Revista ZUM 26

A perspectiva iorubá

Ayrson Heráclito & Amanda Bonan Publicado em: 25 de julho de 2024

Barrueco colar (2005), da série Sangue vegetal

“Minha missão é exorcizar a história”, afirmou Ayrson Heráclito, em palestra proferida em 2016. Desde os anos 1980, o artista, professor e curador baiano explicita os equívocos da narrativa histórica eurocêntrica e o que nela há de tendencioso e racista. Seu interesse pela cultura iorubá de origem nigeriana e pelo modo como ela se reinventou diante do trauma colonial escravagista no Brasil exige outro sistema de pensamento e outras formas de leitura estética que não passam pelas referências ocidentalizadas estabelecidas entre nós. No campo artístico, os conceitos canônicos da história da arte, como a dicotomia entre figuração e abstração, por exemplo, tornam-se, no mínimo, inadequados para compreender o universo simbólico iorubano. Para Heráclito, descolonizar – ou, melhor, exorcizar – o conhecimento significa livrar-se da influência de um modelo de pensamento ocidental e reescrever a história com base em outros pressupostos.

Desse modo, a aproximação de Heráclito com a cultura iorubá não segue os caminhos convencionais adotados pela maioria dos estudiosos africanistas. Ele não recorre aos tradicionais cadernos de campo etnográficos, que frequentemente caem em registros distanciados, muitas vezes cobertos por um olhar exotizante ou estereotipado, especialmente quando se trata de abordagens essencialistas. Além disso, o artista não se alinha com parte significativa dos historiadores da arte que tendem a conceber as culturas tradicionais africanas como permanentemente arcaicas e imutáveis. Ele não trabalha, portanto, com as categorias genéricas de “povos primitivos” ou “tribais”, provenientes de um continente africano atemporal e isolado, que prevalecem na vasta literatura eurocêntrica da arte.

Piercing pérola (2005), da série Sangue vegetal
Piercing pérola (2005), da série Sangue vegetal

A imersão de Heráclito no universo iorubá passa, inicialmente, por sua vivência do candomblé da nação Jeje Mahi, na Bahia. Atuando indissociavelmente como ogã sojatin e artista, ele tece uma série de estratégias e cria para si uma gama de princípios éticos e estéticos. Isso inclui o compromisso de não divulgar os segredos ritualísticos de sua religião, em contraste, por exemplo, com a abordagem sistemática do fotógrafo etnólogo Pierre Verger, de quem Heráclito é um crítico contundente. Ao tratar do panteão dos orixás cultuado na Bahia, os desafios do artista e ogã no campo visual são, de um lado, fugir da literalidade e da mera ilustração próprias das imagens religiosas e, de outro, contrapor-se ao distanciamento do registro meramente documental. Sua prática artística se entrelaça com sua vida espiritual, resultando em um trabalho impregnado de metáforas conceituais que emergem do mundo ritualístico e mitológico dos candomblés.

A integração do real e do mítico é um caráter essencial para compreender a proposta visual de Heráclito, que, consistentemente, consegue amalgamar arte e cura, arte e despacho, arte e expurgação. Um exemplo dessa prática é Bori (2008-11), trabalho que transcende a mera performance artística, incorporando elementos de um ritual sagrado. Ao som dos atabaques e cânticos rituais, 12 performers representam os orixás do xirê, deitando-se sobre esteiras de palha enquanto suas cabeças são adornadas com uma variedade de alimentos/oferendas. Na série fotográfica derivada dessa performance, é possível contemplar a permanência da sacralidade da ação.

Entre as referências da cultura iorubá mais importantes da pesquisa de Heráclito, estão os critérios estéticos descritos pelo historiador estadunidense Robert Farris Thompson. Em sua pesquisa de campo realizada em algumas cidades e aldeias nigerianas, Thompson entrevistou 88 pessoas que se declararam aptas à crítica da arte iorubá, entre informantes, cultivadores, chefes de aldeia e de cultos tradicionais, representantes comunitários, artistas, comerciantes e funcionários públicos, e seu levantamento foi condensado no artigo “Crítica artística iorubá”, publicado em 1973. A ideia era, utilizando o vocabulário e as noções apreendidas nas entrevistas, estabelecer um consenso estético acerca das esculturas tradicionais com base na perspectiva iorubana (embora Thompson não deixe de utilizar, em parte, a terminologia europeia da história da arte). Se, na história da arte canônica do século 20, não se admitia haver critérios estéticos articulados entre “os africanos”, cuja essência estaria atrelada a um mundo “mágico” e “primitivo” – sendo o pensamento racional e crítico algo atribuído apenas ao “Ocidente” –, o trabalho de Thompson demonstrou o contrário.

