Revista ZUM 3

Tudo de novo sob o sol

Marina Spunta & Luigi Ghirri Publicado em: 13 de novembro de 2013
Leia abaixo a matéria publicada na ZUM #3 sobre o fotógrafo italiano Luigi Ghirri, que redescobriu a paisagem de seu país e realçou a nossa percepção do mundo. No dia 23 de novembro, abre no IMS de São Paulo  a primeira grande mostra sobre Ghirri no Brasil. Saiba mais aqui.

 

PENSAR COM IMAGENS, Marina Spunta

Luigi Ghirri (1943-92) não é muito conhecido fora da Itália, mas em seu país é considerado um fotógrafo excepcional. A partir da década de 1970, deu novo fôlego à fotografia italiana e contribuiu para que ganhasse importância artística, ao estimular o diálogo com outras artes e disciplinas, como a literatura e a geografia, e ao trazê-la para o centro dos discursos críticos contemporâneos. Sobretudo depois de sua morte prematura, Ghirri tem sido cada vez mais exibido e estudado na Itália e, em menor grau, nos demais países da Europa e nos Estados Unidos. Seus trabalhos, sempre em cor, impressionam pela aparente naturalidade e simplicidade, cuidadosamente elaboradas segundo os princípios da composição clássica (ele não usava filtros, zooms nem lentes além da normal), e por mostrar objetos cotidianos como se estivessem sendo vistos pela primeira vez ou paisagens banais como se fossem lugares oníricos, evanescentes, onde temos vontade de viver, embora nunca tenhamos estado ali.

Resultado de influências múltiplas, desde a noção de experiência de Walter Benjamin até a pintura renascentista italiana ou a flamenga do século 17, bem como de pintores metafísicos como Giorgio De Chirico, a obra multifária de Ghirri é uma reflexão sobre o papel da experiência individual num mundo cada vez mais dominado por novas mídias, em que o homem não é mais a medida para a apreensão do exterior. Essa reflexão acontece dentro de uma cultura visual extremamente codificada, como a italiana, dominada por um patrimônio histórico esmagador e pela tradição da história da arte.

Mesmo ancorado na tradição pictórica italiana, visível na recorrência de perspectivas centrais, de molduras que delimitam o campo de visão, bem como no olhar espetacular e teatral, Ghirri usou a fotografia para mostrar as coisas de uma forma nova, de um ângulo diferente — como um modo de refletir sobre as maneiras preconcebidas de ver o mundo e tentar fugir delas. Ele via a fotografia como um meio de “pensar com imagens”, de se relacionar com o mundo e de encontrar um ponto de equilíbrio entre a interioridade ou a estética de alguém e o que está “lá fora”.

Nascido na província de Reggio Emilia (na região da Emília-Romanha, no norte da Itália), Luigi Ghirri começou a vida como topógrafo e designer gráfico, antes de se tornar fotógrafo, no começo dos anos 70. Realizou sua exposição de estreia em Módena, em 1972. Suas primeiras fotografias revelavam influências diversas, desde os pintores conceituais e experimentais com quem trabalhou no fim dos anos 60 e começo dos anos 70 (Franco Guerzoni, Claudio Parmiggiani e Franco Vaccari, por exemplo) e a arte surrealista (no emprego de objects trouvés, como os jornais em Roma, 1978) até o dadaísmo e Marcel Duchamp (no emprego de ready-mades, como nas várias imagens de pôsteres, de que é exemplo Engelberg, 1972), desfazendo o hiato entre a realidade e a representação.

Em vista da escassa tradição fotográfica italiana, em parte devida à institucionalização tardia da fotografia como disciplina acadêmica na década de 1960, era no exterior que Ghirri buscava inspiração, sobretudo em fotógrafos americanos consagrados, como Paul Strand e Walker Evans, mas também Robert Frank e Lee Friedlander, cujo trabalho era praticamente desconhecido na Itália no começo da carreira de Ghirri, e na tradição documental alemã, em Bernd e Hilla Becher.

Outra influência importante de Ghirri foi o cinema neorrealista italiano (por sua vez inspirado pela fotografia americana dos anos 30 em sua representação de amplos espaços abertos, de longas estradas e de classes sociais baixas), em particular Michelangelo Antonioni e Federico Fellini, mas também Roberto Rossellini e Vittorio De Sica. Muitos filmes desses cineastas eram ambientados no norte do vale do Pó, região que nos primeiros anos do pós-guerra se tornou símbolo de resistência política e servia como uma página em branco onde desenhar uma nova cultura italiana depois do fascismo. A opção de Ghirri de se concentrar nesses lugares traduz um esforço análogo para recuperar tanto uma certa iconografia italiana quanto um interesse ético e estético pela contemplação, na tentativa de compensar a insensibilidade contemporânea em relação à paisagem, capaz de levar a uma perda da memória e das tradições culturais.

