O filme como fotolivro
Publicado em: 26 de outubro de 2022Shadow Over Shadow não é uma homenagem ao cinema noir (embora seja isso também); não é um storyboard ou uma fotonovela. Para além de uma história policial contada com imagens de arquivo e textos que formam um roteiro lacunar, o que o novo livro de Vitor Casemiro articula é a própria experiência do cinema.
“Aqui está um mundo onde é sempre noite, sempre nublado e úmido, cheio de tiros e soluços, onde os homens usam chapéus com abas viradas para baixo e as mulheres surgem em casacos de pele, armas enfiadas nos bolsos… E acima de tudo, sombra sobre sombra sobre sombra.” Mais do que aludir à narrativa, na epígrafe do livro, Casemiro está preocupado em construir uma atmosfera, ou seja, um clima que acompanhe o espectador na passagem das páginas/cenas. Não é ocasional que a citação remeta a quase todos os sentidos quando fala em um mundo escuro e nublado (visão), úmido (tato e olfato) e cheio de tiros e soluços (audição) – e talvez não seja exagero ler nas entrelinhas o gosto de sangue. Incorporando diversas tendências do fotolivro contemporâneo, como o uso instrumental de fotografias documentais na construção de narrativas ficcionais e o cinema como modelo de uma experiência calcada na duração (e não no “instante decisivo” do clique fotográfico), Shadow Over Shadow é uma obra sinestésica.
Com formação em roteiro, Casemiro pesquisou os clichês e convenções de gênero do cinema policial dos anos 1940 – uma predileção pessoal. O autor, então, criou uma elusiva história de crime com personagens e cenários clássicos do gênero, representados por imagens de arquivo da época. Um detetive, uma mulher fatal e um boxeador se perdem por entre becos e hotéis baratos, numa iconografia que inclui cigarros, escadas, revolveres e fachadas de neon piscante. O universo noir construído pelas imagens e os textos toma a forma de uma brochura encadernada com bailarinas, nos moldes de um roteiro de cinema, com capa mole de cor chamativa.
A obra foi ganhadora do Fotobookfestival Kassel Dummy Awards, importante concurso de bonecos de fotolivros, da Alemanha, e vai ser produzida e lançada entre o fim deste ano e o início de 2023. Nesta entrevista, Casemiro nos guia no seu trajeto do cinema ao fotolivro.
Como surgiu a ideia para o projeto, e como você decidiu que ele tinha que ser um livro de fotografias?
Vitor Casemiro: Eu sempre quis fazer um filme noir. Um filme sombrio com um detetive e um caso a ser solucionado. Quando criança, via desenhos como As aventuras de Tintim e jogava Onde está Carmen Sandiego?, gosto de um certo tipo de história onde você acompanha uma investigação e também aprende sobre um lugar e uma cultura diferente. Segui lendo e assistindo histórias de detetive, de Conan Doyle a Guy Ritchie, de Boardwalk Empire a L.A. Noire.
Meus pais foram influências importantes também. Minha mãe fez um curso de detetive no fim dos anos 1980, acabou não seguindo na profissão, mas se tornou fotógrafa. Com meu pai, via muitos seriados investigativos, como Arquivo X e CSI. Também admiro e me inspiro na fotografia forense e no fotojornalismo dos anos 1940, como as fotos de Weegee (Arthur Fellig). A luz dura do flash refletida na calçada, um corpo talvez ainda quente esperando o rabecão, uma dúzia de cidadãos curiosos e uns poucos policiais desinteressados, esse tipo de imagem.
Comecei a me interessar por fotolivros há mais ou menos cinco anos, durante o curso Possibilidades narrativas em fotolivros, do fotógrafo e editor Felipe Abreu. A chamada do curso prometia “aproximações entre cinema e fotografia”, e isso me pegou, pois eu já vinha estudando cinema e fotografia de forma independente desde 2010, mas não conhecia muito sobre fotolivros, achava que o livro de fotografias era apenas um receptáculo para um conjunto de imagens, uma coleção. Aprendi que o fotolivro é uma obra em si, como um filme ou uma escultura. Então, não demorou muito para associar a linguagem dos fotolivros à linguagem do cinema. Finalmente, poderia fazer os filmes que gostaria, só que em forma de livro.
