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As reencarnações de uma mulher negra: pessoa-coisa-pessoa

Alexandre Araujo Bispo Publicado em: 17 de novembro de 2020

 

Mulher de turbante, de Alberto Henschel (circa 1870). Coleção Gilberto Ferrez. Acervo Instituto Moreira Salles.

No seu (ou nos seus nomes) encontra-se uma das chaves do mistério da sua existência.
(Mãe Stella de Oxóssi)

1 – A capa do livro O genocídio do negro brasileiro: processo de um racismo mascarado (2017), de Abdias Nascimento (1914-2011), é um dos exemplos mais interessantes, mas não o único, de uso da fotografia Mulher negra de turbante (cerca de 1870, autoria de Alberto Henschel). A mulher de olhar profundo que passou para a história sem qualquer identificação pessoal como nome, idade, grupo étnico ou ocupação laboral na estrutura de exploração escravista, figura como uma síntese do que, afinal, é o racismo: máquina de morte onde pessoas são transformadas em coisas que retroalimentam o modelo econômico com efeitos na cultura, na política e na sociedade.

 

Capa do livro O genocídio do negro brasileiro: processo de um racismo mascarado, de Abdias Nascimento, 2017.

Nesta capa eloquente, o retrato da mulher não identificada dá uma cara para a violência racista que atravessa os séculos no Brasil, último país a abolir oficialmente a escravidão, em 1888. O próprio registro fotográfico, um instante efêmero na vida da mulher – talvez fruto de imposição dado as relações de poder entre brancos e negros existentes na segunda metade do século 19 – guarda algo da estrutura social de opressão a que a retratada, mesmo se fosse liberta, estava sujeita.

No tempo presente, quando essa imagem volta a circular dentro e fora dos meios digitais, cidadãs negras sofrem os efeitos da crueldade institucional do Estado brasileiro. São exemplares os casos de Claudia Ferreira (1976-2014), morta com dois tiros e arrastada na rua pelo carro da polícia; o recentíssimo caso de uma comerciante deitada no chão enquanto um policial pisava em seu pescoço; o caso da advogada Valéria Santos, golpeada com uma rasteira e arrastada por dois policiais dentro do tribunal onde defendia sua cliente, também ela uma mulher negra, em 2018; ou, para fechar esses exemplos nacionais, o assassinato de Marielle Franco (1979-2018).

Nos Estados Unidos, o caso mais recente é o de Breonna Taylor, 26 anos, morta a tiros dentro de sua própria casa invadida por policiais armados. Esses casos mostram como o pós-abolição jamais assegurou que pessoas negras fossem tratadas como pessoas com os direitos e respeito próprios a essa condição de não objeto.

 

2 – Como qualquer rosto fotografado, o da mulher de turbante pode ser interpretado como uma máscara da morte. Mas, diferente de outros rostos, a mulher de turbante desvela simultaneamente a morte de si e de milhões de negros no Brasil que sequer se tornaram representação visual durante a vida ou se tornarão, a despeito de seus feitos, depois da morte. Com efeito, escravidão e fotografia jogam com a morte. Ao contrário da pintura, do desenho ou da gravura, a imagem fotográfica é inteiramente gerada por uma máquina. Nesse sentido, a figura de origem mecânica é expressão da luz sobre diferentes superfícies, objetos e sujeitos. Essa condição de marca, de algo registrado por processos físico-químicos, é que leva autores como Roland Barthes, Philipe Dubois e Carlo Ginzburg a destrinçarem a relação indicial que a imagem fotográfica mantém com o “real”. O que aparece na foto aponta para algo que foi, mas que no tempo presente já não é mais. Como diz Barthes, a fotografia é uma repetição mecânica de algo que jamais se repetirá existencialmente. Nesse sentido, a fotografia como ensina Miriam Moreira Leite, é um arranjo cultural e ideológico de um espaço geográfico em um determinado instante. Essa noção de arranjo se aplica às imagens dos corpos humanos, tanto quanto explicam as composições resultantes de apropriações a posteriori de imagens como a da mulher de turbante.

Numa direção oposta à capa do livro de Nascimento, que acentua a morte em massa, uma série de apropriações atuais da imagem mecânica e única da mulher juntam seu rosto a três nomes disponíveis no imaginário social: Dandara dos Palmares, Maria Felipa de Oliveira e Luísa Mahim. Como Maria Felipa, a mulher de turbante se tornou um cartaz colado a uma parede de personalidades revolucionárias na loja de produtos agroecológicos do Armazém do Campo, nos Campos Elíseos, em São Paulo. Colado à parede, o retrato é exibido ao lado de personalidades como Abdias Nascimento (1914-2011), João Cândido 1880-1969, Sonia Leite (1958-2012), Santo Dias (1942-1978), Patrice Lumuba (1925-1961), Amilcar Cabral (1924-1973) entre outras pessoas que lutaram para que a liberdade plena fosse assegurada ao segmento negro como um todo.

