Hora grande
Publicado em: 4 de dezembro de 2023Detalhes das joias nos dedos das mãos, unhas são pontas de lança. Punhos fechados se firmam na cintura pedindo pareia. Que o ponto alto seja uma dimensão de energia favorável a nós para quebrar e fazer descer foguetes gananciosos. Não sobem, viram brasa de ferro. Na hora grande se ajoelham diante das velas e continuam; a força da mata entra na comunicação. – Gê Viana
Olhar uma imagem é percorrer uma ilha. Mas Hora grande (2020) descreve uma península: Tapuitapera, nome original de Alcântara, em colagens talhadas pelo facão de Gê Viana, com base em fotografias produzidas entre 1939 e 1986, em um percurso entre o boqueirão, as ilhas e a parte continental do território.
O acúmulo de tempos e texturas na obra da artista é um ramal para a experiência de vida no quilombo. Espuma do mar de Cumã, a série de colagens mostra, em um mergulho, o bom viver nessa aldeia.
No Maranhão, chamamos de ramais os caminhos, vias secundárias, geralmente de terra batida ou piçarra, que interligam as comunidades por dentro. As colagens operam enunciando esse quilombo pela manufatura de um novo documento. Corroendo como salitre o arquivo, Viana transforma fotografias do acervo do museólogo Júlio Abe, obtidas de painéis de MDF da exposição Museu de rua de Alcântara, de 1986, desgastados por cupins, em ramais para conectar tempos distintos. Hora grande é uma imaginação dos quilombos, um território que historicamente resiste à destruição.
A instalação do Centro de Lançamento Espacial de Alcântara (CLA) nos anos 1980 gerou um processo de violência brutal nas terras de pretos. Por meio de uma operação criminosa, os quilombolas foram desapropriados de terras, de lugares sagrados, do acesso direto ao litoral, em suma, das possibilidades de vida constituídas de acordo com a inteligência própria dos quilombos. O processo de genocídio e ecocídio em curso, com a perspectiva de ampliação da área do CLA, parte de um movimento extenso de predação.
Voltando no tempo para ver mais longe – possibilidade acionada pela colagem –, a investida do CLA sobre o território pode ser compreendida como parte de uma história antiga de matanças.
No mapa do “Todo marítimo da Terra de Santa Cruz”, de 1640, é identificada a localização de algumas aldeias tapuias. Tapuitapera, uma das maiores aldeias tupinambás, conforme os registros da época do contato com os franceses, é delimitada na área peninsular de Alcântara, na fronteira com a “Povoação dos Brancos”, que interliga a península ao continente. Nesse ponto liminar, a cidade colonial avança e recua no conflito histórico com as populações originárias e pretas que se entrincheiraram.
A escalada premeditada dessa cidade colonial ameaça os biomas e as formas de vida alternativas, pelas práticas expansivas de monoculturas de açúcar e de algodão, e pela manutenção do regime escravocrata – que se mantém de pé até hoje. Entre a povoação dos brancos e Tapuitapera, há um conflito radical de pensamento e de visões de mundo.
Anacleta Pires da Silva, liderança do quilombo Santa Rosa dos Pretos, em Itapecuru-Mirim, diz que, para fazer resistência nos quilombos, é preciso entender o território como um corpo, não como loteamentos, separando cabeça e membros. O que acontece hoje em Alcântara é um genocídio, parte de uma política de extermínio de territórios quilombolas cortados pela br-135, por plantações de soja, pela linha férrea – a destruição da vida, consumida pelo capital.
Imaginando outro futuro, pensando a memória como arma de guerra, as colagens de Viana provocam uma distorção de cena, uma miração. Suas observações ruidosas mesclam a estrutura colonial, desgastada pelo tempo, carcomida pela maresia, e o avanço da natureza; nessas imagens, a história parece comportar a polifonia de uma festa. O recorte das fotografias de Tapuitapera abre picadas pela mata, que ressurge com uma força histórica e resistência vital. Quando o mato avança, entendemos que a natureza toma conta de si. A narrativa desse bioma, com seus assobios, zunidos, os diversos assuntos e sons, conta que, acima das ruínas da povoação dos brancos, Tapuitapera vive.
O verde toma conta do preto e branco; das taperas no entorno do pátio central de uma aldeia; do dourado esmeralda das joias, palácio de Ina, Princesa das Águas, no fundo do mar; das mãos na cintura chamando a punga, roda do tambor de crioula, em que todos brincam. No sonho, a visão da fogueira, festejo de São Benedito, da busca do Mastro do Divino na mata de mangue, do brilho das cobertas de palha de pindoba e da Coroa do Império. Filhos de peixes, de aves, é como se ouvíssemos o rio Tapuitapera, o vento, os pássaros como parte desse todo.
O açude da obra de Viana irriga – traz à vida – distintas políticas de resistência firmadas pelas comunidades, em seus rituais, suas festas e organizações internas, que tramam uma inteligência alternativa aos modelos coloniais. Podemos fabular as colagens como a água salobra e turva dos mangues de Tapuitapera, de que não se pode ver bem o fundo. Essas imagens guardam uma qualidade preciosa de mistério.
Enquanto marejamos babujados a imagem do Pelourinho, dos foguetes do CLA e do casario da cidade colonial, desejando a queda dessas estruturas, Viana macera o arquivo fotográfico devorado pelos cupins, chamando a terra em hora grande, pedindo proteção à mãe da qual viemos. ///
Dinho Araújo (Pinheiro, MA, 1985) é artista visual e mestre em antropologia pela Universidade Federal da Paraíba. Foi curador da exposição Caminho de Muriá para brocar a terra (2021), de Gê Viana, no Museu Histórico e Artístico do Maranhão – MHAM.
Gê Viana (Santa Luzia do Tide, MA, 1986) é fotógrafa, performer e pesquisadora. Apresentou as exposições Retirar o sol das cabeças, uma reza das imagens (2022), na Galeria Superfície, em São Paulo, SP, e Paridade, no Sesc de São Luís, MA (2017). Foi residente da Bolsa Pampulha em 2018-2019.
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Imagens: Cortesia da artista e da galeria Superfície
Legendas e créditos das fotografias usadas nas colagens:
P. 27: Trabalhadores abrindo uma estrada / Acervo da Paróquia de São Matias; P. 28: Fonte da Mirititiua; P. 29: Trabalhadores abrindo uma estrada / Acervo da Paróquia de São Matias; P. 30: Visita dos padres canadenses a Iguaíba, Capela N. Senhora de Fátima (1956); P. 31: Manifesto dos Lavradores (1986) / Arquivo do jornal O Imparcial; P. 32: Montagem da maquete do satélite da MECB – Missão Espacial Completa Brasileira / Arquivo do Instituto de Pesquisas Espaciais – INPE; P. 33, Em cima: Caminho para a Fonte de Mirititiua (1939), DE R. Lopes / Arquivo SPHAN; P. 33, Embaixo: Povoado espera em suas novas instalações (1986), de José Anselmo da Silva; P. 34: Rua da Merititiua [Mirititiua] / Acervo da Paróquia de São Matias; P. 35: Povoado de Ponta da Areia / Acervo da Paróquia de São Matias; P. 36, Em cima: VIista aérea do aeroporto e do Nucla (Núcleo de Implantação do Centro de Lançamento de Alcântara) / Andrade Gutierrez; Centro: Vista aérea da Praça da Matriz (1985) / Andrade Gutierrez; Embaixo: Vista aérea do Porto do Jacaré (1974) / Arquivo SPHAN – Pró Memória; P. 37: Itamatatiua – Festa de Santa Teresa (1957) / Acervo da Paróquia de São Matias.