Entrevistas

Olhar desviado

Anna Ortega & Daniele Espinosa Publicado em: 24 de maio de 2023

Assim como meu pai, que está nos céus, da série Eu não conheço Deus, de Daniele Espinosa, 2019-2023

Aos 18 anos, a fotógrafa gaúcha Daniele Espinosa (25) rompeu com a Assembleia de Deus. Mas ter vivido mais da metade de sua vida nos bancos da igreja a levou para uma questão: É possível romper também com as imagens desse tempo?

Parecia difícil: como o pai era pastor e a mãe cristã, ao abrir os álbuns de fotografia da família a questão religiosa estava sempre presente. Ao andar pelo bairro onde mora, na zona norte de Porto Alegre, a predominância da igreja evangélica também chamava sua atenção. Daniele, cujo nome significa ‘Deus é meu juiz’, percebeu que sua história estava profundamente vinculada à religiosidade. Decidiu, então, que a partir da fotografia, olharia diretamente para essas relações.

Na série Eu Não Conheço Deus, iniciada em 2019, a fotógrafa parte de marcas pessoais, mas também esbarra em questões históricas, sociais e políticas que atravessam o tema. No processo, ela encontra e retrata pessoas, na maioria jovens, que se afastaram da igreja.

Nesta articulação entre memórias pessoais e compartilhadas, vemos a artista, hoje com o cabelo raspado, em um dos autorretratos que compõem a série. Daniele é um contraponto à própria visualidade da igreja. Ao mesmo tempo, exibe uma cobra tatuada em sua cabeça. Estes dois mundos que coexistem, da crítica e da permanência, são estruturantes em seu trabalho fotográfico.

Foto da série Eu não conheço Deus, de Daniele Espinosa, 2019-2023

Como começou o seu interesse pela fotografia?

Daniele Espinosa: Desde adolescente sempre gostei de fotografia, mas não sabia o que eu queria registrar. Comecei fotografando pelo meu bairro, Passo das Pedras, na Zona Norte de Porto Alegre. Andava por lá e, na volta, no Rubem Berta, na Leopoldina. Nisso, fui percebendo que eu sempre fotografava coisas que tinham símbolos religiosos, não necessariamente cristãos. Vi que esse era um tema que me chamava atenção.

A sua série Eu não conheço Deus parece nascer de uma perspectiva bastante pessoal. Como surgiu a ideia de utilizar a fotografia para estruturar essa narrativa?

DE: Meu afastamento da igreja foi com uns 15 anos, quando comecei a me envolver com a militância social. Já estava conhecendo outras respostas, de certa forma, para as coisas. Com 18 anos, me autorizei a fazer algumas escolhas, e eu já estava com o pé fora da igreja.

Comecei o projeto em 2019, a partir de uma inquietação de perceber que, por muito tempo, eu era aquela pessoa que dizia ‘se fui crente não lembro’, sabe? Depois de mais adulta, percebi que tinha muita coisa da igreja em mim. Comecei a fotografar com a ideia de fazer um caminho de volta, mais equilibrado, onde eu pudesse olhar para o que me fez mal, mas também para outras coisas – até da imagem, porque ler a bíblia produziu muitas imagens na minha cabeça durante a vida. Tu lê os textos e fica imaginando. Acho que, a partir da fotografia, quis buscar quem eu sou no meio disso. 

É interessante pensar sobre os símbolos, porque algumas igrejas reformadas nem utilizam mais a cruz. Ao mesmo tempo que não existem esses elementos visuais, tem muito a coisa performática do movimento pentecostal. Todo mundo já passou por uma igreja, ouviu o som alto, as pessoas cantando, os choros, tudo é muito emocional. Até a questão da roupa, principalmente no início dos anos 2000. Dava para identificar quem era crente pelo cabelão, a saia no pé – muitas marcações visuais.

Meu pai era pastor e ele faleceu durante o processo do trabalho. A questão da história da minha família, a partir daí, também ganhou outro lugar no projeto. Comecei a ver que eu não conseguia pensar na história do meu núcleo familiar sem a religião, porque uma coisa se alinhava muito na outra. Meus pais se conheceram porque os dois eram crentes, então tudo aconteceu muito em volta desse tema, desde o início.

Você lembra qual foi a primeira fotografia que fez para a série?

DE: Eu lembro de fazer uma foto que nem está mais no corpo do trabalho, de madeiras no chão, com pregos atravessados. Foi uma imagem que fiz caminhando pelo meu bairro. Me chamou atenção, e, por me remeter à religiosidade, deu um start para fotografar mais.

Os retratos são um ponto forte do seu trabalho. Quem são essas pessoas? Qual é a sua relação com elas?