Esse desejo de juntar um rosto fotográfico não identificado – a mulher em questão não é anônima, o problema é que ainda não sabemos nem mesmo seu nome de escravizada – com nomes culturalmente disponíveis é revelador da necessidade social que muitos de nós temos de apaziguar o horror frente à ausência de rosto para personagens do passado. Quando já existe a imagem de um rosto facilmente acessível porque digitalizado, como ocorre à mulher de turbante, abre-se, como parece o caso, uma margem de fabulação nominativa e não parece haver qualquer contradição em um mesmo retrato encarnar três nomes diferentes. Entretanto, se não houver um rosto, a história nos ensina, basta que um artista o invente por conta própria ou por encomenda.

 

Zeferina, de Dalton Paula. Cortesia do artista.

Alguns casos de rostificação visual de pessoas negras são exemplares e merecem destaque: o Retrato de Henrique Dias – governador dos negros na Batalha dos Guararapes (S/D), de autor desconhecido, pintado cerca de quase 200 anos depois de sua morte em condições de miséria; Zumbi (1927) de Antônio Parreiras (1860-1937) e A morte de Zumbi (1940) do escultor Raphael Galvez (1907-1998), que representam o líder negro respectivamente armado e altivo e morto. Zumbi dos Palmares (1655-1995) é seguramente a maior efeméride negra do Brasil, símbolo de insubordinação, luta e resistência pelo direito à vida plena. Uma das representações artísticas socialmente eficazes em sua homenagem é a reprodução monumental da cabeça de um Ooni (rei) de Ifé, Nigéria, de cerca de 1300-1400 da Era Comum (E.C) cujo original em tamanho muito menor está no British Museum.

Comissionado pelo Museu de Arte de São – MASP – para figurar na exposição Histórias afro-atlânticas, o artista goiano Dalton Paula (1982) imaginou um rosto para o líder e mártir negro João de Deus Nascimento (1761-1799), um dos mentores da Revolta dos Búzios (1798); e para Zeferina (século 19), mulher negra de origem angolana que viveu em Salvador na Bahia e fundou o Quilombo do Urubu. Os rostos dessas duas personagens históricas se movimentaram reproduzidos em painéis de divulgação da exposição, entre as estações Anhangabaú e Corinthians Itaquera, linha vermelha do metrô de São Paulo.

 

Foto da performance em que Renata Felinto encarna Maria Caboré. Cortesia da artista.

Artista convidada da II Mostra da 29ª edição do Programa de Exposições do Centro Cultural São Paulo, a paulistana Renata Felinto (1978) encarnou performaticamente Maria Caboré (fins do século 19 -1936), mulher negra da região do Crato, Ceará, que viveu uma vida de humilhações sociais a quem, desde que morreu, se atribui a capacidade de fazer milagres. Da perspectiva de Felinto, era preciso trazê-la de volta para confrontar essa romantização da dor de uma mulher negra que viveu nas primeiras décadas do pós-abolição, mas cuja liberdade não lhe garantiu cidadania. Com a performance a artista fez um duplo movimento de incorporação do nome e de excorporação de um rosto, agora visível.

 


As filhas de Eva, de Rosana Paulino, 2014. Cortesia da artista.

Em sentido diverso, Rosana Paulino (1967) usa a imagem de mulheres negras não identificadas, entre as quais a mulher de turbante, para compor As filha de Eva (2014), uma colagem na qual três pares de imagens evocam os esquemas de pensamento do racismo pretensamente cientifico do século 19. A mulher de turbante e seu duplo, uma silhueta preta, estão atrás de duas mudas de plantas diferentes entre si, abaixo delas os ossos de mãos humanas assinalam tanto a vontade de saber colonial de como os organismos vivos, entre os quais uma mulher negra, são, no nível estrutural, quanto os ossos lembram a banalização da morte de pessoas negras sob a escravidão. A falsa ciência do racismo, nos ensina Paulino, era capaz de suportar a diversidade de tipos botânicos, animais e minerais, jamais a diversidade humana.

Como na capa do livro de Abdias Nascimento, Rosana Paulino mantém a mulher não identificada como um documento histórico e, ao invés de fabular acerca de quem ela poderia ter sido, a artista aceita a escassez de informações sobre a retratada e a situa como uma coisa entre tantas outras na sociedade brasileira oitocentista.

 

3 – Uma busca na internet pelo termo “mulher de turbante” mostra não apenas o carté de visite do acervo do IMS. Ao refinar a busca, aparece uma variedade de apropriações contemporâneas da imagem original: ilustrações, colagem digital, releitura de feitio escolar, jogo de baralho, impressão em camiseta, em bótons, artesanato e banners que mereceriam não apenas reflexão mais detida, mas uma reunião em um único lugar dos produtos visuais gerados a partir desse retrato.

