Revista ZUM 10

Fotografia se faz no laboratório: texto de José Oiticica Filho sobre sua prática artística

José Oiticica Filho Publicado em: 8 de junho de 2016
José Oiticica Filho, "Recriação 38A", 1964. © Acervo Projeto Hélio Oiticica. Digitalização: Carlo Cirenza e César Oiticica Filho. Tratamento de imagem: Carlo Cirenza, Fabio Sampaio e Murilo Moser.

José Oiticica Filho, “Recriação 38A”, 1964. © Acervo Projeto Hélio Oiticica. Digitalização: Carlo Cirenza e César Oiticica Filho. Tratamento de imagem: Carlo Cirenza, Fabio Sampaio e Murilo Moser.

A ZUM #10 traz uma extensa revisão da obra de José Oiticica Filho, um dos pioneiros da experimentação fotográfica no Brasil. Com suas Formas, Abstrações e Recriações, Oiticica Filho estendeu os limites da arte fotográfica ao trabalhar de maneira engenhosa com as propriedades da luz e de outros materiais estranhos à fotografia “tradicional”. Fruto de longas horas no laboratório, suas composições englobam questões de gesto, traço, negativo/positivo e geometria em interessantes abstrações gráficas.

Leia abaixo um texto publicado pelo próprio artista em 24 de agosto de 1958 no Jornal do Brasil, em suplemento sobre as artes plásticas editado por Ferreira Gullar:

 

A RECRIAÇÃO FOTOGRÁFICA

José Oiticica Filho

Ao tirar uma fotografia e revelá-la, fico com um negativo da coisa fotografada. Esse negativo é transparente. Posso copiar o negativo obtido por contato ou por ampliação, em papel fotográfico ou em filme transparente. No primeiro caso obtenho uma cópia positiva, não transparente, conhecida por todos, é a cópia que se mostra, que se expõe. No segundo caso obtenho um positivo transparente.

É justamente o segundo caso que me interessa aqui. Copiando o positivo assim obtido tenho outro negativo, deste posso obter outro positivo e assim por diante. Posso portanto ter da coisa original fotografada vários negativos e positivos transparentes, tantos quantos me forem necessários para a realização da pesquisa visual em mira.

Posso portanto combinar, por transparência e portanto copiar ou projetar, um conjunto de positivos e negativos. Três são as combinações gerais possíveis:
1 – Positivo com positivo, isolados ou em combinação.
2 – Negativo com negativo, isolados ou combinados.
3 – Positivo com negativo, isolados ou combinados.

Assim, ao tirar uma fotografia, o negativo obtido tem potencialmente a propriedade de me dar inúmeras imagens. Dependente agora do artista pesquisador o resultado final a atingir.

Ao fazer uma pesquisa visual como acima esquematizei há dois casos a considerar:

1 – A coisa fotografada não é uma criação minha, isto é, é uma coisa já existente, criada por outrem. Exemplos: fotografia de paisagens, de barcas, de naturezas mortas, retratos etc. Neste caso as imagens obtidas por combinações de positivos ou negativos, como esquematizei acima, são chamadas por mim de derivações fotográficas. Claro que obtenho novas imagens, novas criações, mas partindo de algo que não foi minha criação. Tenho várias derivações fotográficas que me deram interessantes resultados pictórios. Eis alguns exemplos: derivações de paisagens; a série das paredes de Ouro Preto; série de derivações baseadas em fotomacrografias.

O outro caso a considerar é o seguinte:

2 – A coisa fotografada é uma criação minha. É, em geral, uma composição em preto e branco. Neste caso as imagens obtidas, por combinações de positivos e negativos transparentes, são chamadas por mim de recriações. Torno, então, a criar, baseado em criação original e de minha autoria.

Note-se a diferença, bem nítida, entre os dois conceitos de derivação e de recriação. Com ambos posso obter imagens fotográficas em preto e branco, sem cinzas intermediários ou imagens em preto e branco com uma certa escala de cinzas (em geral bem curta) intermediários.

A recriação fotográfica é, ao meu ver, um método interessantíssimo para estudos e pesquisas em artes visuais, sob um ponto de vista geral, e não apenas fotográfico. Com os exemplos que ilustram a presente reportagem é fácil ver até que ponto um negativo fotográfico contém em si, em estado potencial, um mundo de novas combinações, de novos problemas, não apenas visuais, mas estéticos visuais.

Poder-se-ia dizer, usando uma imagem mecânica, que a coleção original de positivos e negativos transparentes contém energia estética sob forma potencial, energia capaz de ser liberada e assim produzir novas formas e novos aspectos estéticos, mediante as múltiplas e inúmeras combinações das referidas transparências.///

 

O texto acima foi gentilmente cedido por César Oiticica para a ZUM.

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