DE: Eu lembro que eu estava fazendo um retrato de um casal de amigues e que nem era para a série. É aquela foto que tem uma pessoa deitada no colo de outra, que se chama Calira. Em algum momento, contei que estava fazendo esse trabalho sobre a religiosidade e, de repente, elu começou a falar que tinha uma experiência muito parecida com a minha.

Depois, descobri muitas outras pessoas que eu não imaginava que já tinham sido crentes, que também não ‘aparentavam’ ou falavam sobre o assunto. Dentro da igreja, tem um nome para quem sai, que é ‘desviado’. É muito louco, porque tu toma uma ‘pecha’, é taxativo, é algo que tu ‘é’. Eu fiquei curiosa com o que poderia vir disso. É interessante, não só o momento das fotos, mas as conversas que tenho gravadas também.

Consigo reconhecer alguns conflitos nessas pessoas que já foram ou são fortes para mim. É também como me olhar. E muitas impressões são diferentes das que eu tive. Vão trazendo outras coisas para o trabalho, que me ajudam a pensar também para além de mim.

Como você escolhe o lugar onde serão ambientados os retratos? Parecem acontecer sempre em espaços internos, e também trazem uma impressão de proximidade

DE: Sempre procuro fazer na casa delas, porque, enfim, é geralmente o lugar mais confortável, onde a pessoa se sente à vontade e consegue conversar. O tema sempre traz questões muito pessoais, então acho que se os retratos fossem em lugares públicos não fluiriam tão bem.

Escuto relatos fortes, como o de uma pessoa que fotografei que é bem ativa politicamente, de esquerda, e que me falou que, depois que o posicionamento dela ficou mais evidente, era quase como se ela não existisse mais para a própria família.

A questão do ouvir sempre fez parte da minha vida. Como meu pai era pastor, muitas pessoas iam para minha casa pedir conselho, oração, trazer os problemas. De alguma forma, eu estava sempre escutando, ligadíssima, mesmo criança. E no caso dos retratos, por mais que eu esteja mais escutando a pessoa, sempre vira uma conversa.

Eu acho que fotografo pessoas mais jovens por serem as que eu tenho contato. E percebi que todas as meninas que fotografei eram LGBTQIA+. Ainda não elaborei algo em relação a isso, mas é uma questão que tenho vontade de tratar no trabalho. Também tenho interesse em fotografar pessoas que entram e saem da igreja a vida inteira, porque é um movimento muito comum.

O seu trabalho também acessa imagens de arquivo relacionadas ao neopentecostalismo. Onde você tem encontrado essas fotografias? O que mais chamou sua atenção?

DE: O início do trabalho com arquivo foi aquele clássico ‘mexer nas fotos de família’. Só que daí, percebi algo que eu já fazia ideia, o quanto todas as coisas da minha vida e toda história da minha família envolviam a igreja. As imagens começaram a me interessar, porque também marcavam uma passagem dos anos 90 para os 2000. De alguma forma, eu pude acompanhar toda a formação do movimento pentecostal, e do encaminhamento para o que é hoje, dentro do arquivo da minha família.

Nas fotos, encontrei até imagens de um congresso, chamado Gideões Missionários, em Santa Catarina, que foi o congresso de onde saíram todas aquelas figuras que não prestam, como Silas Malafaia e Marco Feliciano. E tem lá fotos da minha família, meus pais novinhos, era uma coisa muito diferente, e as pessoas não eram conhecidas. Então, olhar é também se dar conta da correspondência de eventos pessoais e históricos, que acontecem dentro da caixa de fotos da minha casa.

Eu também procurei no arquivo de outras pessoas, até da igreja que eu frequentei. Achei novas imagens interessantes, de pessoas mais velhas que estavam lá desde jovens, e percebi que nesses arquivos está a história do meu bairro e de outros, como o Mário Quintana, que é Zona Norte e quebrada também. O arquivo me traz uma dimensão histórica, social, e reafirma algumas coisas que antes eram sensações para mim.

Meu pai me ajudou muito. Uma coisa muito legal é que a gente sempre esteve se interessando pelos mesmos temas, mas por caminhos diferentes. Enquanto ele estava vivo, eu já estava produzindo a série, e ele me indicou até bibliografias para estudar. Ele entendeu que minha questão não era odiar ou não a igreja, mas visualizar a minha experiência dentro. Meu pai sabia que eu estava fazendo algo honesto, com as minhas críticas, mas de uma maneira respeitosa com a minha história.

Eu sempre quis pesquisar, além de fotografar, porque dentro da igreja está também a classe trabalhadora, as pessoas pobres, pretas, todas as minorias que a gente diz se importar, mas quando é crente ‘esquece’. Tem um pesquisador que gosto muito, o Gedeon Alencar, que eu sempre volto para pensar questões históricas e sociais do trabalho. A minha experiência religiosa está muito permeada por uma questão de classe, então me interessa pensar sobre isso também.

