Revista ZUM 25

Metrópolis

Adriana Lestido & Paloma Vidal Publicado em: 7 de março de 2024

Puerto Madero, 1992
Retiro, 1993
La Boca, Riachuelo, 1992
Pregador, Plaza Once, 1993
Mulheres esperam por trabalho de empregadas domésticas, Primera Junta, 1993
Bar El Querandí, Monserrat, 1989
Café Tortoni, Monserrat, 1993
Trabalhadores, Teatro San Martín, 1988
Garçons na pizzaria Güerrín, 1993
San Cristóbal, 1993
Barracas, 1992
Cortiço, San Telmo, 1993


Não é de ninguém, mas, por isso, também não é um cachorro de rua. Talvez o mais preciso seja dizer que é um cachorro de bairro, daquele bairro, um bairro qualquer, o que o torna também único: para reconhecê-lo seria necessário saber alguns detalhes muito particulares e precisos. E ele tem esse domínio, mesmo sem querer, como quem respira, ou dorme, ou anda. Dormir e andar – eis o que define principalmente sua vida. Dorme com ela, anda pelo bairro. Quase todos os dias, ela sai do bairro; quando ela sai, ele começa suas andanças. Mas há também os dias em que andam juntos.

Nessa manhã, desceram a escadaria arruinada correndo – ela corria, ele seguia seu ritmo, que desaceleraria ao transpor o portão de madeira do casarão. O portão é o limite que separa o dia dos dois: ela abriu o guarda-chuva e seguiu à esquerda, até a avenida, a seis quarteirões, esquivando-se, tensa, dos paralelepípedos soltos da calçada, que podem fazer saltar um jorro de água empoçada, para ali esperar seu ônibus listrado; ele parou sobre o mármore rachado da soleira e tomou seu tempo antes de decidir o que fazer, enquanto a observava afastar-se.

Nunca ocorreu a ela trancá-lo em casa, como fazem outras pessoas em outros bairros. Ali, isso é um tanto raro. Os cães estão na rua, onde está a comida e a companhia, e não latindo à espera de alguém ou sobressaltados pelos passantes, atrás de alguma grade. Há, sim, esperas e sobressaltos, de outros tipos e bastante variáveis, segundo as andanças de cada dia. Em dias chuvosos, como esse, a prioridade é não ficar ensopado e não ser escorraçado. O pelo molhado dá frio e, o que pode ser pior, repele as pessoas em geral, e a ela particularmente.

Isso poderá acontecer mais tarde: agora ele tem o dia pela frente. Várias cenas atravessarão sua vida, tendo-o como parte do cenário, como em uma série fotográfica na qual fica em evidência o que o transcorrer do tempo apaga. Ele tem a capacidade de viver um momento em sua dimensão quase parada, porque não costuma se adiantar ao presente. Continuou onde estava por algum tempo, sacando o cortiço do outro lado da rua, que começava também a se movimentar, até sair andando na direção contrária à dela, rumo ao parque.

O parque é seu lugar favorito no bairro, apesar dos desafios que impõe. Há cães forasteiros em busca de alimento e meninos inclinados a correr atrás de qualquer animal. Dos meninos ele gosta, apesar de seus impulsos por vezes indomados. Nunca é demais brincar, salvo quando há alguma dor envolvida, algum puxão, pisão ou chute, provocados por essa energia que as crianças carregam e que pode ir tanto para a alegria como para a violência. Ele os via se abraçarem e se empurrarem, observando-os em movimento, a fim de distinguir na expressão do rosto e no tom da voz para que lado a brincadeira os levaria, medindo se devia se envolver ou não.

Os cães, ele geralmente os ignora, embora lhe incomode que predisponham negativamente as pessoas a qualquer aproximação, por não saberem esperar. Não têm tempo a perder. Não há um dia depois do outro. Querem comida, quase sempre. Em dias como esse, querem também abrigo. Não sabem os horários das refeições nem conhecem as oscilações climáticas. Ou talvez sim, mas, como estão de passagem, preferem se arriscar a levar um chute a gastar seu tempo com cálculos que sua inconstância inutilizará.

Seguiu por uma rua pouco transitada. Há várias assim no bairro: não fosse pelos carros, conservados e limpos, apesar de envelhecidos, pareceriam, a algum apressado, abandonadas pela humanidade. Não é seu caso, pois raramente tem pressa, talvez nunca. Sobretudo desde que se conheceram e começaram a passar as noites juntos. Sabe que comerá no fim do dia. E, até lá, pintará algo, principal- mente no parque, que é o centro do bairro. O bairro tem um centro e uma margem – o riachuelo –, à qual ele e ela vão quando dormem até tarde, refugiados em seu quarto do casarão, para depois saírem andando, em um ritmo diferente do de outros dias.

Nos dias em que anda sozinho, mais do que andar, ele vaga, farejando bastante ao léu, sem buscar nada em especial, ainda que em estado de espera, com uma atenção flutuante que só se aguça mesmo nos momentos de atravessar a rua, porque não são incomuns os casos de atropelamento no bairro, e é preciso ter cautela nos cruzamentos de ruas como essa, em que a gente se distrai e esquece que ela é o trajeto de um ônibus listrado, máquina imponente e barulhenta que ora passa despercebida na algaravia, ora é o objeto de olhares expectantes, ora ainda, como agora, é a recordação de que esta é uma metrópole.

