Revista ZUM 24

Fragmentos de um real particular

Luciara Ribeiro & Sidney Amaral Publicado em: 3 de agosto de 2023

Sidney Amaral foi um artista inquieto. Comprometido com a experimentação, o estudo e o aperfeiçoamento técnico, passou por diferentes linguagens e materialidades no desenvolvimento de um estilo singular. Suas obras provocam estranhamentos, com montagens sofisticadas das quais afloram erotismo, ironia, sensibilidade e crítica social. Amaral tinha a qualidade de acessar as profundidades da vida humana e se preocupava com o impacto no mundo das coisas que fazia, tanto em seu convívio pessoal como em ações públicas. Por toda a vida, ele criou encantamentos para diminuir a distância entre os espaços privado e coletivo.

Nas instalações Os chinelos da Mara (2001) e Acesso restrito (2006), o artista paulista constrói espaços e utensílios cotidianos em mármore e bronze dourado. Na primeira, vemos parte de um boxe de banheiro com os chinelos de sua então namorada, Lucimara, com quem depois se casou e manteve relação até seu falecimento precoce, em 2017. A segunda obra retrata os bastidores frequentados por trabalhadores na montagem de uma exposição, com itens banais, como um balde de tinta, uma escada e um extintor de incêndio esculpidos de modo exímio em mármore, bronze e porcelana. Se Os chinelos da Mara nos levam para a intimidade do lar do artista, Acesso restrito remete à necessidade de romper com as paredes e as portas da desigualdade social e trabalhista no mundo das artes, dando visibilidade a um mercado precarizado.

A intimidade com as imagens começou na adolescência, pelo universo dos gibis e das HQs. Seu pai, Antônio Carlos do Amaral, era funcionário de uma editora gráfica e costumava levar para casa alguns dos materiais impressos, que eram rapidamente apropriados pelo filho – tanto que Sidney chegou a receber o apelido de Gibi, na infância. O pai conta que, não contente com apenas ler e ver as imagens, o garoto já fazia recortes e colagens, criando narrativas visuais autorais.

Com o ingresso de Amaral no curso de artes visuais da Faculdade Armando Álvares Penteado (Faap), em São Paulo, em 1995, as montagens foram ganhando novas camadas. Segundo Lucimara Amaral, viúva de Sidney, o artista se dedicou intensamente à produção de colagens bidimensionais durante os anos de graduação e o início da docência, entre 1995 e 2005. Nessa época, era comum que pedisse às pessoas de seu entorno, inclusive a seus alunos, a doação de revistas, como Marie Claire, Caras, Claudia e outras publicações populares nas décadas de 1990 e 2000.

Não é por acaso que corpos brancos e elementos de consumo burguês aparecem com frequência nessas colagens: são as imagens que a mídia na época produzia e divulgava como retratos da sociedade brasileira. A ubiquidade desse imaginário na mídia e a naturalização daqueles corpos e modos de vida como padrões sociais impactaram a criação desses primeiros trabalhos. Durante o processo de organização do espólio do artista, iniciado em 2021, descobriu-se uma quantidade surpreendente de impressos acumulados no ateliê, entre pilhas de revistas, gibis e HQs, demonstrando a importância que o artista dava a esses materiais.

A exposição Sidney Amaral, um espelho na história (2022) trouxe a público obras ainda pouco conhecidas e divulgadas. No caso das colagens, não se sabe se sua circulação limitada se deu por escolha do próprio artista ou por serem compreendidas pelos curadores como estudos ou trabalhos de início de carreira, e que, portanto, ocupariam um lugar de menor destaque na produção de Amaral. Em sua maioria sem títulos, as colagens apresentam composições variadas de ambientes oníricos povoados de seres ficcionais, ora familiares, ora repulsivos. As experimentações livres – ainda que repletas de críticas veladas – revelam uma mente animada, que buscava expandir seus limites. Os variados tamanhos e técnicas de finalização, como a plastificação para o emolduramento, o uso de fotocópias ou reimpressões e a justaposição de colagens, demonstram que o artista estava comprometido com todas as etapas da produção: da captura das imagens ao acabamento da obra.

