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Fotografia como presente e apuração da história: entrevista com João Pina

Paula Sacchetta Publicado em: 17 de junho de 2016

O fotógrafo João Pina é formado pelo ICP de Nova York, tem apenas 35 anos e durante dez deles se debruçou sobre a América Latina. Um fruto dessa dedicação é seu premiado trabalho sobre a Operação Condor, levada a cabo por seis ditaduras do continente (Brasil, Argentina, Bolívia, Chile, Paraguai e Uruguai). Na segunda entrevista da cobertura da ZUM do Fórum Latino-Americano de Fotografia, o português mostra por que tem autoridade para falar sobre a região e reflete acerca do lugar do fotógrafo hoje.

João Pina, Esteban Echeverria, Argentina, 2011, da série "Operação Condor". Avião usado pelos militares argentinos para arremessar militantes de esquerda vivos sobre o rio da Prata e o oceano Atlântico durante a ditadura militar. Hoje, é usado como objeto de propaganda para uma loja de materiais de construção nos arredores de Buenos Aires.

João Pina, Esteban Echeverria, Argentina, 2011, da série “Operação Condor”. Avião usado pelos militares argentinos para arremessar militantes de esquerda vivos sobre o rio da Prata e o oceano Atlântico durante a ditadura militar. Hoje, é usado como objeto de propaganda para uma loja de materiais de construção nos arredores de Buenos Aires.

Paula Sacchetta: Como é o seu fazer fotográfico, que mescla a fotografia com uma busca e apuração da história?

João Pina: Esse é um dos lados do que eu faço. Não faço só esse tipo de coisa, senão já teria morrido de fome [risos]. Ainda trato da atualidade. E quando trato da atualidade, posso lidar com os mesmos temas que estão na pauta do dia, mas de um ponto de vista histórico. Por exemplo, eu cobri as manifestações de 2013 em São Paulo. Não era pela atualidade jornalística que me interessava cobri-las, mas sim porque era a primeira vez na história do Brasil, desde as Diretas Já, que havia tanta gente na rua. E como se vê hoje, três anos depois, aquilo já é um marco. Eu tive a sorte de estar aqui fotografando naquela época, mas fiz minha cobertura de outro ponto de vista. Portanto, eu trabalho, por um lado, nas coisas do passado, nas histórias não fotografáveis, que são difíceis de representar visualmente. É aí que acontece meu trabalho de arqueologista. Mas, por outro lado, tento não me fechar só no passado. Procuro abordar também o presente.

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João Pina, protestos de junho de 2013 em São Paulo.

E como representar em uma fotografia toda uma história e um passado que não estão acontecendo no momento da foto?

Falemos do Condor [trabalho de Pina que integra a exposição Ex Machina, do Fórum], que fica mais fácil. Eu parti do princípio de que a Operação Condor existiu, encontrei documentos nos arquivos que me mostravam que ela existiu e decidi que queria investigar isso. Comecei por tentar desenhar um eixo central, que fosse comum aos seis países envolvidos, e esse eixo foi primeiramente conversar com familiares de desaparecidos e com sobreviventes – ou seja, pessoas que foram presas e torturadas – e, depois, visitar lugares de tortura e desaparição. Assim montei o corpo central do livro. São retratos que vão acompanhados de histórias e são intercalados por paisagens, lugares de tortura etc. Eu ouço as histórias, depuro a informação e a partir daí vejo o que é fotografável.

João Pina, Santiago, Chile, 2008, da série "Operação Condor". A entrada do Londres 38, antigo centro de detenção clandestino no centro de Santiago do Chile. Os poucos sobreviventes desse centro descreveram sua localização com o pouco que conseguiram ver quando levados para dentro da casa: azulejos pretos e brancos.

João Pina, Santiago, Chile, 2008, da série “Operação Condor”. A entrada do Londres 38, antigo centro de detenção clandestino no centro de Santiago do Chile. Os poucos sobreviventes desse centro descreveram sua localização com o pouco que conseguiram ver quando levados para dentro da casa: azulejos pretos e brancos.

