A tela como lugar de encontros
Publicado em: 11 de junho de 2020O tumulto que a pandemia de covid-19 provocou na indústria de eventos – como em nenhuma outra – sinaliza profundas transformações em curso nas formas mais básicas de socialização humana. Quando as políticas de distanciamento se assentaram e as fronteiras nacionais começaram a fechar, parte dos espetáculos e das exposições que não foram suspensos buscaram se reorganizar online – e, com eles, a quase totalidade das nossas rotinas culturais. Não é de surpreender que o número de assinaturas da Netflix esteja batendo recordes. A verdadeira novidade não é bem o inchaço no tráfego de video on demand, mas o quanto da experiência cotidiana está sendo transportada para a tela.
Semanas atrás, estou rabiscando numa pequena janela embutida num Tumblr, que parece ter sobrevivido só para isso. As ferramentas são toscas, e a atividade, em vão. Não bastasse a dificuldade de esboçar um desenho mais ou menos coordenado com o mouse, toda hora esbarro nos rastros de outra pessoa. Formas surgidas do nada interrompem quase tudo o que faço. Nenhuma composição consegue ir muito longe. Não raramente, a página inteira some atrás de um bloco de preenchimento acionado de algum outro canto da rede. Segundo a barrinha de status no topo da janela, 17 usuários estão conectados neste momento. Parece bem mais.
Não sei quem é essa gente com quem disputo o espaço mirrado da tela. Não temos nenhuma outra forma de contato que não as ferramentas de desenho, o que torna nossa comunicação impraticável. Nessas condições, qualquer tipo de colaboração seria problemática, e ainda bem que não estamos aqui a trabalho. Isso é uma festa: uma das performances de abertura do festival Art Meets Radical Openness 2020 – um dos tantos que, pegos de surpresa pela pandemia do novo coronavírus, tiveram que se deslocar dos centros de convenção para a internet.
O site em que o evento transcorre foi organizado de modo a preservar alguma segmentação, própria aos blocos da programação. Embora não coincidam, conferências e performances são apresentadas em canais de streaming distintos; é preciso trocar de página para passar de um para o outro. Em uma terceira URL, ainda acontece uma exposição, arranjada na forma de uma narrativa que se bifurca e decorada à moda do Geocities. Navegando por trechos da paisagem descrita, o visitante acaba chegando a cada uma das obras – vídeos, documentos, colagens interativas. A vernissage havia sido um pouco mais cedo, numa sala do Mozilla Hubs – uma plataforma aberta para criação de salas de chat 3D, compatível tanto com navegadores web quanto com headsets de realidade virtual. O netlabel dance mix / live drawing party de Dominik Leitner é a terceira atração da noite.
Capturada do Tumblr, a janela de desenho serve de acompanhamento para um set de intelligent dance music “de quando a Internet ainda era a Wild Wild Web”. No site do evento, nosso caótico esboço coletivo aparece como pano de fundo para uma sequência de GIFs de um DJ de jaleco. Com cada uma das páginas abertas de um lado do monitor, experimento a rara sensação de estar não diante da imagem, mas sim dentro dela, me acotovelando aos outros participantes numa configuração errática, menos de plateia que de pista de dança. Os pequenos movimentos de mão entregam o meu corpo na tela. Deve ser a primeira vez, em semanas de lives, em que me sinto participando não apenas com a atenção, mas por inteiro.
Em 1989, o sociólogo Ray Oldenburg propôs o conceito de terceiro lugar para designar territórios neutros, à parte da casa e do trabalho, que serviriam ao encontro fortuito. Esses ambientes convidam à associação informal entre indivíduos e o grupo, articulando o familiar com o novo e oxigenando a vida em comunidade. Com o fechamento de bares, festas, praias e espaços públicos em geral, nossos mais tradicionais terceiros lugares foram perdidos, sem que ainda houvesse nada na internet que pudesse substituí-los de maneira satisfatória, nem na escala necessária.
Para um amplo contingente de confinados, a vida agora acontece principalmente em canais de streaming. Cada semana se estrutura numa grade de horários para apresentações de vídeo – públicas ou privadas –, algumas para ver, outras para ser visto. Nesse contexto, o encontro entre amigos e as reuniões de trabalho se aproximam no formato e na maneira pela qual nos solicitam. Qualquer conversa ganha vultos de compromisso, e o mero ato de estar com os outros, destituído de seus espaços habituais, se torna uma tarefa cronometrada, cheia de propósito. Talvez por isso tantas pessoas pareçam estar aproveitando a oportunidade para flertar com a carreira de videologger: mais do que nunca, situar-se em sociedade implica transmitir audiovisualmente a própria situação.
Fadiga de Zoom
A plataforma que tem predominado nessas circunstâncias de convivência mediada é o Zoom, um sistema de videoconferências voltado para o mundo corporativo que existe desde 2012. Com a pandemia, o aplicativo penetrou rapidamente no âmbito doméstico, se espalhando como parte da infraestrutura compulsória ao trabalho remoto. A partir daí, se tornou o padrão para encontros online, ganhando espaço sobre os já familiares Messenger e Hangouts. Já em abril, a companhia registrava mais de 300 milhões de participantes num dia. Essa popularização pode ser em parte explicada pela negligência com que empresas como Facebook e Google vinham tratando as funções de comunicação por vídeo multiusuário de seus próprios aplicativos, em detrimento da troca assíncrona de texto e imagem. Mas também se deu porque a adoção do Zoom, como a do WhatsApp, é praticamente sem atritos: não parece ser preciso instalar nada, nem sequer criar um login. A sensação é de que você sempre esteve lá, só não sabia.
Só que nem tudo no Zoom é igualmente descomplicado. A popularidade do aplicativo trouxe à tona falhas de segurança e privacidade, e muitos já apontaram para o esgotamento mental causado pelo seu uso mais prolongado. Batizado de zoom fatigue, esse efeito psicológico se estende metonimicamente por todo o regime de videoconferência contínua que temos sofrido. Afinal, não se trata de uma tecnologia adequada a qualquer tipo de convívio. A sua aplicação irrestrita como consequência do confinamento pode muito bem ser entendida como um fenômeno colateral à aceleração na colonização da vida pelas ferramentas e pelos expedientes do trabalho, conforme esmiuçada por Jonathan Crary no livro 24/7: capitalismo tardio e os fins do sono.
Todo encontro acontece numa atmosfera de confrontação e escrutínio recíproco, frequentemente amplificados pela repetição do nosso próprio rosto na tela. Somos, assim, constrangidos da função de espectador. O mosaico de cabeças falantes comprime a topografia do grupo e emparelha suas linhas do olhar, espremendo cada interlocutor contra todos os outros. Isso produz um irresistível efeito panóptico, cobrando nossa atenção, sem nos dar certeza de que somos realmente vistos. Não parece cabível simplesmente estar ali, sem nada a dizer.
Ao mesmo tempo, a conversa não flui como deveria. As deixas necessárias para o seu bom funcionamento se extraviam nos microatrasos da rede, que o software tenta remediar modulando entradas e saídas de som. A perda de recursos espaciais estáveis – propriocepção, linguagem corporal, referências territoriais – demanda constantes compensações subliminares. Tudo se torna muito ensaiado, como me disse um amigo. Daí os memes que brincam com a ideia de que o Zoom é um lugar onde não faria muita diferença substituir nossa figura de verdade por um loop de vídeo pré-gravado.
Essa estranheza operacional leva a um paradoxo fático: a impressão de que o canal está simultaneamente vazio e abarrotado. De que estamos ali sozinhos, mas também não temos espaço. Os semblantes encaixotados lado a lado são a perfeita figura de uma forma de contato que enfatiza a sensação de isolamento. Quase três meses quarentena adentro, e seguimos buscando modos de presença menos truncados, capazes de substituir as rotinas de convívio perdidas.