Corpo e sal: hidromancia, da série Histórias do futuro
Baobá: agromancia, da série Histórias do futuro
Atletas: aeromancia, da série Histórias do futuro

Segundo a antropóloga estadunidense Sally Price, no texto “Arte dos outros – Nossa arte” [“Others Art – Our Art”, 1989], Thompson foi um dos primeiros pesquisadores ocidentais a sublinhar o dinamismo da arte iorubá, “enfatizando a faculdade criativa dos artistas”. O historiador teria descrito a “acuidade crítica africana sobre a qualidade das peças”, sejam aquelas produzidas para o culto, sejam as de finalidade mercadológica. Na visão comum entre africanistas europeus, um artefato tradicional só poderia ser considerado autêntico se tivesse sido criado e utilizado para fins ritualísticos, desconsiderando o fato de que muitos objetos foram dedicados a fins comerciais após a colonização europeia na África. Para Thompson, valores associativos, como o mágico-religioso e a sensibilidade estética ou mesmo comercial, não se excluíam mutuamente. A oposição entre arte e objeto de culto, aliás, é outro binarismo próprio da história da arte canônica ocidental do qual devemos nos desfazer para melhor compreender o universo de Ayrson Heráclito.

Em sua pesquisa, Thompson descreveu 18 critérios estéticos da cultura iorubá, elencados a seguir de forma resumida:

1. Mimese do ponto médio: o ponto exato entre a semelhança absoluta e a abstração absoluta.

2. Hipermimese desaprovada: para os iorubanos, pode haver algo sinistro na mimese absoluta, como as verdades desagradáveis (da feiura, por exemplo).

3. Abstração excessiva desaprovada: a bela escultura, para os iorubás, não é muito real, mas também não se afasta absolutamente da forma natural.

4. Visibilidade: nitidez da forma e da linha.

5. Suavidade brilhante: o gosto pela luminosidade, que se caracteriza pelas superfícies polidas e as sombras nas entrelinhas de incisões.

6. Proporção emocional: composições escultóricas inseridas em “perspectiva social” em que o escultor indica antiguidade ou hierarquia por gradações de escala.

7. Posicionamento adequado das partes do corpo: conceito que se sobrepõe à noção de proporção.

8. Composição: o espaçamento estético das coisas ou o posicionamento de indivíduos, coisas e animais são estabelecidos por fatores miméticos ou emocionais.

9. Delicadeza: a delicadeza linear é motivo de admiração, mas a delicadeza excessiva ou a magreza na representação da massa humana são condenadas.

10. Redondeza: contornos esculpidos e massa esférica completa, não angular.

11. Saliências: protuberâncias moderadas são uma parte aceita da redondeza.

12. Saliências desagradáveis: embora não aceito entre os iorubás, o uso deliberado desse efeito ocorre na escultura satírica para o culto aos egunguns.

13. Protuberâncias sinistras: em geral, massas arredondadas definem a escultura iorubá; no entanto, inchaços excessivamente curvados, não.

14. Angularidade agradável: a redondeza não é uma lei imutável. Um ponto forte da estética iorubá é sua flexibilidade.

15. Retidão: essa qualidade figura ao lado da redondeza como um traço geométrico de caráter essencial na escultura fina. Os iorubás definem a retidão como uma postura ereta e, por extensão, como alinhamentos equilibrados e simetria.

16. Simetria: as virtudes tranquilizadoras da simetria são constantes na arte iorubá.

17. Habilidade: a valorização da habilidade rara do artista.

18. Efebismo: gosto pela juventude.

Podemos analisar as séries fotográficas de Heráclito à luz dos critérios iorubanos elaborados por Thompson. Isso exige não pensarmos exclusivamente com base em referências da história da arte euro-estadunidense à qual estamos acostumados. Em Banhistas (2007, pp. 1, 2, 3 e 8), o olhar do espectador atenta ora para o corpo definido do homem negro besuntado pelo dendê, ora para certo abstracionismo provocado pela proximidade dos elementos no enquadramento da imagem. Tomando certa liberdade teórica (afinal, são técnicas e contextos bastante distintos), podemos dizer que essa imagem atende ao primeiro critério descrito por Thompson, a “mimese do ponto médio”. Em todo caso, é possível entrever ou imaginar a procura de Heráclito por um ponto equidistante entre o figurativo e o abstrato.