E por que esse tema? Por que, sendo português, você quis olhar para as ditaduras latino-americanas?
Eu já havia feito meu primeiro livro em Portugal [Por teu livre pensamento, que conta a história de 25 presos políticos portugueses] e a comoção que eu tenho por esse tema vem, obviamente, da história da minha família, pelo fato de meus avós terem estado presos. Mas eu também, desde criança, tinha uma enorme paixão pelo que conhecia da América Latina, que era Cuba – a primeira grande viagem que eu fiz, em 1987. A partir dali, fiquei com um bichinho pela região. No começo dos anos 2000, vivia nos Estados Unidos, li algo sobre a Operação Condor, comecei a pesquisar e pensei “puxa, se eu fiz isso em um país como Portugal, por que não fazer em um continente todo, na América Latina?”. A velha megalomania portuguesa…

O que significa, para você, a fotografia como pensamento, que é o tema desta edição do Fórum Latino-Americano? A fotografia já alcançou o status de pensamento?

Na minha opinião, a fotografia alcançou esse lugar há muito tempo, muito antes do século XXI. Ouso dizer que a origem, a gênese da fotografia, é uma origem de pensamento, como de muitas outras disciplinas. Vivemos em uma época em que qualquer celular tem uma câmera. Portanto, uma grande parte da população mundial hoje produz fotografia, coisa que há dez anos não acontecia. Assim, o Fórum tem essa grande vantagem de nos permitir, durante alguns dias, parar para pensar um pouquinho nisso. Ser fotógrafo já não é o ato de pegar uma máquina e fazer fotografia, e sim o ato de pegar uma máquina, fazer fotografia e saber por que essa fotografia vai existir.

[vimeo width=”640″ height=”360″]https://vimeo.com/104314159[/vimeo]

Qual é, portanto, o trabalho do fotógrafo hoje?

Eu acho que é esse papel de pensador. De refletir sobre tudo isso. Vamos pegar uma imagem do meu livro Condor: qualquer pessoa hoje pode entrar em uma sala, com um celular e fazer esta imagem. Não é preciso um grande conhecimento técnico. Na verdade, com a tecnologia de hoje é muito simples fazer esta imagem. O valor desta imagem não consiste nas cinco cadeiras que estão diante de uma parede, e sim no fato de eu ter entendido o que aconteceu ali, que aquele era o gabinete de Pastor Coronel, o chefe da polícia política do Paraguai, e ter representado isso visualmente, narrativamente, de modo que possamos olhar para esta imagem e entendê-la. Isso só se dá porque eu passei algum tempo pensando e olhando e, depois, fotografando. Acho que nosso papel, portanto, é o de olhar e pensar antes de fotografar. E quando fotografamos, ou quando olhamos para a imagem fotografada por outros – porque o fotógrafo também tem hoje esse papel de curador, de olhar para o trabalho do outro e interpretá-lo –, ter também uma capacidade de triagem.

Vinte anos atrás, eu fotografaria no Rio de Janeiro, enviaria minhas fotos a um editor na Alemanha, por exemplo, que revelava os filmes, olhava meu material e decidia o que publicar. Eu voltava meses depois e só então via as imagens que tinha feito e as que haviam sido publicadas. Então me parece que hoje, muito mais do que fazer uma imagem, o fotógrafo decide o que fazer com a imagem. E as possibilidades são muito mais variadas do que antes. Posso publicar uma foto na internet, ter algum sucesso, criar uma conta no Instagram e, de repente, ter uma audiência que construí sozinho. As barreiras caíram, não preciso do New York Times para chegar a 20 mil seguidores. Não estamos mais condicionados a um jornal, a uma galeria, a um museu ou aos grandes centros de decisão do mundo. Isso posto, há inúmeras hipóteses que surgem e o Fórum, sem dúvida, é uma delas. Isso é muito novo e interessante. É um modo de trabalhar muito mais livre, mas que exige muito mais responsabilidade também.

João Pina, Cemitério do Jardim da Saudade, Rio de Janeiro, 2009. Funeral de um policial militar de 30 anos.

João Pina, Cemitério do Jardim da Saudade, Rio de Janeiro, 2009. Funeral de um policial militar de 30 anos.

