Renan Teles: a fotografia como encontro
Publicado em: 28 de novembro de 2023Na série Esmeraldas não é Cohab porque tem elevador, o fotógrafo e artista visual Renan Teles estabelece diálogos entre o seu trabalho e a vida cotidiana do Conjunto Habitacional Esmeraldas, no bairro de Itaquera, região da zona leste de São Paulo. Iniciada em 2018, a série de Teles nos convida a observar as áreas de convivência, os interiores dos apartamentos, a paisagem do bairro. Além disso nos provoca a refletir sobre os modos de mediação para a produção da imagem fotográfica, indagando os processos de disputas conceituais, territoriais e sociais na configuração do processo urbano e as afetividades que a memória marca no contato com os lugares e seus modos de habitar.
O título da série faz menção à história da formação da região, que se destaca por ser umas das áreas mais populosas da cidade, abrigando alguns dos maiores conjuntos de moradias populares da cidade, as chamadas Cohab’s. Segundo o historiador Lucas Florêncio Costa, que tem se dedicado ao estudo da região, o bairro de Itaquera tem enorme importância na formação histórica da cidade. No entanto, sua menção ainda tem sido pouco evidente nas narrativas hegemônicas sobre a cidade, tanto do ponto de vista histórico como do artístico-cultural. Com a concentração do poder econômico ligado aos bairros de elite, concentrados, principalmente, nas zona centrais e extensões próximas, as chamadas bordas periféricas ficaram praticamente ausentes no discurso ligado à formação da cidade. Ou quando aparecem, são postos como “problemas sociais e urbanos”, o que desconsidera suas contribuições, saberes e subjetividades humanas para além das dificuldades.
Sabe-se que a região de Itaquera foi ocupada por populações indígenas, como os Guaianás, cuja memória se mantém viva em ações como a do Jongo dos Guaianás, grupo que une marcas culturais indígenas e afro-brasileiras na região. No período colonial, a região era estância de pouso na passagem de viajantes. Entre o século 19 e início do 20, acomodou idílicas chácaras de veraneio da elite, que passeava por lá aos finais de semana e durante as férias. Por volta da década de 1950, a região vivenciou um alto crescimento populacional, modificando a sua paisagem bucólica e rural, transformando suas terras em novas zonas de loteamento urbano.
Com o crescimento desordenado e a falta de políticas públicas direcionadas às populações de baixa renda, por volta de 1970, Itaquera já era um dos bairros mais populosos da cidade. O que motivou o início do processo de construção dos Conjuntos Habitacionais (Cohab’s): vastos agrupamentos de edifícios com apartamentos de baixo custo. Foram criadas as Cohab’s Itaquera I – Arthur Alvim e Itaquera II – Jardim Bonifácio (também conhecidas por Cohab 1 e 2, respectivamente). Segundo Costa, em conversa realizada especialmente para a escrita deste texto, a Cohab tem como princípio a garantia do poder público em oferecer moradias a preços acessíveis, destinados, principalmente, às populações financeiramente desfavorecidas. No entanto, apesar de contar com o envolvimento de equipes formadas para planejar e garantir espaços de bem viver, geralmente, a infraestrutura oferecida por esses projetos prevêem o mínimo, sem assegurar necessidades básicas para bem viver, como ambientes de lazer, educação, saúde, cultura, entre outros.
Para o pesquisador, esse imaginário é favorecido pela falsa ideia de que cabe às populações de classes sociais baixas o trabalho exaustivo nos grandes centros, sendo o uso de suas casas apenas para dormir, anulando suas formas de vida subjetiva. Além disso, criou-se um estigma social direcionado à Cohab e seus habitantes, que são constantemente estereotipados e socialmente marcados dentro de noções hierarquizantes do poder financeiro. Não à toa, quando o Conjunto Habitacional Esmeraldas é construído, por volta de 1980, próximo a região da Cohab I- Artur Alvim, seus moradores buscaram se afastar da imagem projetada sobre as Cohab’s, acreditando que desse modo alcançariam distinção social e econômica.
No caso do Esmeraldas, o fato de seus blocos terem elevador foi visto como artifício de diferenciação. Renan Teles, cujos pais se mudaram para o Esmeraldas antes de seu nascimento, cresceu ouvindo tal discurso. O artista conta que se questionava sobre o papel do elevador e porque isso trazia distinção entre seus vizinhos moradores do Esmeraldas e das demais Cohab’s. Guiado por essas perguntas e inquietações, Teles decidiu se aprofundar na história do bairro, em suas formas de ocupação e trajetórias de vida. Em 2018, com o projeto Fotografia Popular Brasileira, que debate a imagem fotográfica a partir de elementos presentes nas camadas populacionais não elitistas financeiramente, o artista passou a usar a fotografia como ferramenta de ensino e criação, oferecendo oficinas e cursos livres dentro do Conjunto Habitacional Esmeraldas. Com esses encontros, gerou aprendizado e relações entre ele e os vizinhos. Os espaços comuns se tornaram cenários para algumas imagens, e a série um caminho para adentrar nas individualidades e subjetividades que compõem o Esmeraldas. Teles nos conta que a realização das imagens dependeu de negociações e dos interesses das pessoas, uma tentativa de manter um equilibrio entre as escolhas delas e e as suas.
Se entendendo como educador, Teles lançava perguntas à fotografia: O que ela nos mostra e como nos mostra? Quais as mediações realizadas entre seus elementos, a cidade e seus habitantes? Quais os desejos que isso implica? Assim, ele observava as movimentações internas e externas do Esmeraldas. Em Noite de pizza (2021), um grupo de adolescentes ocupa uma praça para conversar e ouvir música. Sobre tal foto, Teles comenta: “essa fotografia surgiu com a ideia de recontar algo que aconteceu anos antes, quando um garoto comprou pizza de surpresa para os amigos que sempre ficavam conversando ali no patio. Então eu comprei essas pizzas pra gente comer juntos no pátio, algo incomum, mas relembrando o gesto carinhoso desse garoto anos atrás. Neste trabalho retorno à ideia de que um encontro como obra de arte relacional vira matéria prima para uma obra em fotografia. Conceitualmente, ela ativa uma comunidade ao se sugerir um evento, no caso reviver um acontecimento local, e então fotografá-lo em uma imagem narrativa como cena de um quadro vivo.”
O privado do lares também ganhou espaço na série. Em um processo de respeito às relações e as imagens, o artista adentrou ambientes privados dos apartamentos, apresentando seus distintos cômodos e modos de ocupação, atravessando o doméstico para torná-lo um ambiente compartilhado. Uma das imagens emblemáticas dessa etapa é a de Eduardo Formiguinha (2019), sobre a qual Teles discorre: “Me interessa a beleza no retrato de Eduardo Formiguinha. Durante essa tarde abrimos seu guarda-roupas e trocamos as cobertas e suas roupas até chegar essa composição de cores e estampas. Essa relação de cores e materiais da cena, em contraste com muitas linhas e grafismos”.
A relação de Renan Teles com o Conjunto Habitacional Esmeraldas é também uma investigação sobre si. Junto às imagens, o artista traz lembranças de sua vida, dos diversos momentos de sua infância, dos saberes descobertos nas andanças entre corredores e blocos do conjunto, das memórias guardadas em sua cabeça e nos álbuns familiares. Retomando sua vivência, ele comenta: “Deve ser coincidência, mas aqui no Esmeraldas já teve cinco apartamentos da minha família: eu com meus pais e mais um irmão, meu irmão mais velho alugou um quando casou, dois primos alugaram mais dois e os pais deles alugaram o deles na Ponte Rasa, para viverem aqui onde os filhos estavam”.
A série foi apresentada em exposições individuais, sendo uma delas realizada nas dependências do próprio Conjunto Habitacional Esmeraldas, com vernissage e visita mediada entre Teles e os moradores. Até o início de 2023, o ateliê do artista ficava nas dependências do Esmeraldas, reafirmando ali o seu local de trabalho, criação e ocupação. No entanto, sua decisão implicou lidar com diversos transtornos que revelam e reforçam as disparidades no sistema das artes e o pensamento desigual para a cidade. Em uma das exposições para qual o artista foi convidado, a empresa de transporte contratada se recusou a fazer a retirada do material em seu endereço por considerá-lo fora da área de cobertura de atendimento.
São inúmeros também os relatos de Teles sobre a recusa de convites para visitar o ateliê vindas de curadores, pesquisadores e outros artistas, por considerarem a região longe ou de “difícil acesso”, mesmo estando a poucos metros de duas estações de metrô, Arthur Alvim e Itaquera, e mesmo assim, sendo “imprópria” para a manutenção de um ateliê de arte. Não por acaso, ao mudar o ateliê para a zona oeste da cidade, dividindo uma sala da Funarte com o coletivo Vilanismo, o artista percebeu que as visitas aumentaram. Diante disso, pergunto: Porque a zona leste não é vista como um lugar de criação, reflexão e exibição do circuito das artes? Porque o Esmeraldas não é o lugar de um ateliê de artista? Porque a população do Esmeraldas e das demais Cohab’s não possuem vastas presenças de museus e galerias de arte próximas?
Ainda segundo Lucas Florêncio, é fundamental rever a história das regiões periféricas com olhares questionadores, emancipatórios e de não subjugação de seus moradores. Nesse caminho, em 2019, o Grupo Ururay, coletivo de pesquisadores ligados à pesquisa patrimonial da zona leste e do qual Costa foi integrante, lançou o livro 40 anos de Cohab I, apresentando cuidadosamente o rastro do tempo e da vida que tem sido construída neste lado da cidade. Outro caso que contrapõe essa contra-narrativa é a Galeria Okupação Cultural Coragem, uma sala de comércio da Cohab 2 que ficou abandonada por mais de 15 anos e foi transformada em espaço de cultura e arte por um coletivo de artistas e moradores, organizando exposições, cursos, oficinas e ateliês livres. O trabalho de Renan Teles faz da fotografia plataforma para pensar a cidade, a sociedade, composição, escolhas e processos educacionais. Tornar o Esmeraldas galeria de si, revela o quê o faz lugar de vida. Provavelmente, após este trabalho, a marcação da distinção do Esmeraldas não esteja mais em um elevador, mas no modo que cada sujeito faz de sua morada um direito de vida. Talvez, com isso, seus moradores não tenham mais que se afastar da nomeação Cohab, mas ressignificá-la, compreendendo que ali se faz um importante espaço na história da cidade, das artes e da existência humana. ///
Fotos gentilmente cedidas por Renan Teles
Luciara Ribeiro (Xique-xique, BA, 1989) é professora e curadora, mestra em história da arte pela Universidade de Salamanca, na Espanha, e pelo Programa de Pós-Graduação em História da Arte pela Universidade Federal de São Paulo. Foi curadora da exposição Sidney Amaral, um espelho na história (Galeria Almeida & Dale, 2022).