No parque não há como se esquecer disso. Já cedo, as pessoas estão intensamente envolvidas em suas tarefas, nem que seja a de esperar. Pessoas esperam de pé ou sentadas, esperam no ponto, em alguma fila, em algum balcão, agarra- das à bolsa, um pouco preocupadas ou um pouco desconfiadas, com pensamentos que a qualquer momento podem sair de sua boca – uma interjeição, um pedido, uma ordem, um elogio, uma provocação:

— Tá olhando o quê?

Uma moça acabou de empurrar um rapaz. Com uma garrafa na mão, ele se afasta, se junta a outros, que também seguram garrafas, e seguem abraçados, gargalhando, cambaleantes. Ela vê o cachorro e o reconhece. Frequenta o casarão. Sobe, ela também, diariamente em seu listrado, mas no sentido inverso, e antes sempre dá uma passada no quiosque da praça atrás de uma bebida quente, especialmente em dias frios como esse. Ainda bem que estiou, e ele pode acompanhá-la até o balcão, onde os dois vão esperar, cada um, seu tempo de comer: primeiro a comida chega para ela, depois ela passa um pedaço para ele. O pedaço cai no chão; ele cheira, comprova o que é, deliciando-se. A moça troca algumas palavras com o balconista do quiosque, acaricia a cabeça dele e parte na direção do ponto de ônibus.

O quiosque é seu lugar preferido do parque. Poderia ficar o dia todo ali. Há comida desde as primeiras horas da manhã, e ao meio-dia é uma festa de aromas e de restos, muita gente disposta a jogar pedaços de comida no chão ou até mesmo a oferecê-la a ele diretamente com a mão, em geral porque já o conhecem do bairro ou simplesmente porque confiam em seu semblante de cachorro que dorme em casa. Mas, quando as pessoas vão se aproximando, os outros cães ficam tão ansiosos em torno do estabelecimento, à espera de uma refeição, que ele acaba decidindo tomar outro rumo.

Vai até a rua de vidraças. Observa como as pessoas se fundem com o bairro: sobre um rosto que o observa, uma árvore desfolhada e um outro casarão, com seus janelões e varandas de ferro, que alguém transformou em varal, agora que um sol morno apareceu entre as nuvens, fazendo brilhar as poças sobre o asfalto. Os reflexos o fascinam, as superfícies transparentes e brilhantes que transformam, ampliam e intensificam o que se vê. Nesse momento, do outro lado da vitrine gotejada de chuva, alguém está atento a ele. O olhar olhando seus olhos o captura. O que será que ele quer? Decide aproximar-se mais do vidro e, então, reconhece um cheiro familiar, o cheiro da fumaça dos fins de tarde, quando ela já voltou, e antes que a noite chegue, ou de quando ficam deitados longamente nos dias em que ela não sai de casa. Gostaria de poder entrar, mas sabe que não é permitido.

Salvo o casarão, os lugares fechados dificilmente são para ele, a não ser que esteja acompanhado dela, como da vez em que entraram no clube do bairro, onde algumas noites casais deslizam compassados e compenetrados ao som da música. Mesmo assim, não deu muito certo, porque ele quis segui-los de perto, como se fosse uma brincadeira, o que a fez ralhar com ele, com um safanão e um berro que o escorraçou para a rua. Ficou esperando por ela ali, crente que ainda estaria zangada quando saísse; mas, ao contrário, ela saiu animada, e sua presença só a animou ainda mais, por não ter que andar sozinha de volta para casa, àquela hora.

Andar sozinho é sua vocação, mas ele não se incomoda de ter companhia – de outro cão, de alguma pessoa. É comum que algum cão o siga, por achar, acertada- mente, que ele sabe como se virar no bairro. Agora mesmo um cachorro amarelo caminha atrás dos seus passos, enquanto fareja seus rastros pela avenida que vai dar na ponte. Ele nunca vai até lá, porque a ponte lhe dá nos nervos, com seus tremores intermitentes e ruidosos a cada veículo que passa. Prefere estar sob sua imponente estrutura de aço, lá embaixo, às margens do riachuelo.

Foi lá que se encontraram, em uma tarde de verão. Ele tinha descido, atraído pela agitação de algumas crianças de tamanhos diversos, bem pequenas, inofen- sivas, risonhas e saltitantes sobre o barro úmido. Logo que o viram, vieram fazer festa e o empurraram com suas mãozinhas para que as acompanhasse na direção das mulheres. Estavam todas de pé, conversando, diante da água parada, envoltas em uma fumaça que se dissolvia rapidamente no ar. Era como estar em outro mundo, afastado da metrópole, de seus sons e seus sustos.

E lá estava ela, sorridente como para uma foto, aconchegando entre os braços um bebê, que em seguida entregaria a outra mulher. Quando subiram para o bairro e se dispersaram pelas ruas, dirigindo-se para as casas, ela foi a única que prestou atenção nele, sem bebê ou criança para carregar ou puxar; então ele decidiu acompanhá-la, e ela não se opôs. Já no casarão, disse para uma menina que varria os degraus da escadaria, como se o conhecesse de sempre:

— Olha quem veio.

É esse mesmo caminho que ele refaz agora. Não está muito molhado, nem muito cansado. Foi um dia tranquilo. Logo poderá deitar-se com ela no colchão, depois que ela se trocar, tirando as roupas úmidas do dia e pendurando-as nos cabides do quarto; ou também, quem sabe, se a chuva não voltar, acompanhá-la nas conversas na varanda do casarão, onde poderá divertir todo mundo ao correr atrás da galinha; ou quem sabe até darem juntos uma volta no quarteirão, vazio a essa hora, para ver a lua que hoje desponta entre as nuvens. ///

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Metropolis: Buenos Aires 1988/1999, de Adriana Lestido (Lariviére, Editorial RM, 2022)

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