Apesar da linguagem em comum, os motivos de cada colagem são evidentemente distintos. Muitas cenas destacam a paisagem natural ou arquitetônica, remontando espaços internos ou externos e ocupando-os com figuras híbridas, formadas por fragmentos de pessoas, animais e vegetais. Não raro, os personagens estão engajados em ações desagregadas e repletas de erotismo. Por exemplo, numa cena que mistura praia, montanha e centro urbano, vemos seres diversos formados por recortes de corpos de adultos nus e de crianças. Uma figura feminina tem um enorme olho no lugar da face e, na parte de baixo, uma fruta estragada, cuja polpa vermelha parece um ânus envolto por abelhas. Outro ser, coberto por uma batina religiosa, traz as mãos juntas em prece e, no lugar da cabeça, um pênis ereto – enquanto uma faca perfura suas costas.

Essas imagens remetem, por exemplo, a obras de Hieronymus Bosch, pintor holandês do século 14, que, no tríptico O jardim das delícias terrenas (1503-1515) – dividido entre paraíso, pecado e inferno –, explora o imaginário sobre o bem e o mal na liturgia cristã, representando os desejos humanos reprimidos com cenas de orgias, repulsa e condenação.

Outra referência para a elaboração das colagens, de acordo com Lucimara Amaral, foi o artista espanhol Salvador Dalí, um dos expoentes do movimento surrealista europeu no início do século 20. Com foco no estudo psíquico da mente humana, os surrealistas viam nas artes meios para explorar o inconsciente e confrontar a racionalidade e as noções de realidade. A colagem foi uma linguagem amplamente utilizada por eles, pois, além de promover a junção de elementos, ela possibilitava a extrapolação do realismo nas artes.

No contexto brasileiro, o artista paulista Octávio Araújo, que também trabalhava com colagens – e faleceu apenas dois anos antes de Amaral –, foi possivelmente outra grande influência. Com obras em acervos importantes, como o Museu Afro Brasil, o Centro Cultural São Paulo e a Pinacoteca do Estado de São Paulo, Araújo produziu um conjunto de cenas inusitadas, com destaque para as ruínas arquitetônicas e as inquietantes montagens com corpos humanos.

Além de evidenciarem a imensa habilidade técnica de Amaral para fragmentar e manusear as imagens, as colagens compõem o arsenal conceitual e discursivo do artista, sintomas de sua forma de observar e refletir sobre o mundo. “Gosto de pensar toda a minha produção de modo híbrido, de vasos comunicantes, onde um parece outro, onde tudo se mistura com tudo”, comenta o artista em entrevista ao crítico e curador Alexandre Araújo Bispo publicada na revista O Menelick 2° Ato, em 2012. “A proposta é criar um conflito em que as linguagens se bifurcam e se entrelaçam.”

Esse processo investigativo se aplica a outros trabalhos desenvolvidos ao longo da carreira; Amaral faz da colagem um modo de criar, independentemente da linguagem e da materialidade escolhidas. Esculturas como Ressentimento (meu animal doméstico), Animal político I (o impecável) e Longe de mim, fora de si e longe daqui, todas de 2014, são exemplos dessa compreensão: as três obras unem elementos cotidianos e geram no espectador múltiplas leituras e estranhamentos. Ressentimento traz uma panela de pressão com boca e dentes à mostra, suspensa por uma longa coluna formada por ossada animal. Por que representar a cabeça como uma panela de pressão? Seria uma alusão à própria mente, ao estado psicológico do artista? Em analogias similares com o corpo humano, as outras esculturas apresentam, respectivamente, uma tubulação de encanamento com uma xícara de bronze na ponta e bexigas de ar com orelhas humanas esculpidas nas laterais. Amaral utiliza a disjunção e a fragmentação para promover o seu oposto: a aproximação e a sensibilização dos espectadores.

Nas pinturas, é possível encontrar associações semelhantes. O políptico Incômodo (2014) remonta, com diversas cenas, às lutas pela liberdade no Brasil. Quatro painéis reposicionam figuras históricas emblemáticas e engendram referências pessoais e coletivas. Entre elas, personalidades fundamentais para a abolição da escravatura, como o advogado e abolicionista Luís Gama, o poeta Castro Alves, o jornalista José do Patrocínio e o líder abolicionista Francisco José do Nascimento, o Dragão do Mar. Cenas de celebrações aludem ao legado africano e afro-brasileiro no Brasil: crianças alegres brincando, demonstrando afeto e celebrando a vida; uma mulher grávida com as mãos apoiadas na barriga, aguardando o nascimento do filho. Cada imagem foi criteriosamente selecionada pelo artista para articular relações entre passado, presente e futuro. Além das imagens consagradas e familiares, também podemos identificar algumas figuras originárias das revistas guardadas pelo artista em seu ateliê.

