Passe livre
Publicado em: 8 de novembro de 2013Em ensaio inédito, feito em São Paulo, o coletivo CIA DE FOTO apresenta sua visão da onda de protestos que tomou conta da cidade em junho de 2013.
A janela do quarto de dormir dava para a copa das jabuticabeiras, pois o menino era pequeno e só podia olhá-la de baixo para cima. Era ampla, gigante, com duas folhas pesadas de madeira que abraçavam o quintal. E também era porosa: quando fechada, suas formas irregulares deixavam frestas nas extremidades e não conseguiam impedir a passagem do sol da tarde.
Uma vez, um raio de sol atravessou uma das frestas e perfurou a atmosfera do cômodo, do alto da janela até a tábua corrida do assoalho. Deitado na cama, o menino viu brilhar cada um dos ciscos que flutuavam no espaço. Foi a primeira vez. Os filamentos mínimos cintilavam, sem peso, como estrelas, e se moviam como peixes prateados no fundo do mar. O ar era aquoso, ondulava para lá e para cá, mas isso só se via pelo brilho da poeira. O menino imaginou que aqueles grânulos acesos poderiam ser inteligências vivas, sensíveis, dotadas de crenças próprias, certo de que eram eles, e não o ar, quem promoviam as movimentações misteriosas. O menino pensou que não era recomendável respirar aquelas coisas luminosas e, precavido, permaneceu em silêncio, deitado sobre a colcha da cama, com o nariz na zona escura do quarto.
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O quarto agora é outro. O raio de luz parece igual, mas vem cruzar outros ares. Atravessa as aglomerações que escorreram pelas ruas de São Paulo desde o mês de junho e acende cada um dos ciscos humanos que agitam as passeatas. Como acontecia no quarto antigo, agora também é possível ver as evoluções líquidas do ar, graças ao contraluz de soslaio, travesso, infantil. O que se acende são os rostos humanos, dentro de fotografias.
Um rosto reluz. Tem nariz de palhaço. Outro sorri, num halo místico. A moça se derrama em olhos lânguidos e rebrilha. O rapaz tem barba dura na tez de névoa. Todos desfilam pela noite paulistana, em preto e branco. Cintilam em prata. Serão eles também inteligentes e sensíveis? Será que imaginam comandar as ondas do ar espesso em que flutuam? Ou será que pensam que apenas surfam?
São estrelas, mas vê-las é um desafio mais que parnasiano. O rio de manifestantes brotou do asfalto, dos edifícios, das estações de metrô, dos ônibus e dos automóveis sem ser anunciado por vozes oficiais. Surgiu como um aguaceiro, movendo o ar parado de um imenso cômodo sombreado, onde nada acontecia aos olhos dos mortais. Quer dizer: acontecia, mas de um estranho modo oculto. Eis que havia um movimento que já estava no ar, embalando os seres até então invisíveis. Não houve sindicatos, partidos, quase não houve ONGs, nenhuma entidade da dita “sociedade civil organizada” agindo na preparação das enxurradas humanas, das ventanias. Daí que o movimento do ar não tinha como ser flagrado pelas câmeras ou pelo discurso dos repórteres, dos políticos, dos analistas. Só restou a eles declarar perplexidade. Um lugar-comum tomou conta do espaço público: “Fomos pegos de surpresa, ainda estamos tentando entender”.
E, não obstante, o ar se move, como se pode ver pelas fagulhas que o raio prateado vem evidenciar nestas fotografias. Graças ao raio luminoso. Mas de onde ele veio? Por onde adentrou essa luz? Talvez pela fresta da janela voltada para o poente, a mesma janela de sempre. Talvez pela irrefletida lâmpada do poste no meio-fio ou, quem sabe, pelo manejo de um software de computador. Essa luz, que acende por dentro as figuras humanas, releva o ar que se move à revelia do discurso, jogando gente líquida nos logradouros. Esse ar é preciso respirar. Agora, o nariz há de buscar a claridade.
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Os observadores ainda se veem “pegos de surpresa” e continuam “tentando entender”, tanto que não param de olhar. Assim foi durante todo o mês de junho, e também em julho e agosto: o olhar foi abduzido pela cena da rua inundada de corpos, fotografados como se fossem zumbis desses novos filmes de terror. Eles fugiram das telas da ficção para apavorar as cidades. A sociedade inteira não parou de olhar. Sem trégua, sem descanso, os telejornais grudaram nos protestos. E, mesmo assim, mesmo olhando e olhando de novo, mesmo olhando sem parar, as câmeras pouco viam – e pouco entendiam.