As fotografias de Ghirri mostravam tanto lugares reais quanto suas representações. Na série Atlas (1973), ele fez close-ups de mapas, sugerindo a importância da imaginação e da memória na percepção dos lugares. Em 1974, ele expôs em Milão a série Paisagens de papelão, fotografias de periferias urbanas que toldam a diferença entre a realidade e a representação, mostrando, por exemplo, cartazes de publicidade. Durante o mesmo ano, Ghirri fotografou o céu todos os dias e juntou as fotos na série Infinito. A partir de 1975, começou a trabalhar em projetos monográficos, com temas interrelacionados e muitas vezes convergentes. Em Vistas (1970-9), questionou a tradição do vedutismo — um tipo de representação de paisagem, de concepção essencialmente topográfica, cuja fidelidade permita identificar o local retratado –, adotando uma perspectiva baixa e descontextualizando objetos, como nas fotografias de placas que ocupam a parte inferior do quadro e deixam todo o restante para um céu vazio ou na recorrência de inquadrature naturali, ou seja, de molduras já existentes no mundo, como arcos, portas e janelas. Enquanto Antonioni enquadrava atores e, principalmente, atrizes em portas ou diante de janelas, como no filme A aventura (1960), Ghirri se concentrava apenas nas molduras, como se sugerisse a ausência de seres humanos e de sua capacidade de ver na sociedade contemporânea.

Outro projeto, que teve como título o palíndromo Italia ailati  (que se refere literalmente a uma Itália nas margens), mostrava postos de gasolina, bares e restaurantes abandonados, ou seja, vistas distantes das belezas monumentais ou naturais que um turista espera ver na Itália. Na série Em escala (1977-8), Ghirri continuou a desafiar o olhar do turista e nossa relação cada vez mais consumista com os lugares, fotografando em Rimini o parque temático Itália em Miniatura, em que os visitantes caminham em torno de reproduções em pequena escala das atrações turísticas icônicas da Itália, dos Alpes à torre de Pisa e à basílica de São Pedro. Ghirri também fotografou turistas vendo pinturas em museus, consultando mapas ou contemplando paisagens reais, como o mapa da cidade de Mondsee em Salzburgo, 1977. Na tradição de David Caspar Friederich, Ghirri fotografou as pessoas de costas, para destacar o fato de que olham para algo e, indiretamente, o olhar do fotógrafo.

Mais para fins da década de 1970, Ghirri prosseguiu com sua atenta investigação de lugares corriqueiros, como na série Identikit (1976-9), em que fez fotos casuais dos cômodos de sua casa — livros e discos nas estantes, pratos secando na pia. Em 1978, terminou seu primeiro projeto, Kodachrome, iniciado em 1970. Em 1979, o curador Massimo Mussini organizou uma primeira retrospectiva em Parma, o que permitiu a Ghirri avaliar seu trabalho até então; e no mesmo ano foi convidado a expor a série Natureza-morta (1975-9) na Light Gallery, em Nova York. Sem abandonar seus principais interesses estéticos, no começo da década de 1980 Ghirri interrompeu seus experimentos com a quebra irônica dos códigos visuais e passou a dar mais atenção à paisagem, empenhando-se em diversos projetos pessoais e coletivos que renovaram a fotografia do país, como Paisagem italiana, a que se dedicou durante mais de dez anos, até sua morte, em 1992.

Foi a época em que começou a ser notado no exterior: em 1980-1, foi convidado para trabalhar no estúdio da Polaroid de Amsterdã; em 1982, em Colônia, participou da mostra Photographie 1922-1982 e foi eleito um dos vinte maiores fotógrafos do mundo, na feira Photokina; em 1985, foi convidado a fotografar Versalhes, o que fez com uma ligeira superexposição, a fim de transmitir a sensação de irrealidade do lugar. Ainda em 1982, voltou ao sul da Itália para uma exposição na Apúlia, onde deu início a uma colaboração importante com o fotógrafo Gianni Leone. A associação se desdobrou no projeto Viagem na Itália (1984), talvez o mais influente trabalho de fotografia de paisagem na Itália contemporânea, reunindo vinte fotógrafos e o escritor Gianni Celati para reescrever o Grand Tour que, desde o século 18, envolveu gerações de intelectuais da Europa setentrional e continuou a ocupar artistas italianos no século 20, sobretudo a partir do neorrealismo. O objetivo era lançar um olhar documental sobre lugares comuns, à margem, em vez de atrações turísticas, e denunciar o desaparecimento da paisagem, eliminada pela propagação de não lugares e por nossa perda de sensibilidade em relação ao ambiente externo.

