ZUM Quarentena

A casa dos artistas em tempos de pandemia

Fabiana Moraes Publicado em: 24 de abril de 2020

O magnata e produtor bilionário David Geffen postou no Instagram (e depois deletou) imagem do iate onde está confinado: “Pôr do sol noite passada… isolado nas [ilhas] Granadinas evitando o vírus. Espero que todos estejam seguros.” Reprodução do Instagram de David Geffen

Em um planeta em que o 1% mais rico possui o dobro da riqueza acumulada por aproximadamente 90% da população (somos 7,7 bilhões), a frase “estamos juntos, fique em casa” pode soar como o novo “se não têm pão, comam brioches”. Afinal, ao afirmar solidariedade e tentar mostrar-se muito perto dos fãs em tempos de pandemia, celebridades milionárias que trocaram os palcos pela sala de estar (ou piscina, ou iates, ou casas de campo etc.) terminaram trazendo luz para uma exuberante e histórica “personalidade” mundial: a desigualdade. Ela, como sabemos, não se dá apenas no plano da economia formal, mas nos informa quem deve ou não estar presente nas imagens que consumimos.

Entre os famosos – gente que um dia o filósofo Edgard Morin chamou de Olimpianos –, o meio por excelência para criar uma conexão entre o ambiente acolhedor da casa e o mundo repleto de vírus lá fora foi o Instagram e sua ferramenta Stories. Ao lado do Facebook, elas são as mais acessadas redes de imagens online, consumidas principalmente pelos bilhões de pessoas que fazem parte das formas contemporâneas de plebe, aquelas com pouco dinheiro para gastar, mas com algum tempo para consumir a narrativa cintilante da vida alheia.

Mas desta vez há algo diferente. A quarentena obrigatória fez com que um verdadeiro desfile de rostos e corpos famosos, que geralmente encontrávamos muito perfeitos e vestidos com roupas caras, trocasse as bolsas Hermès por aspiradores de pó, e taças de champanhe por louça suja. O que de mais prosaico há no cotidiano de todas e todos nós foi convertido em capital: ei, plebe, olhe para as minhas mãos cheias de bolhas depois de limpar a casa. É o que nos sugere a fotografia da apresentadora Adriane Galisteu na qual ela surge sem maquiagem e com um pequeno (e tão significativo) turbante na cabeça. “Bora faxinar, meu povo”, legendou Galisteu para seus 3,3 milhões de seguidores e seguidoras no Instagram – falava para parte da população de um país em que seis milhões de pessoas (93% delas mulheres, a maioria negra) vive do trabalho doméstico.

“Vamo faxinar, meu povo”, sugeriu a apresentadora Adriane Galisteu no Stories, do Instagram, a seus 3,3 milhões de seguidores. Reprodução do Instagram de Adriane Galisteu

É verdade que a exibição de uma “normalidade” mediada não é exatamente novidade na cultura de celebridades. O citado Stories e, antes, o Snapchat, são há alguns anos canais nos quais pessoas famosas exibem, buscando garantir para si uma “autenticidade” (recurso importante na manutenção do afeto olimpiano-plebe), uma vida mais ordinária, algo da ordem do “gente como a gente”. É justamente aí que o abismo se instaura: ao mostrar que podem entrar e sair quando desejarem dessa vida comezinha, ao performar uma existência prosaica, as celebridades fazem com que seus disputados lugares de raridade sejam reafirmados.

O semiólogo Roland Barthes explicitou essa operação discursiva quando analisou, em meados dos anos 1950, as imagens da revista francesa Paris Match, semanário que abriu caminho para as matérias que privilegiam fotografias de páginas duplas com famosos (formato adotado por revistas de celebridades como Hola! ou Caras). Nela, podíamos ler sobre as férias do grande escritor, o passeio de iate da família real, a casa de praia da estrela de cinema. Espaços íntimos, confortáveis, trazidos até nós através de imagens lustrosas, nas quais podíamos ver o escritor de pijama tomando um suco de laranja, a família régia saltando ao mar, a atriz caminhando descalça. O recado era o mesmo que as celebridades agora confinadas em casa – e em lives – tentam nos transmitir: apesar de nossos closets com bolsas que custam R$ 80 mil, somos “normais”. Assim, tecnicamente, diminui-se uma quase natural antipatia que os não célebres sentem ao serem continuamente expostos à felicidade sem fim da vida alheia, uma alegria que só acentua nossas existências pouco extraordinárias.