Eu não conheço Deus. Como surgiu esse título?

DE: Muitas vezes, na Igreja, quando surgia algum questionamento da fé ou até questões teológicas simples, a resposta que eu sempre escutava era: ‘tu tem dúvida disso, porque tu não conheceu Deus de verdade’. Qualquer ‘por que?’ que eu fazia, a resposta era essa. Eu assumi a dúvida no título da série. Se fazer perguntas é não conhecer a Deus de verdade, então eu não conheço.  E essa resposta não era tanto da minha família, que sempre estudou muito sobre, mas sim de líderes e pessoas da Igreja, no geral. Também acho que se refere a um contato religioso institucional, porque não nego as coisas do sobrenatural, jamais.

Como é o seu processo de descobrir quais imagens quer fazer?

DE: Vem muita da escrita. Depois de escrever, ficar viajando, faço listas de coisas que eu quero fotografar. Vou testando, vendo o que fica bom e o que dá para incorporar ao trabalho. Acho que minha relação com a imagem passa muito por me lembrar de histórias, e até pregações, de músicas que eu escutava.

No seu trabalho mais recente, você se insere dentro das fotografias. Em um lugar bastante forte visualmente que é do púlpito, daquele que prega. Como foi para você fazer essa imagem?

DE: Já me perguntaram se eu fiquei careca por conta da Igreja, mas conscientemente não foi. Só que, ao mesmo tempo, eu utilizei isso no autorretrato, porque ali sou uma mulher sem cabelo – esse símbolo de feminilidade tão forte nesse contexto – que está no púlpito. O autorretrato, junto a um vídeo que fiz da minha mãe cantando, é um desdobramento do trabalho sobre Frida Vingren, que foi a esposa de um dos missionários que fundaram a Assembleia de Deus no Brasil [Gunnar Vingren]. Ela foi uma mulher notável para a época e que desempenhava funções dentro da igreja que até hoje mulheres não fazem. Depois que esse missionário morre, ela tenta seguir atuando. Mas tiram os seus filhos, e ela acaba em um hospício.

Existe um hinário com mais de 30 músicas compostas por ela, músicas que eu sempre ouvi minha mãe cantando e a gente nem sabia da origem. Quando eu me deparei com a história dela, quis trazer como um desdobramento da série. Pensando sobre a Frida, entendi que mesmo se eu fosse cristã, ainda teria coisas que eu não poderia fazer. 

E outra questão, que surgiu depois que meu pai faleceu, é que a imagem mais forte que tenho dele é no púlpito. O título desse autorretrato é Assim como meu pai, que está nos céus, que é como Jesus se refere a Deus em alguns textos da Bíblia, e também sobre minha relação familiar. Foi uma forma de me colocar tanto em relação à memória do meu pai, da imagem dele, quanto da Frida, que fazia coisas que os homens faziam.

Foto da série Eu não conheço Deus, de Daniele Espinosa, 2019-2023

Que artistas ou fotógrafes influenciam o seu olhar?

DE: Gosto muito da Latoya Ruby Frazier, porque ela trabalha tanto a questão da família, quanto do autorretrato. Ela me inspira também porque as imagens trazem um recorte de classe, da periferia dos Estados Unidos. Outra pessoa é o André Penteado, porque ele trata de questões históricas, e me faz refletir sobre como falar de mim, sem esquecer as questões sociais.

Para onde você deseja seguir com o trabalho? O que te inquieta hoje?

DE: Acho que eu sigo procurando respostas sobre para onde eu caminho em relação à fé, porque não deixei de ter fé. Também produzo como uma forma de organizar isso tudo dentro de mim. Uma vez me falaram que eu tinha um projeto para uma vida inteira, e eu fiquei com um pouco de medo. Acho possível, porque quanto mais eu procuro, mais janelas se abrem.

Como é meu primeiro trabalho autoral, também estou encontrando meu fazer enquanto artista. O vídeo já é algo diferente que tenho começado a trabalhar. O que me inquieta hoje é que estou tentando fazer uma foto, que ainda não consegui, de vários cabelos em linha reta. Comprei apliques e estou testando. Tem um dos textos que a Frida escreveu que diz “todos os meus fios de cabelo são contados”. A questão do cabelo tem um desdobramento estético que me interessa, porque também me leva para minha adolescência, onde era uma ostentação para as gurias da igreja ter um cabelão. Eu nunca consegui ter um cabelo muito grande, mas tenho lembrado desses momentos. ///

Anna Ortega é repórter, interessada na escuta e escrita de processos artísticos. Trabalha com jornalismo cultural e cobre temas relacionados a direitos humanos e educação. É também artista e fotógrafa.

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