Que aproximações você enxerga entre o filme e o livro de fotografias?
VC: Tem uma frase de Orson Welles de que gosto muito: “As imagens por si sós não são suficientes; são muito importantes, mas não passam de imagens. O essencial é a duração de cada imagem, o que se segue a cada imagem: é toda a eloquência do cinema que se fabrica na sala de montagem.” A mesma lógica se aplica aos fotolivros. Passei um ano juntando imagens de um arquivo público, feitas ao longo de 30 anos, por autores diferentes, em contextos diferentes, mas que, através da montagem, da edição, habitam agora o mesmo mundo com um novo sentido.
Os estudos dos cineastas soviéticos sobre a montagem cinematográfica apontam caminhos para entender melhor as conexões feitas entre fotografias colocadas em sequência em um livro. A grande conclusão deles foi a mesma de Welles: o que torna o cinema único é a montagem, o encadeamento de planos que cria uma mensagem nova e mais complexa do que sua apresentação fragmentada. A pesquisadora Ana Paula Vitório fala disso na sua tese Fotolivro como montagem: fenômenos de justaposição eisensteiniana (2020).
Uma diferença interessante entre a narrativa cinematográfica e a dos fotolivros é que no cinema o espectador é passivo, ele lida com uma duração da imagem pré-estabelecida. Já o livro é mais maleável, o leitor é o responsável pelo tempo que será empreendido na passagem de páginas. Em alguns casos, o leitor pode até montar uma nova sequência de imagens, criando novos sentidos.
Fale um pouco do processo de edição do SOS. O que vem primeiro, as fotos ou o texto, e como você os relaciona?
VC: Comecei pesquisando imagens na coleção digital da Biblioteca do Congresso dos Estados Unidos, uma das maiores do mundo, com mais de um milhão de fotografias online. Procurei especificamente por imagens feitas nos Estados Unidos entre as décadas de 1930 e 1960, que possuíam os clichês e as convenções de gênero noir. Fotografias de lugares como o ringue de boxe, o beco, a sala de interrogatório, o clube de jazz e o hotel barato. E de personagens como “o lutador” – homem cínico e calado, sempre tentando fugir do passado –, que representa o homem comum; e “o detetive” – sempre fumando, chapéu Fedora e sobretudo.
Buscava imagens para construir uma atmosfera: a sombra da veneziana que aprisiona os personagens, a fumaça dos cigarros que distorce a visão; um clima lânguido e sensual. O noir é um gênero bem sexy, sexy e sexista, é claro. A “mulher fatal”, por exemplo, é uma personagem muito complexa, ao mesmo tempo uma fantasia do olhar masculino e um símbolo da libertação das mulheres. Ela representa as mulheres que começaram a trabalhar durante a Segunda Guerra e todo o temor masculino de perder o emprego e seu lugar de privilégio.
Depois de nove meses garimpando imagens, selecionei e imprimi pouco mais de 500 fotografias e comecei a colocá-las na parede, tentando criar uma estrutura e um ritmo. Esse momento da edição para mim tem muito a ver com a música, e algo que gosto de fazer é criar uma playlist com o clima da narrativa que estou construindo.
Sobre os textos, grande parte são trechos de cenas que eu escrevi quando estudava roteiro; cenas que planejava filmar em curtas-metragens. Mas também me apropriei de diálogos de outros filmes e misturei tudo durante a edição com as imagens.