Para além dessa produtividade visual que multiplica e difunde a imagem matriz, as apropriações que encarnam ao retrato os nomes de Luísa Mahim, Maria Felipa e Dandara dos Palmares vieram para permanecer e, mesmo que arbitrárias, seguirão o fluxo do desejo de rosto para aquelas cujos nomes mais ou menos fictícios chegaram até o presente. Simultaneamente todas elas e nenhuma delas, o retrato da mulher de turbante em uso sugere que o objetivo de quem se apropria da imagem é restituir à retratada sua condição de pessoa roubada pela escravidão. Isso é feito basicamente pela adição de um nome com sobrenome acompanhado de dados biográficos mais ou menos factuais. Em uma escala de personificação, ou seja, que eleva uma pessoa coisificada à condição de pessoa plena, Luísa Mahim (século 19), a mãe do poeta, jornalista e advogado Luís Gama (1830-1882) é o nome que mais se repete associado ao rosto da mulher de turbante. Em seguida aparece Maria Felipa de Oliveira, marisqueira, heroína da Independência da Bahia que se sabe ter morrido em 1873. E, em menor escala, a não menos lendária Dandara dos Palmares, dita esposa de Zumbi que objetivamente não tem qualquer relação com o século 19. Luísa Mahim compõe a série Mulheres do Brasil (2019) da artista paulistana Yara Dewachter (1968), que já desenhou os rostos da deputada Érica Malunguinho, da escritora Pagu, da Marquesa de Santos, de Marielle Franco, e de Joência Wapichana, entre muitas outras.

A combinação entre esses três nomes em um único rosto fotográfico lembra uma observação de Ítalo Calvino, para quem a imagem de um rosto tem baixa densidade psicológica, pois ela é antes um produto social e histórico. A junção entre nomes sem rosto e rosto sem nome identificado abre precedentes para que a mulher de turbante receba com o tempo novos nomes, do mesmo modo que Mahim, Palmares e Oliveira tem também outras imagens em circulação associadas a seus nomes.

Finalmente, a mistura inventiva entre rosto e nomes arbitrários aponta para a criatividade implicada no processo de fabricação social de pessoas que pode envolver ritos de passagem como nascimento, aniversário e morte; alimentação e nutrição, intervenções corporais, roupas, nominação e, por que não, apropriações inventivas de imagens de acervo. ///

 

Alexandre Araujo Bispo (1973) é doutor em antropologia social, curador, crítico e educador independente.

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Mãe Stella de Oxóssi. ÒWE/Provérbios. África/Brasil. Salvador, Bahia, 2017.

Aline Montenegro Magalhães e Maria do Carmo Rainho: “A mulher negra de turbante, de Alberto Henschel” e “Produção, usos e apropriações de uma imagem: o processo de iconização da fotografia da mulher de turbante, de Alberto Henschel”.

Lorena Ferrez da Sila Telles. Libertas entre sobrados: mulheres negras e trabalho doméstico em São Paulo (1880-1920). São Paulo: Alameda, 2013.

Roland Barthes. A Câmara Clara. Lisboa, Edições 70, 2014.

Philipe Dubois. O ato fotográfico. Campinas: Papirus, 2008.

Carlo Ginzburg. Mitos, Emblemas, Sinais. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.

Miriam Moreira Leite. Retratos de Família: Leitura da Fotografia Histórica. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2001.

Monica Cardim. Identidade branca e diferença negra: Alberto Henschel e a representação do negro no Brasil do século XIX. Dissertação de mestrado em Estética e Historia da arte da Universidade de São Paulo, 2012.

Marisa de Carvalho Soares. “Nos atalhos da memória: monumento a Zumbi”. In: KNAUSS, Paulo (Org.). Cidade vaidosa: imagens urbanas do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: 7Letras, 1999.

Alexandre Araujo Bispo. “Próxima estação: mapas e margens do acesso às instituições culturais”. Revista Pivô, 2019, p.45-48.

Alexandre Araujo Bispo. “Receita para construir pessoas relevantes: Araújo, Caboré, Margarida, três Marias na encruzilhada da rememoração coletiva”. Catálogo da 2ª Mostra da 29ª edição do Programa de Exposições do Centro Cultural São Paulo, 2019, p.22-25.

A costura da memória. Catálogo da exposição exibida na Pinacoteca do Estado de São Paulo, 2018.

Duda Porto de Souza e Aryane Cararo. Extraordinárias mulheres que revolucionaram o Brasil. Seguinte, 2017.

Ítalo Calvino. Os amores difíceis. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.

 

 

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