Você pode contar um pouco sobre o trabalho que está realizando atualmente no Rio de Janeiro?
Eu o comecei em 2007, podemos dizer que ele não é mais novo, ou até que já tem barbas brancas. Entre 2009 e 2010 publiquei uma parte dele, que tem a ver com violência urbana no Rio. Mas eu acho que essas histórias são importantes demais para morrer na imprensa. Então eu quis acompanhar algumas delas e, sobretudo, quis continuar a entender o que leva uma cidade mundialmente conhecida como o Rio, a “cidade maravilhosa”, a ser também um dos lugares mais infernais para se viver no planeta, com índices de homicídio e de violência policial gigantescos etc. O que leva essa cidade que tinha tudo para ser incrível estar envolvida no pior que se pode representar do Brasil? Me interessa explorar visualmente essa dualidade.

Você não acha que a violência urbana carioca já foi explorada na fotografia à exaustão com as imagens do caveirão subindo o morro, dos tiroteios, das poças de sangue? Como você aborda o tema?
Esse tema foi fotografado à exaustão, sim, mas uma coisa é explorá-lo comercialmente, outra é explorá-lo filosoficamente. Eu trabalhei perto da polícia e perto do tráfico como poucos fotógrafos têm feito. Oferecia para os editores e eles diziam que era clichê, que já haviam visto coisas parecidas. Mas não se vê realmente imagens do tráfico, a não ser meia dúzia de jovens com a cara tapada. Ninguém fala deles, ninguém tenta entender como vivem aquelas pessoas ou o que acontece na vida delas para que tenham de entrar para o tráfico. Ninguém se dedica a parar para pensar como vivem três milhões de pessoas que moram nas favelas do Rio de Janeiro. Existem pensadores e acadêmicos que o fazem, mas na fotografia o tema é muito mais explorado como produto.

Fui atrás dessas histórias em parceria com Jon Lee Anderson. Publicamos, fez sucesso, teve um público imenso, mas acabou ali, é efêmero. Depois de uma semana, um mês, a coisa se extingue e todos vão se esquecer daquilo. Mas o Fernandinho, que foi o principal personagem dessa nossa matéria, continua vivendo no mesmo lugar, não pode sair do morro porque ou é morto ou é preso, 50 mil assassinatos continuam a acontecer por ano no Brasil e eu não quero ficar quieto perante isso. O que me interessa é fazer com que, daqui a 50 anos, quando um Bolsonaro venha fazer apologia da tortura ou um Ahmadinejad diga que o holocausto nunca existiu, haja algo para provar que aquilo existiu e é inegável. Se os jornais existirão ou não ninguém sabe, mas acho que os livros vão continuar a existir. O meu foco então é menos o jornalismo e mais a história. E, além do mais, se tudo correr bem, ainda pode haver uma reflexão em cima do que fiz, e outros trabalhos poderão ser criados a partir do meu.

João Pina, Rio de Janeiro.

João Pina, Rio de Janeiro.

Isto é, trata-se de colocar um tema em pauta e assim as pessoas começam a falar dele ou mesmo a desenvolver trabalhos próprios a partir do seu?
Exatamente. Às vezes, basta atirar uma coisa na estratosfera para que ela fique na órbita. Isso é maravilhoso, pessoas se apropriam do seu trabalho, usam suas imagens ou de repente vão fazer trabalhos delas a partir de um tema que você colocou. A foto serve de desculpa para tocar num tema. A foto é sempre uma desculpa, eu acho. Para mim, sem dúvida, é a desculpa para trabalhar. Eu não sei compor música, não sei escrever poesia, mas sei pegar uma câmera e fazer uma foto. Isso já é uma mais-valia. Mas é a desculpa que eu tenho para sentar com um sobrevivente da ditadura e conversar com ele, para subir o Morro do Dendê e falar com o chefe do tráfico ou para ir para o Afeganistão e sentar com pessoas para conversar. É a minha desculpa: “Olha eu tenho uma máquina e eu vim aqui fazer umas imagens”. As pessoas aceitam isso e é extraordinário. Além de tudo, é a desculpa ideal para eu nunca ter trabalhado em um escritório.///

 

Paula Sacchetta é jornalista e documentarista. Escrevia aos domingos sobre fotografia para o caderno Aliás, do jornal O Estado de S. Paulo. Atualmente trabalha com documentários na Mira Filmes.
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