Mas o novo coronavírus descoberto, simbolicamente, no último dia de 2019, após os casos registrados na China, desvendou o significado dessas imagens falsamente prosaicas. Acaba a aparentemente inocente brincadeira de parecermos estrelas (usando aplicativos que mudam nossos corpos e rostos nas fotos, como Facetune), enquanto elas brincam de parecer conosco, mostrando seus gatos e camas desarrumadas. O vírus expôs mais do que nunca aquilo que as fotografias da Paris Match, da Hola!, da Caras e do Instagram sempre disseram: há uma enorme distância, não só relacionada a um “estilo de vida” entre nós, mas uma assimetria profunda de visibilidade, na qual apenas um número restrito de pessoas é consumido por milhões ou bilhões. Essa diferença foi agora transmutada para uma realidade assustadora: aqueles que são mais vistos são os mais protegidos, enquanto aqueles que atuam como espectadores são os mais propensos a morrer.

No Instagram, o descortinamento de uma realidade social com mais brutalidade cinza do que neon rosa pôde ser visto já nos primeiros dias da quarentena recomendada pela Organização Mundial da Saúde. Em seu Stories, a atriz Ísis Valverde recomendava ao seu público que se isolasse, e aproveitasse a oportunidade para curtir a casa e, como ela, fazer seu próprio jantar. Nas imagens, no entanto, foi possível ver de relance uma mulher de cabelos longos, negra, usando um uniforme branco. Era Claudia, há dez anos trabalhando para a atriz. Criticada, Valverde argumentou algo que só reitera a velha roupa resultante de mais de 300 anos de escravidão no Brasil: ela havia dispensado seus empregados, mas Claudia pediu para ficar na residência porque morava só, e não havia ninguém de sua família por perto. No mesmo dia da postagem, 17 de março, o coronavírus fazia sua primeira vítima no estado do Rio de Janeiro: era justamente uma empregada doméstica, uma mulher de 63 anos que toda semana se deslocava cerca de 120 quilômetros de sua residência até o Alto Leblon, no Rio, onde trabalhava. Infectou-se no contato com a patroa, que havia voltado da Itália e entrou em quarentena. A medida protetiva não se estendeu à doméstica.

O empresário Roberto Justus, de sua quarentena ensolarada, manifestou “muita preocupação” com a covid-19. Os seguidores não perdoaram: “Achei que tivesse no ônibus lotado”, escreveu uma. Reprodução do Instagram de Roberto Justus

Com um Instagram que nos sugere vida impecável e felicidade feérica, o empresário Roberto Justus é outro personagem brasileiro cujas imagens compartilhadas foram atravessadas e ressignificadas pela covid-19. Justus costuma publicizar para seus 1,6 milhões de seguidores os signos mais comuns à cultura das celebridades: iates, piscinas, viagens, casas de campo e de praia, jantares. São também os signos mais conservadores, meritocráticos, associados à riqueza material, aqueles que reafirmam a cada postagem o caráter do homem socialmente percebido como “aquele que venceu”. Se os comentários sobre a vida boa do ex-apresentador eram, até o final de março, positivos, celebratórios, algo mudou quando ele chamou as medidas de isolamento social de “histeria”. Sua declaração, que foi a público através de um áudio vazado, logo passou a mediar os sentidos das fotos de alegria e riqueza ilimitadas. Em uma delas, Justus nos vende a imagem da eficiência: está com os cabelos impecáveis, a aliança no dedo, concentrado e trabalhando, ao ar livre, em seu MacBook. Na legenda, diz: “Completando 10 dias de quarentena no interior. Muito trabalho a distância, muita reflexão e muita preocupação com toda a situação. Mas logo tudo vai passar.” A frase acompanha um emoji de mãos em oração. O discurso de cuidado e boa performance do empresário logo recebeu outras camadas de significados, nos quais fica latente o limite das imagens de felicidade técnica. “Achei que tivesse no ônibus lotado”, “Oxe, pq vc não deixa a sua quarentena e vai trabalhar nas suas empresas? O risco serve só para os seus funcionários?”, “Fácil trabalhar de casa e mandar o povo pra rua”, são alguns dos comentários que acompanham a foto. A luta de classes, quer Justus goste ou não, apresentava-se na voz de uma plebe digital que, em lugar de bater palmas para suas conquistas, seu corpo de envelhecimento suspenso e suas esposas louras, o entende como uma Antonieta de Rolex e nenhum coração.

A atriz Gal Gadot recebeu uma enxurrada de críticas após cantar por “um mundo sem posses” – verso de “Imagine”, de John Lennon – no Instagram. “As pessoas estão perdendo seus empregos e não tem condições de pagar contas e comida”, comentou um seguidor. Reprodução do Instagram de Gal Gadot

As associações entre celebridades e a corte francesa do século 18 explodiram no Instagram lá fora após outros frequentadores do Olimpo proferirem seus “estamos todos juntos, fiquem em casa”. David Geffen, dono da Asylum Records, Geffen Records, DGC Records e do estúdio de cinema DreamWorks, deletou sua conta depois de anunciar que estava isolado por conta do vírus nas ilhas Granadinas, no Caribe. “Eu espero que todos estejam seguros”, completava o texto que acompanhava a foto de seu iate Rising Sun, avaliado em R$ 300 milhões. Um pôr do sol espetacular emoldurava a embarcação, que faz parte do patrimônio de mais de sete bilhões de dólares de Geffen. Além da fortuna, impressionou também no ato imagético do magnata a óbvia desconexão de quase a totalidade dos ricos – e muitas vezes dos não tão ricos – da realidade lá fora. A fotografia do iate passou a circular com legendas acompanhadas das hashtags #Guillotine2020 e #EatTheRich (ironicamente, título de uma música do Aerosmith lançada em 1993 pelo selo Geffen Records).