As novidades do projeto foram muitas: no plano visual, ele buscou banir qualquer ideia codificada de beleza natural, incentivando um olhar pessoal para lugares marginais, um olhar que se valia da imaginação e da memória; culturalmente, reuniu muitos fotógrafos italianos contemporâneos de diferentes gerações — assim como um franco-italiano e dois americanos —, dando-lhes uma voz coletiva como artistas e conferindo à fotografia uma presença sem precedentes. O projeto também abriu caminho para outras colaborações entre fotógrafos e escritores em torno da paisagem italiana, em linha com o crescente interesse europeu pelo assunto, como é o caso do projeto DATAR, financiado pelo governo francês para documentar a paisagem do próprio país e objeto de uma exposição em Milão em 1984-5.

Nos últimos projetos, Ghirri continuou concentrado em sua região natal, o vale do Pó, que entretanto pode representar qualquer lugar, como se vê em Explorações na rua Emilia (1986), feito em colaboração com outros fotógrafos, mas também com escritores, geógrafos e economistas. Ghirri ainda foi contratado para trabalhar na Emília-Romanha com arquitetos como Paolo Portoghesi e Aldo Rossi, e cantores pop de Bolonha como Lucio Dalla — o interesse musical de Ghirri era bastante amplo: ia do pop à música clássica, em especial Beethoven, e ele era fã de Bob Dylan.

O ponto mais alto de sua produção talvez tenha sido o livro O perfil das nuvens (1989), com textos de Gianni Celati, que ensinou Ghirri a pensar numa obra em termos narrativos. As fotografias do livro impressionam pela singeleza e teatralidade, pelo enquadramento notável, pela frontalidade clássica e simétrica, pelo vazio dos lugares, em geral destituídos de presença humana (à maneira de De Chirico), e que por isso parecem fantasmagóricos, como se não existissem mais, a não ser em nossa memória, como em suas paisagens nevoentas ou nevadas. Mesmo ao adotar referências clássicas, como a perspectiva central renascentista, o trabalho também transmitia uma clara noção da cultura estética dos lugares, visíveis em filmes ou no livro seminal Un paese (1955), colaboração entre Paul Strand e Cesare Zavattini, que Ghirri e Celati sem dúvida tinham em mente.

Um dos últimos projetos de Ghirri foi realizado no estúdio de Giorgio Morandi, que ele visitou com o escritor Giorgio Massori. As fotografias que Ghirri fez dos espaços e dos objetos do pintor (publicadas em Ateliê Morandi, 1992) transmitem intensamente o estilo despojado do artista bolonhês, que era também o de Ghirri. Em paralelo com o trabalho, Ghirri contribuiu em muito para conferir à fotografia o selo de arte e torná-la uma ferramenta teórica valiosa no debate contemporâneo, por meio de ensaios críticos escritos na década de 1970 e, sobretudo, na de 1980, boa parte reunida nos livros Nada de velho sob o sol (1997) e Lições de fotografia (aulas dadas em 1989-90 e publicadas em 2010). Apesar de fundamentais para compreender a estética de Ghirri e o debate crítico da época, esses textos continuam em grande parte inexplorados.

A fotografia de Ghirri, ao olhar para fora, para a fotografia e as artes plásticas europeias e americanas, e para outras artes e disciplinas, parecia desafiar a introspecção típica da estética italiana, contribuindo para fechar o hiato entre diferentes campos e, sobretudo, para reinventar a paisagem como uma mistura complexa de experiências e memórias sensoriais, intelectuais, imaginativas e afetivas. Ao mesmo tempo, Ghirri redefiniu a fotografia como a expressão empírica, ética, estética e, em última análise, subjetiva de uma visão que se deixa fascinar pela simples aparição da realidade, mas que também é crítica em relação às mudanças recentes e rápidas na sociedade italiana.

Tradução do inglês de Donaldson M. Garschagen

§

KODACHROME, Luigi Ghirri

I

Em 1969, todos os jornais publicaram a fotografia tirada da nave espacial em viagem à Lua; era a primeira fotografia da Terra.