Há um pouco disso na prática do zoombombing: a invasão em massa de conversas alheias, aproveitando links e senhas disponibilizados em fóruns da web – muitas vezes por seus próprios membros, deliberadamente, na esperança de ter as reuniões profissionais ou aulas sabotadas por um grupo de penetras. Mas nem toda tentativa de devolver um pouco de contingência à realidade calculada das videoconferências precisa ser tão violenta. O Club Quarantine, uma festa queer que tem acontecido regularmente durante a pandemia, pretende subverter a formalidade do Zoom com a etiqueta da vida noturna. O evento dá a centenas de participantes diários um motivo para botar roupa de sair e maquiagem. Por três horas, o monopólio da música eletrônica sobre o canal de áudio dissipa a maior parte das tensões inerentes ao encontro – nos isenta da obrigação da conversa e nos instiga a dispor da janelinha como um pequeno camarote, para dançar com ou para os outros. Grupos de amigos que marcam de ir juntos se mantêm coesos com uma ligação paralela no celular. No foco do aplicativo, a câmera do DJ alterna periodicamente com a dos participantes mais animados, conforme a seleção dos moderadores.
O futuro do lugar
Essa e outras lives devolvem algum sentido ao calendário pastoso da quarentena, e têm servido ao tipo de sincronização social que permite a uma comunidade constituir-se cerimonialmente. Ao sondar novos espaços rituais para o século 21, a professora Dorothea von Hantelmann aponta como, desde os festivais da Grécia antiga ao teatro burguês, a duração providencia um princípio ordenador. O evento catalisa a potência energética de muitos na constituição de um corpo coletivo comum, orientando-o em direção ao palco ou ao palanque – estruturas que a tela traduz quase que perfeitamente, de acordo com códigos aprimorados por décadas de transmissões televisivas em direto.
Enquanto isso, o lugar da plateia se recompõe pelos cantos da imagem, nas janelas de chat e nas caixas de comentário. No espaço minguado do Instagram – ou quando o YouTube entra em tela cheia –, as reações da audiência montam sobre o vídeo, em sequência, propiciando novos meios de habitá-lo. Como rabiscos à margem de um texto, essas pequenas formas de expressão dão aos participantes a oportunidade de se inscreverem no evento e se descobrirem indiretamente, pelas fotos de perfil, quem sabe fazer amigos, paquerar. Suas interações sobrevivem nos prints, atestando e reproduzindo o corpo midiático do público pela rede afora.
De outro lado, o confinamento inspira a busca por tecnologias que façam da imagem um ambiente plenamente ocupável, dotado de uma latitude análoga ao real. Ainda que apostas na massificação da realidade virtual não tenham vingado até agora, alguns videogames caminham com sucesso nesse sentido, delineando um possível roteiro para o futuro do meio. Lançado em meados de março, o sossegado Animal Crossing: New Horizons se tornou um refúgio de bolso para diversos proprietários do console Nintendo Switch. Nos títulos da franquia, não há competição nem grandes obstáculos. O jogador passa os dias numa ilha povoada por simpáticos animais antropomórficos, a colecionar bugigangas, decorar a casa e conversar com os vizinhos. Além de suprir uma eventual carência da banalidade cotidiana, essa última edição conta com mecânicas particularmente propícias à socialização online. Os valores flutuantes do mercado de tulipas, por exemplo, instigam o jogador a visitar a ilha dos outros atrás de lojinhas que paguem melhor pelas espécies de flor que nascem na sua. Ironicamente, a procura pelo jogo foi tanta que varreu o Switch do mercado, com o preço de usados disparando em sites de leilão.
Igualmente oportuno foi um show virtual do rapper Travis Scott realizado no jogo de tiro Fortnite no final de abril. Mais de 3 milhões de pessoas compareceram ao evento – o mais recente numa série promovida desde 2018 pela desenvolvedora Epic, antecipando o lançamento de um modo puramente social de jogo chamado Party Royale. A experiência do show destoou tão completamente de outras apresentações durante a quarentena que é impossível falar dele nos mesmos termos. O uso do ambiente simulado permitiu um verdadeiro espetáculo de cinema algorítmico, convertendo todo o mapa de combate no palco em um avatar gigantesco com a aparência de Travis. A paisagem mutante se transformava de acordo com a música, levando o público do fundo do mar ao espaço. Assombrosas, essas cenas reverberaram para além da comunidade gamer, atiçando entre articulistas de jornal a ideia de que Fortnite poderia ser um protótipo do próximo estágio da internet como meio imersivo.