Também podemos analisar os Banhistas com base na pesquisa de Thompson: as imagens são moldadas pela clareza das formas e das linhas corporais, enquanto percebemos a suavidade brilhante conferida pelo dendê à composição. O artista captura o jovem homem negro em ângulos que destacam os contornos sinuosos do corpo. Há delicadeza na imagem. Esses critérios também podem ser observados na série Sangue vegetal (2005). Em uma fotografia com enquadramento fechado, vemos o colo de um homem negro adornado com um colar de pérolas de dendê. Essas contas amarelas aparecem em outras imagens da série como piercings que enfeitam delicadamente a cabeça do homem. O dendê, matéria-prima da culinária baiana, é também um elemento ancestral na mitologia dos candomblés, em que o óleo de palma é considerado “sangue vegetal”. A composição de Heráclito nos remete emocionalmente à afrobaianidade (e atende ainda ao oitavo critério descrito por Thompson: o espaçamento estético dos indivíduos por fatores miméticos ou emocionais).

A dimensão estética dos objetos pode nos fornecer um meio de compreender estruturas gerais de valor, bem como as metáforas centrais da sociedade iorubana. Se, entre os critérios estéticos, um dos pontos principais é a busca pelo ponto médio entre o figurativo e o abstrato, essa dualidade não se limita apenas à forma. Podemos observar também a busca pela coexistência entre o real e o mítico, entre a ênfase na materialidade física e o simbolismo subjacente. Atento a essa questão, o artista expressa seu interesse pelo caráter “intermediário” das coisas, como nessa citação no texto “Entre o sêmen e o dendê: aproximações do orixá Exu na fotografia de Ayrson Heráclito” (2017), de Mateus André de Souza:

“Sempre foi do meu interesse trabalhar com mate- riais ‘intermediários’, ou seja, a matéria em estado bruto – matéria para reflexão. Intermediários, porque estão em constante estado de transformação, pelo seu caráter físico ou simbólico. [Sempre me interessaram] Materiais que promovessem uma associação direta com determinada temática e, ao mesmo tempo, provocassem uma ampliação de diversas outras interpretações. Constatei que alguns materiais poderiam ser interpretados de forma hegemônica por diversos grupos sociais locais, por exemplo, os materiais utilizados nos rituais e na culinária afro-baiana. Seguindo o caminho traçado por [o artista alemão Joseph] Beuys, quero atingir a methexis – a expressão concreta de uma ideia ou espiritualidade. O azeite de dendê é um deles. Simultaneamente, promovo uma decodificação e uma nova forma de absorção de seu significado usual.”

Para Heráclito, a busca pelo “intermediário” implica adotar a perspectiva iorubana presente também em outros campos da vida, como na relação com o tempo. Se a ideia ocidental de tempo se baseia na linearidade entre passado, presente e futuro, na perspectiva iorubana não existe essa diferença. O artista trata desse tema na série de filmes e fotografias intitulada Histórias do futuro (2015). O trabalho é um contraponto à visão apresentada pelo padre português Antônio Vieira em seu livro homônimo, publicado em 1718, que, com base em profecias, propõe a criação de um império português que domine o mundo. Heráclito se apropria dessa ideia e a subverte, resgatando profecias baseadas no sistema de pensamento pré-colonial de leitura do futuro, por meio da adivinhação, pela leitura da água (hidromancia), dos campos (agromancia) e do ar (aeromancia).

A descolonização do conhecimento representada em seu trabalho vai além de um mero discurso retórico; é uma prática efetiva de resgate e valorização de outros critérios estéticos, de outras epistemologias e cosmologias. ///

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“Descender para transcender: descolonizando o conhecimento”, palestra de Ayrson Heráclito proferida no evento AfroTranscendence, em São Paulo, em 27 de outubro de 2016.

“Yoruba Art Criticism”, de Robert Farris Thompson, publicado em The Anthropology of Art: A Reader, de Morgan Perkins e Howard Morphy (Blackwell Pub., 2006).

Ayrson Heráclito (Macaúbas, BA, 1968) é Ogã do Jeje Mahi, artista, professor e curador, com doutorado em comunicação e semiótica pela PUC-SP e mestrado em artes visuais pela UFBA. Apresentou a exposição Yorùbáiano (2021) no Museu de Arte do Rio e participou da 35a Bienal de São Paulo, em 2023.

Amanda Bonan (Niterói, RJ, 1981) é doutoranda em história da arte pela USP. É curadora do Museu de Arte do Rio, onde assinou as exposições Funk: um grito de liberdade e ousadia (2023), Um defeito de cor (2023), Crônicas cariocas (2021) eYorùbáiano (2021).

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