A guilhotina também foi evocada simbolicamente nas imagens das diversas celebridades hollywoodianas que participaram de um vídeo, no qual aparecem cantando a canção “Imagine”, de John Lennon. A letra, entre outros sonhos, deseja um mundo sem posses (“imagine no possessions”). A ironia dessa sentença quando proferida por pessoas que acumulam milhões – as atrizes Natalie Portman e Gal Gadot, os atores Will Ferrell e Mark Ruffalo, entre outros –, provocou uma espécie de atualização do conceito de classe em si, de Marx. Ao olharem para seu entorno empobrecido, no qual questões básicas como saúde e boa alimentação tornaram-se bens de luxo, seguidores passaram a exigir que os hollywoodianos doassem parte de suas fortunas e, em lugar de capitalizar suas imagens utilizando a covid-19, comprassem respiradores e os doassem aos hospitais.

“O coronavírus nos faz iguais de várias maneiras”, afirmou Madonna em seu Diário da Quarentena, no dia 22 de março, direto de seu banho com rosas. Depois, apagou o vídeo. Imagem: The Telegraph/ YouTube

Isolada ao lado de um pequeno batalhão de empregados com diversas funções, Madonna conseguiu produzir um vídeo que já se tornou célebre também pela falta de real percepção da sociedade fraturada que ela habita, na qual cerca de um bilhão de pessoas em todo o mundo vivem em favelas. No seu Diário da Quarentena, atualmente em cartaz no Instagram, a cantora afirmou para seus 15 milhões de seguidores, no dia 22 de março, que a  covid-19 não escolhia suas vítimas. “Não importa o quanto rico você é, não importa o quanto famoso você é, o quanto interessante, esperto… não importa onde você vive, a sua idade […], o coronavírus nos faz iguais de várias maneiras.” Madonna, que tem um patrimônio estimado em R$ 2,2 bilhões, apagou o vídeo depois de entender que seu brilho era bem menor que o medo, o desemprego e o desamparo lá fora.

As imagens da boa vida dessas celebridades – que muitos de nós amamos, aplaudimos e prezamos – soam pedagógicas no contexto da pandemia. Na ressaca provocada pela overdose de Kardashians e todos os jogadores de futebol multimilionários, nos perguntamos: afinal, o conto de fadas – “aproveite esse tempo para curtir sua casa” – é possível para quem? Com uma onda de morte se formando sobre nossas cabeças, como um entregador de Rappi, iFood e similares pode clicar em um coraçãozinho e curtir o café da manhã do youtuber famoso que está isolado em seu ótimo apartamento? As trabalhadoras e trabalhadores precarizados de todo o mundo, sem contratos justos de emprego, podem sonhar? As empregadas domésticas do Brasil, que nos lembram as distinções de classe e cor perpetuadas em forma de trabalho intelectual e trabalho braçal, podem sonhar?

O fato é que a cultura do individualismo e da hiperexposição que sustenta a indústria dos famosos – e que representa todo um sistema de acúmulo de capital e invisibilização das condições de vida de pobres, indígenas, negros etc. – soa como um penduricalho indesejável no momento em que um vírus nos obriga a pensar no coletivo. É cedo para falar no que está por vir, não só na cultura das celebridades, mas nas relações que passaremos a estabelecer com o que é real e com o que parece real, com o excesso de luz sobre algumas poucas pessoas e a manutenção da escuridão sobre bilhões. Vale notar, no entanto, certos sinais: ouvir uma celebridade como o primeiro ministro-britânico Boris Johnson (sim, a política é um dos campos que mais se apropriaram e se beneficiaram desse fenômeno, vide Trump e Bolsonaro) dizer que deve sua vida ao sistema de saúde público inglês pode sugerir uma fissura na lógica do “cada empreendedor por si” do Estado mínimo? Talvez sim. Talvez não. Talvez parte da elite da visibilidade ultrapasse o excesso de luz que cega suas personas e passe a compreender que a felicidade pode ser performada, mas a dor, a raiva e a vulnerabilidade dificilmente o são. ///

 

Fabiana Moraes é socióloga, jornalista e professora da UFPE. Autora dos livros O Nascimento de Joicy e Nabuco em Pretos e Brancos. Pesquisou a relação entre celebridades e pobreza em sua tese de doutorado.

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