Retomada
Publicado em: 7 de fevereiro de 2023Nos últimos anos, ao circular pelos mundos deste planeta, tenho reparado em algo que é importante para mim desde criança: plantas de crescimento espontâneo.
Cresci entre duas cidades da Amazônia: Santarém e Manaus. Nesses espaços urbanizados, convivi com diversas espécies vegetais que, em geral, não têm utilidade para as pessoas, e por isso são chamadas de “mato” – um tipo de vida tido como inconveniente, sem valor, embora a maioria seja de plantas medicinais ou alimentícias.
Essas espécies vegetais habitam toda a superfície das cidades, muitas delas em locais imprevisíveis. Cobrem e invadem casarões e prédios abandonados, espalham-se pelas calçadas, serpenteiam por fiações de luz, transformam muros em verdadeiros paredões verdes, erguem-se das frestas do asfalto às rachaduras das casas. Habitam definitivamente tudo.
São plantas de linha de frente, ou seja, são as primeiras a ocupar uma área degradada ou abandonada pelos seres humanos. Elas têm um intenso ciclo de vida, e suas sementes são dispersadas nas cidades pelo vento, pela água, pelas aves e por outros animais. Com a chegada das sementes à terra, muito rápido elas germinam, enraízam e se reproduzem, geram folhas, flores e frutos, produzindo no solo adubação e sombra, que garante umidade – características ideais para o estabelecimento de outras espécies. Elas abrem os caminhos de uma nova floresta.
Esse processo é chamado pela ecologia de “sucessão ecológica”. É o retorno da floresta – da Vida –, à revelia do concreto e de suas opressões. Gosto de pensar nos paralelos possíveis entre essas plantas e os povos indígenas, bem como tantos grupos humanos vulnerabilizados pela lógica colonial da arquitetura, do imaginário e do funcionamento das cidades.
A sucessão ecológica é o conjunto de mudanças ordenadas e graduais da estrutura e da composição de uma comunidade biológica, dentro de um ecossistema (no caso, o urbano). São três os seus princípios: é um processo contínuo e não sazonal (independe das estações do ano); é gerada pelos próprios organismos que vivem ali, como resposta às modificações no ambiente; e termina estabelecendo uma comunidade estável, a comunidade clímax, que não sofre mais grandes mudanças na sua estrutura.
Em seus princípios e ideais, a sucessão ecológica remete às lutas pela terra e por direitos humanos, à resistência e reexistência dos grupos humanos jogados à precariedade das margens. Quando máquinas humanas as destroem, as plantas voltam a crescer. Desde que me formei mestra em ecologia da Amazônia, em 2016, me pergunto: onde estão as comunidades clímax?. Certamente não estão nas cidades. É nesse contexto que nasce a série fotográfica Retomada (2021) – uma história do eterno retorno da Vida.
Cada imagem representa um movimento vegetal no seu contato com a cidade: reencontrar, germinar, enraizar, escalar, agregar, romper, espalhar, florescer, frutificar e tudo de novo. Nas imagens, Uýra surge camuflada às plantas representadas na pesquisa, um encontro de habitantes locais. Seu corpo é canal de cada movimento, e também tela para pinturas de grafismos criados para a série.
Os locais de cada foto, além da presença das espécies, têm em comum a relevância histórica, ambiental e sociocultural para o território originário. Por exemplo, a obra Romper foi produzida nas ruínas de um empreendimento colonial de encarceramento em Paricatuba, município de Iranduba no Amazonas. Construído em 1898 com materiais importados da Europa, no apogeu do ciclo da borracha, o prédio Belizário Pena foi uma pensão italiana dentro de uma área indígena – um dos tantos projetos nacionais de embranquecimento populacional. Anos depois, tornou-se um Liceu de Artes e Ofícios, em seguida, uma cadeia pública e, a partir de 1924, sua maior tragédia: um hospital para hansenianos, onde o Estado isolava os doentes e de onde desapareceram centenas de pessoas.
Hoje, o verde-vida tomou conta das ruínas. Centenas de espécies de trepadeiras, cipós, musgos e arbustos convivem com muitos animais e árvores de até 30 metros de altura. Por dentro, as paredes são tomadas por raízes, prova de que nenhum cimento é mais forte do que o tempo e a raiz de uma planta. ///
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Fotos: Matheus Belém. Produção: Ythana Aflitos e Mafel Matagal.
Emerson Uýra (Santarém-PA, 1991) é bióloga e mestra em ecologia, e atua como artista visual, educadora de arte e pesquisadora. Destaque da 34ª Bienal de São Paulo, da Manifesta 14 e vencedora do Prêmio PIPA 2022.
Publicado originalmente na Revista ZUM #23, outubro de 2022