Agora, para uma outra frente de experimentação com novas formas de encontro remoto, esse futuro não tarda a chegar, e nem depende exclusivamente de soluções proprietárias. Com a pandemia, toda a extensão da internet parece ter sido recuperada como um laboratório para modalidades de contato de que as redes sociais nunca deram conta. Enquanto o Facebook habilita um novo sabor de like, a curadora Marie Foulston dá uma festa numa planilha do Google. Iniciativas desse tipo partiram principalmente de artistas e curadores independentes, aproveitando a súbita disponibilidade de colaboradores e, principalmente, de audiência. Projetos como Circa, The Wrong TV e Well Now WTF?, lançados na web pouco depois do início da quarentena em muitos países da Europa, buscaram responder à incerteza histórica do momento agregando e exibindo trabalhos multimídia. Conforme o confinamento se prolonga, galerias online têm tido a oportunidade de se aprimorar não apenas como cenários expositivos mas também como plataformas de interação social. Nesse processo, algumas vão além da mera imitação do espaço físico e lançam mão de sutilezas capazes de produzir uma intensa sensação de presença e de estar com os outros – como a participação da live drawing party me mostrou.
Certos casos se destacam. A Upstream Gallery de Amsterdã desenvolveu um formato de exposição em que todas as obras são instaladas como frames numa mesma página, que se estica horizontal e verticalmente para fora da janela do browser, obrigando o visitante a rolar a tela para todos os lados. No canto superior esquerdo, um diagrama dos trabalhos à mostra revela um encavalamento de quadros digno dos salões de arte do século 19. Pontinhos cinza espalhados pela página evocam os fantasmas de visitantes simultâneos, indicando a localização dos seus ponteiros do mouse. Esses detalhes dão ao site da Upstream uma espécie de extensão palpável; a consistência (e algumas inconveniências) de um outro lugar geográfico.
LIKELIKE, a galeria de videogames experimentais do professor e artista Paolo Pedercini, foi outra que, pelo tempo da pandemia, migrou completamente para a web. Seu edifício, fisicamente situado em Pittsburgh, Pensilvânia, foi recriado como um “pequenino MMORPG”, empregando primeiro a estética lo-fi dos jogos point-and-click, depois um ambiente completamente textual. A ênfase nos aspectos multiplayer da interface denota o propósito de criar condições singulares não apenas para o acesso aos trabalhos em exposição como também para a interação entre os visitantes. Semelhante espírito gregário se espalhou por diversas exposições de cursos de arte que, com o fim do ano letivo no hemisfério norte, precisaram se reorganizar online (algumas, inclusive, usando o código-fonte que o próprio Pedercini disponibilizou).
Hoje, experimentos como esses nos divertem e nos proporcionam algum alívio. A longo prazo, quem sabe não demonstrem uma importância ainda mais crítica. Os recentes protestos democráticos que tomaram as ruas em diversos países, à revelia de qualquer quarentena, atestam nosso desejo de nos juntarmos, e não nos deixam esquecer que, desde antes do novo coronavírus, o mundo já era marcado por uma violenta segregação social. Os meios de comunicação digital muito contribuíram para esse estado de coisas, ao fomentar o encastelamento ideológico e a radicalização do conservadorismo. O exercício de outros modos de conexão, por difusos e pontuais, pode nos conduzir a formas de convívio mais abertas à diversidade e ao dissenso, e que talvez sejam capazes de romper com regimes de isolamento que transcendem os horizontes dessa crise. ///
Gabriel Menotti é pesquisador e curador independente. Trabalha como professor assistente em curadoria e imagem em movimento na Queen’s University, Ontario, e coordena a rede de pesquisa Besides the Screen.
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