Por quê? Talvez porque só tivessem foco para as temíveis multidões, que rugiam ameaçadoras, ou para os dóceis portadores de cartazes patrióticos, que posavam cheios de civismo para as objetivas. As câmeras que miravam as poses deixavam esfumaçar o entorno. E o grande protagonista era ele, o entorno. Foi por isso que se viu tão pouco. Faltava jogar luz ali, no rio de gente, sobre o que há de mais humano em cada um – e o mais humano não mora no que há de excepcional, mas no que há de mais comum, e o mais comum era o entorno, o contexto. O maior protagonista era o ar invisível. E o problema era enxergá-lo.
Finalmente, nestas imagens, vem se abrir a chance de distinguir, dentro da massa, uma face singular, única, individual. Uma aqui, outra lá, e mais outra e outra e outra. Aqui estão os ciscos que mostram a circunvolução líquida do ar que parecia parado. As múltiplas faces, irredutivelmente pessoais, são também faces fungíveis, são uma qualquer como todas as demais. São como grãos de poeira suspensos no ar de um quarto escuro. A luminosidade que realça cada um dos rostos não elucida, não ilumina, não esclarece a totalidade do enigma. Apenas mostra que há novas sombras, penumbras e pontos cegos. Tão essencial quanto o rosto claro no centro da foto é a multidão que lhe serve de moldura, a multidão que está no lusco-fusco. A explosão humana extraordinária foi obra de muitos, que, no entanto, podem ser um só. Um ar só. O nome do rosto não importa. A foto não precisa de legenda. O que conta é ver que o ar entrou em movimento.
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Algo no espetáculo que eclodiu em junho lembra a força do carisma, essa qualidade que confere a uma pessoa a ascendência sobre seus semelhantes. Seria a multidão um ente carismático? O carisma traga o olhar como um ímã, mas só ele não explica o que houve – e ainda há – no horizonte urbano.
O olhar do país para a multidão em marcha, a multidão tomada de raiva, de riso e de enfado, tudo isso de uma vez só, era, sim, um olhar apontado para o carisma. Quem olha magnetizado, sem piscar, confessa o desejo de entender o objeto para o qual olha com expectativa. Esse olhar um tanto incrédulo, um tanto pasmo, não olha por querer ver o que lá está, mas por esperar que a qualquer instante algo há de se revelar e, aí sim, haverá algo para ser visto. Quem olha o carisma procura a ilusão.
Acontece que as massas nas ruas não buscam conquistar ascendência sobre os que olham, nem almejam propriamente o poder. O rio de gente que escorre pela cidade quer apenas se fazer respeitar pelos ocupantes do poder, como se dissesse: “Eu existo, eu tenho rosto, tenho nome, embora meu nome não venha ao caso – e quero respeito”. Não quer o poder. Quer enquadrar o poder. Por isso, o carisma também não resolve o mistério.
O mistério foi de outra ordem, da ordem do tempo. O espectador pressentiu – sem se dar conta – que conseguiria ver de frente a nudez do tempo, ver o próprio tempo deslocando seu corpo transparente por entre as pessoas em marcha. Nas faces que se acendem e logo escapam, como ciscos de poeira em suspensão, o olhar iria divisar algo maior que o próprio mundo: o corpo do tempo.
O mestre ensina que o tempo é o tecido de que somos feitos, mas o tempo é mais que isso. O tempo é um tecido feito da existência humana: nós somos a matéria dele, não o contrário. Quando a luz interior acende o rosto de um manifestante, abre-se uma trilha de fuga por onde se entrevê o tempo em pleno curso de desobediência. Nessa hora, não há Estado (nem capital) que dê curso à fantasia opaca de governar o tempo. Não há poder que intercepte os destinos dos anônimos que sorriem no meio da rua. ///
Cia de Foto é um coletivo formado no início dos anos 2000, quando Rafael Jacinto (1975) e Pio Figueiroa (1974), que trabalhavam no jornal Valor Econômico, começaram a compartilhar pautas e créditos. Logo depois, com o reforço de João Kehl (1982) e Carol Lopes (1982), o grupo foi encarregado pelo jornal de executar toda a pauta fotográfica em São Paulo. Aos poucos, a Cia consolidou uma poética autoral, marcada pela intensa pós-produção digital das imagens e pela inclusão de outras linguagens artísticas, como o vídeo, o cinema e a música.
Eugênio Bucci é jornalista e professor da ECA-USP.
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