Em outras obras, o processo de colagem é parte da metodologia de pré-produção, como o gesto de emprestar sua própria imagem, por meio da fotografia, para a posterior elaboração de pinturas e desenhos. Era responsabilidade de Lucimara, na produção desses retratos, chegar à “fotografia perfeita”, o que envolvia não apenas manusear a câmera ou apertar o botão do obturador, mas, sobretudo, compreender o processo criativo e investigativo de Amaral. Essas fotografias mostram o artista encenando diferentes sujeitos de si e outros personagens. Então, com a fotografia em mãos, Amaral estudava variadas técnicas de transferência, como o desenho de observação e o uso de transparências. Para O limite do meu talento (2010), por exemplo, ele posou com o carrinho de bebê de sua filha em um gramado. A tela retrata um pai, com uma enorme pedra amarrada ao corpo, empurrando um carrinho de bebê enquanto se equilibra numa corda bamba.

Em muitas dessas obras, o artista cobre o fundo da tela de preto para fazer sobressair figuras envoltas em dilemas humanos, que revelam fragilidades coletivas, a partir de metáforas visuais: um lutador de boxe jaz inerte diante de um vestido de noiva pendurado no lugar do saco de pancadas; um artista barqueiro navega sozinho na vasta imensidão e opressão do sistema das artes; um sujeito que precisa lidar com o racismo e as sutilezas das tensões raciais limpa exaustivamente uma ovelha, para deixá-la branca; gêmeos siameses unidos pela cabeça sentam-se de costas um para o outro em carteiras escolares – enquanto um estuda, o outro se alimenta; um Cristo de chinelos se sustenta sobre uma laje, com cabos de vassoura representando sua cruz.

“Procuro mostrar, através da relação do meu personagem com os objetos apresentados, como a comunicação entre as pessoas é difícil, mesmo entre aqueles que se amam”, diz Amaral na entrevista a Araújo Bispo. “Como o lar pode também ser o espaço da não comunicação entre os que ali habitam?”, indaga o artista. Na obra de Amaral, essas imagens se afiguram como mais do que meras representações e metáforas: elas são partilhas reais, nas aberturas das emoções do artista. A maioria das cenas está associada às vivências de Amaral, que nunca negou que suas pinturas são colagens de si – mas também nunca as reduziu a apenas isso. São imagens ambivalentes, que extrapolam a superfície do visível e nos levam às profundezas da psique. Nos vários retratos com uma arma apontada para a cabeça, por exemplo, o artista nos choca com a cena de violência ao mesmo tempo que nos encanta com o primor técnico da pintura. No confronto face a face entre nós e essas obras, na inquietante pulsão de morte e de vida, de beleza e de repulsa, também nos reconhecemos.

A colagem e a fotografia em Amaral recompõem os traços do (seu) real, em que coabitam o artista sensível, o técnico, o crítico e o político. A frustração e a angústia humana, as vontades e as extravagâncias, as repressões e os demônios internos – como lidar com eles? Com a obra de Amaral, passamos a habitar esse lugar permissivo à imperfeição, lugar de reformulação, de crítica de si e do mundo. O artista se colocava como espelho da história:

“Vejo minha obra sempre como um espelho que, ao ser olhado por muito tempo, nos lembra dessas metamorfoses do mundo, do meu querer estar no mundo e encontrar esse meu lugar… Sou um ser que estou deslocado todo o tempo”, disse ele na entrevista de 2012. Que sua presença reverbere em nós e que sua vida e sua obra sejam nosso espelho por muitos anos e gerações. ///

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Imagens cedidas pela Almeida & Dale Galeria de Arte.

Sidney Amaral (São Paulo, SP, 1973-2017) foi artista visual e professor, formado pela Faap e pela Escola Panamericana de Artes. Sua obra integra acervos de instituições como a Pinacoteca do Estado de São Paulo e o Museu Afro Brasil (SP e BA).

Luciara Ribeiro (Xique-xique, BA, 1989) é professora e curadora, mestra em história da arte pela Universidade de Salamanca, na Espanha, e pelo Programa de Pós-Graduação em História da Arte pela Universidade Federal de São Paulo. Foi curadora da exposição Sidney Amaral, um espelho na história (Galeria Almeida & Dale, 2022).

Publicado originalmente na Revista ZUM #24, abril de 2023

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