A imagem há séculos perseguida pelo homem se apresentava ao nosso olhar contendo simultaneamente todas as imagens precedentes, incompletas, todos os livros escritos, todos os signos decifrados e indecifrados.

Não era apenas a imagem do mundo, mas a imagem que continha todas as imagens do mundo: grafites, afrescos, pinturas, escritos, fotografias, livros, filmes.

Ao mesmo tempo, a representação do mundo e todas as representações de mundo de uma só vez. No entanto esse olhar total, esse redescrever tudo, anulava mais uma vez a possibilidade de traduzir o hieróglifo total.

O poder de conter tudo desparecia diante da impossibilidade de ver tudo de uma só vez.

O evento e sua representação, ver e estar contido, tudo isso se reapresentava ao homem como insuficiente para resolver as indagações de sempre.

Porém essa possibilidade de duplicação total deixava entrever a possibilidade de decifrar o hieróglifo; tínhamos os dois polos da dúvida e do mistério secular, a imagem do átomo e a imagem do mundo, finalmente uma diante da outra.

O espaço entre o infinitamente pequeno e o infinitamente grande era preenchido pelo infinitamente complexo: o homem e sua vida, a natureza.

A necessidade de uma informação ou conhecimento nasce, assim, entre esses dois extremos, oscilando do microscópio ao telescópio, para poder traduzir e interpretar o real e o hieroglífico.

 

II

Da necessidade e do desejo de interpretar e traduzir o signo e o sentido dessa soma de hieróglifos nasce meu trabalho. Nele, não só a realidade facilmente identificável ou de alto conteúdo simbólico, mas também o pensamento, a memória, a imaginação, o conteúdo fantástico ou alienado.

Para o fim a que me propus, a fotografia é extraordinariamente importante, graças a características que tentarei evidenciar aqui.

O apagamento do espaço que circunda a parte enquadrada é para mim tão fundamental quanto o representado, e é graças a esse apagamento que a imagem assume sentido, tornando-se mensurável.

Ao mesmo tempo a imagem continua no que é visível do apagamento, convidando-nos a ver o resto do real não representado.

Esse dúplice aspecto de representar e apagar não apenas tende a evocar a ausência de limites, excluindo toda ideia de completude ou de finito, mas indica algo que não pode ser delimitado, isto é, o real.

A possibilidade de ver e de penetrar no universo da realidade passa, ao contrário, através de todas as representações e os modelos culturais conhecidos, que nos são dados como definidos e decisivos, e nossa relação com a realidade e a vida é a mesma que existe entre a imagem do satélite e a própria Terra.

Assim, com sua indeterminação, a fotografia se torna sujeito privilegiado para conseguir sair do simbólico das representações definidas, às quais se atribuiu valor de verdade.

A possibilidade de análise no tempo e no espaço dos signos que formam a realidade, cuja inteireza nos escapa desde sempre, permite portanto à fotografia, graças a seu caráter fragmentário, estar mais próxima do não delimitável, ou seja, da existência física.

Por isso não me interessam: as imagens e os instantes decisivos, o estudo ou a análise da linguagem como fim em si mesmo, a estética, o conceito ou a ideia totalizante, a emoção do poeta, a citação culta, a busca de um novo credo estético, o uso de um estilo.

Meu compromisso é ver com clareza, por isso me interessam todas as funções possíveis, sem separar nenhuma delas, mas assumindo-as na totalidade para poder pouco a pouco ver e tornar reconhecíveis os hieróglifos encontrados.

 

III

O encontro cotidiano com a realidade, com as ficções, com os simulacros, os aspectos ambíguos, poéticos ou alienantes parecem negar qualquer via de saída do labirinto, cujas paredes são cada vez mais ilusórias, tanto que poderíamos nos confundir com elas.

O sentido que procuro dar a meu trabalho é o de verificar como seria ainda possível desejar e enfrentar a estrada da consciência para poder, enfim, distinguir a identidade precisa do homem, das coisas, da vida, diante da imagem do homem, das coisas, da vida.

Publicado no livro Kodachrome (Módena: Punto e Virgola, 1978), de Luigi Ghirri. Tradução do italiano de Maurício Santana Dias.///

© imagens: herdeiros de Luigi Ghirri

Luigi Ghirri (1943-92) foi um dos maiores fotógrafos italianos.

Marina Spunta é professora na Universidade de Leicester, na Inglaterra. Suas pesquisas se concentram nas áreas da literatura, da fotografia e do cinema italiano no pós-guerra.

 

Tags: