto, feito pelo presidente Bolsonaro, entre o atleta e os corpos que adoecem?

 

Imagem do vírus renderizada por Alissa Eckert e Dan Higgins, do Centers for Disease Control and Prevention (CDC). Creative Commons.

Outra imagem referencial da pandemia é certamente a do próprio vírus. Vários centros de pesquisa desenvolveram processos de renderização das imagens captadas em microscópio eletrônicos, mas foi a obra dos ilustradores Alissa Eckert e Dan Higgins, do Centers for Disease Control and Prevention (CDC) dos Estados Unidos, a que se tornou a mais conhecida.

É fato que essa especialidade no campo do design (design de vírus) não é novidade. Mas a popularidade alcançada pela “arte final” do coronavírus de Eckert e Higgins é inédita. Rechonchudo e ligeiramente enrugado, o coronavírus desenhado no CDC respondia ao desafio de criar uma marca, uma identidade que pudesse funcionar em qualquer meio, traduzindo em linguagem visual um micro ser de cerca de 120 nanômetros de diâmetro (o olho humano alcança no máximo 400 nm).

O sucesso do projeto, que começou em um microscópio eletrônico e terminou no software de computação gráfica Autodesk 3D Max, teve a escala da magnitude da pandemia. Com o apelo quase de uma criatura de Monstros S.A.., essa síntese computadorizada do coronavírus tomou o mundo, vista e apropriada de incontáveis formas, nas mais diversas plataformas.

Tornou-se a tal ponto familiar e aderente ao circuito midiático que suas origens laboratoriais se apagaram. Nesse movimento, a imagem mais conhecida do coronavírus investe-se da lógica memética tão típica da cultura visual das redes.

 

Tenho dito com uma certa frequência que quem vai contar a história do coronavírus são os memes. Pois é na “Memeflix” da coronavida que são postas em questão todas as transformações do período: do impacto cultural da quarentena ao cotidiano político brasileiro, sem perder de vista as abordagens românticas do teletrabalho e a emergente revolta pela vacina que está tomando o Brasil.

Dois memes do perfil Nazaré Amarga, que abriram a temporada “covídica”, estão certamente entre os melhores de todos os tempos: aquele em que ela surtava com possibilidade de ficar trancada em casa e o que expressava o medo de ir até a cozinha e encontrar uma live. Incríveis também são aqueles da série de apropriações da história da arte. Outro meme antológico é aquele que mostrava o quadro da Última Ceia, vazia, com o letreiro Cancelado. E isso era apenas o começo. ///

 

Giselle Beiguelman é colunista do site da ZUM, artista e professora da FAUUSP. Assina também a coluna Ouvir Imagens na Rádio USP e é autora de Memória da amnésia: políticas do esquecimento (2019), entre outros. Entre seus projetos recentes, destacam-se Odiolândia (2017), Memória da Amnésia (2015) e a curadoria de Arquinterface: a cidade expandida pelas redes (2015).

 

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