Essa foi a parte mais difícil do trabalho, encontrar o equilíbrio entre imagem e texto. No começo da edição, o roteiro preenchia a folha toda, frente e verso. Mostrando o trabalho para algumas pessoas, percebi que essa quantidade de texto deixava o livro com um ritmo muito lento, maçante. Decidi cortar vários trechos e deixar somente o essencial. Continuei mostrando o trabalho para algumas pessoas e as reações foram melhores. É sempre um desafio para o editor encontrar o ritmo certo de um livro.
Em que estágio do processo o livro vira um objeto?
VC: A pesquisa de materiais se deu logo no início da construção conceitual do livro. Antes mesmo de pesquisar imagens, eu já sabia que ele deveria ter o formato de um roteiro de cinema. Mais adiante, quando comecei a montar os primeiros bonecos, novas camadas foram acrescentadas, como a variação de papéis. O design foi sendo definido aos poucos, junto com o diretor de arte Mateus Acioli. A tipografia é uma variação moderna de uma máquina de escrever da década de 1940. Para a capa, nos inspiramos muito nos letreiros de posters de filmes B dos anos 1940 e 1950, grandes e chamativos, com um apelo sensacionalista para atrair o público.
Você colhe muitas referências estéticas da ficção literária e cinematográfica, escreve um roteiro original, mas resolve usar como fonte fotografias documentais de um arquivo público. Por quê? Qual é a relação entre a ficção e a fotografia documental hoje, especialmente nos fotolivros?
VC: De Bayard a Fontcuberta, os limites entre realidade e ficção sempre foram um dos principais temas da fotografia. A imagem fotográfica precisa de algo para apresentar; algo para ser fotografado, mas, ao mesmo tempo, após a criação da imagem, o objeto deixa de ser real, passa a ser representação.
No livro Afronautas (Autopublicado, 2012), da fotógrafa espanhola Cristina De Middel, acompanhamos a história de Edward Makuka, um professor de ciências da Zâmbia que decidiu treinar a primeira tripulação africana a viajar para a lua. No livro, de Middel mistura suas próprias fotografias com imagens de arquivo, documentos, desenhos técnicos e mapas, materiais que juntos ajudam a construir a verossimilhança da narrativa. Essa é uma tendência nos fotolivros contemporâneos: a imagem fotográfica parece estar sempre atrelada a outros materiais para transmitir sua conexão com a verdade.
No SOS, escolhi trabalhar com um arquivo público para me concentrar primordialmente na criação de novos significados para um universo fotográfico específico. Também uso estratégias para manter a suspensão da descrença, por exemplo, nenhuma imagem poderia ter alguém olhando diretamente para a câmera, evitando assim quebrar da “quarta parede” (fronteira invisível entre a obra e o público).
Como brasileiro, te causou algum conflito fazer um livro todo em inglês?
VC: Desde o começo da pesquisa, eu já sabia que o texto deveria ser em inglês. Mas, mesmo com essa certeza, houve conflitos, sim. Conversei com colegas que questionaram o sentido de publicar um livro em inglês no Brasil. Para mim, era óbvio: o roteiro hollywoodiano é praticamente uma instituição estadunidense, com todas as suas convenções e regras de formatação. O filme noir, por sua vez, deriva da literatura hardboiled, que floresceu durante a lei seca e a Grande Depressão nos Estados Unidos.
Pretendo produzir um pequeno caderno anexo ao livro com a tradução do roteiro em português. Mas penso também que o livro pode funcionar independentemente do texto; tentei montá-lo de forma que o leitor possa se guiar apenas pelas imagens se assim preferir. ///
Vitor Casemiro (Campinas-SP, 1992) é um roteirista que fotografa. Desde 2010 pesquisando narrativas visuais, encontrou no fotolivro uma conexão entre fotografia e cinema. Atua como editor no Selo Turvo e é membro da Havaiana Papers, plataforma de distribuição para publicações latino-americanas. Seu primeiro livro, Noites Desperdiçadas (Madalena, 2018), foi selecionado como destaque na convocatória de fotolivros do Festival ZUM.
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