Man Ray: Paris é uma festa
Publicado em: 23 de agosto de 2019
Ao chegar a Paris em 1921, o artista americano Man Ray (nascido Emmanuel Radnitzky, 1890-1976) ficou fascinado com a cidade. “Mesmo os bairros mais sórdidos pareciam pitorescos”, escreveu em Autorretrato (1963). As construções baixas lhe faziam sentir mais alto — Nova York, de onde viera, lhe diminuía.
Embora tivesse planos de visitar museus e ver as pinturas originais que vira em livros em seus dias de estudante, dez anos se passariam até que finalmente visitasse o Louvre. “Eu estava tão ocupado com meu trabalho e com as atividades dos dadaístas e dos surrealistas que me faltava tempo e interesse pelos museus”, lembra.
Paris era uma cidade artisticamente vibrante nos anos 1920. Para artistas e escritores americanos e de toda a Europa — a lista é extensa, e inclui Gertrude Stein e Pablo Picasso, Ezra Pound e James Joyce, Lee Miller e Arnold Schoenberg, entre muitos outros — um período produtivo em Paris era uma etapa obrigatória da carreira. Frustrado com o meio de arte nova-iorquino, Man Ray aceitou o convite de seu amigo Marcel Duchamp e cruzou o Atlântico em busca de um ambiente mais afeito às suas inquietações artísticas.
Paris faria de Man Ray a figura que ele se tornou. Lá se envolveu simultaneamente nos principais círculos artísticos e intelectuais das primeiras décadas do século 20 — cubismo, dadaísmo, surrealismo, modernismo literário —, com a alta sociedade e, o que lhe garantiria fama e dinheiro, foi pioneiro no emergente mercado da fotografia de moda e das revistas femininas.
Man Ray em Paris, em cartaz no CCBB São Paulo, reúne 250 obras realizadas no longo período parisiense do artista. O foco da exposição é a variada produção fotográfica de Man Ray, das cenas de rua de Paris no estilo de Eugène Atget (a quem, segundo consta, Man Ray descobriu e ajudou a promover) às suas rayografias e solarizações (técnicas de estúdio que desenvolveu e que seriam elemento fundamental do vocabulário imagético surrealista) até seus nus, passando por retratos de colegas artistas e escritores e figuras da aristocracia da cidade.
A revista ZUM conversou com Emmanuelle de l’Ecotais, autora de Man Ray: a fotografia e seu duplo (1998) e curadora da exposição. Leia abaixo a entrevista.
Como Paris moldou Man Ray enquanto artista?
Em Paris Man Ray conseguiu finalmente se sentir artisticamente livre, e conviver com pessoas que compartilhavam seus interesses artísticos. Em Nova York ele estava bastante isolado, lá ele só tinha Marcel Duchamp, os dois únicos membros do movimento dada local, que era pequeno e sem reconhecimento, em um ambiente pouco receptivo. Ficou bastante claro que se quisessem explorar e desenvolver seus interesses estéticos, e o dadaísmo em especial, teriam que ir para a Europa, o que significava, à época, Paris.
Em poucos anos, o movimento Dada se desdobraria no Surrealismo. Man Ray chegou a Paris no final de 1921, e seis meses depois inventou a rayografia (técnica que consiste em colocar objetos diretamente sobre material sensível à luz e expor o conjunto à luz). A criação foi fundamental para o movimento surrealista. Em 1920 André Breton havia publicado Os campos magnéticos (1920). Em 1922 Man Ray publica, com o poeta Tristan Tzara, Os campos deliciosos. O livro reúne imagens feitas com a técnica, e é o equivalente da escrita de Breton na fotografia: escrita automática, só que com a luz. Foi assim que Man Ray criou a fotografia surrealista.
Em Paris a pintura deixou de ser o centro da investigação artística de Man Ray. Mas o problema da superação da pintura, comum a toda sua geração, parece desempenhar um papel no seu trabalho fotográfico.
Man Ray foi pintor primeiro, e há pinturas bem interessantes dele no MoMA, por exemplo. Mas ele, assim como Duchamp, queria fazer algo diferente em arte, daí a intensa amizade e colaboração entre ambos. A pintura era clássica demais para eles. Duchamp começou a mexer com os ready-mades e a se interessar por fotografia porque eram formas mecânicas de reprodução, não era a forma clássica da pintura.
Man Ray também estava atrás de algo parecido. Começou com pintura, depois abandonou a pintura e passou a fazer aerografias. Esse foi o primeiro passo. O segundo passo foi a fotografia. Então foi realmente uma busca artística conjunta, por uma nova forma de criar algo moderno. Ao mesmo tempo, suas fotografias são bastante clássicas. O estilo é muito sóbrio, a construção muito rígida, é tudo muito calculado.
As rayografias também dialogam com a linguagem da escultura. É possível ver os objetos, como se flutuassem em uma nova realidade e se tornassem algo diferente, novo.
Há uma seção da exposição dedicada ao trabalho comercial de Man Ray. Como ele se relaciona com seus interesses artísticos?
A primeira exposição de Man Ray em Paris foi de pintura e objetos. Não fez sucesso algum, não vendeu nada, e ele precisava de dinheiro. Breton encomendou reproduções fotográficas de trabalhos de Francis Picabia, Pablo Picasso, Georges Braque, e outros, para publicar em jornais e revistas. Man Ray tirava fotos das obras, e no final da sessão tirava retratos dos artistas. Isso também interessava os jornais. Foram os primeiros trabalhos comerciais que ele fez.
Os editoriais de moda começaram um pouco depois, em 1925. No começo dos anos 1920 não havia modelos como hoje. As revistas usavam retratos de mulheres elegantes, de estilo bem parisiense, ao lado de descrições das roupas.
Os primeiros retratos na sessão de fotos de moda são retratos que apareceram na Vogue, ainda nesse estilo tradicional. Com o tempo, os retratos foram se modificando, incorporando as pesquisas no estúdio, técnicas como a solarização, que é a sobreposição de dois negativos, com as quais ficou famoso. Para ele, a solarização era uma forma de mostrar a “aura” da pessoa. O retrato de Breton incluído na exposição é um exemplo soberbo.
Tem algo do lado espiritualista do surrealismo no retrato de Breton.
Exato, esse é o efeito da solarização. No começo dos anos 1930, o diretor artístico da Harper’s Bazaar, Alexey Brodovitch, estava atrás um fotógrafo com um estilo mais moderno. Ele queria que a fotografia fosse o carro chefe da revista, e foi assim que Man Ray se tornou tão famoso na fotografia de moda. Isso coincide com os movimentos de liberação feminina dos anos 1920 e 1930. O trabalho do Man Ray acompanha essa mudança também.
Man Ray costumava dizer que se interessava mais por idéias do que por obras, que queria “esculpir com a luz”. Parecia ter uma certa preferência pelo incorpóreo. Ao mesmo tempo, há um grande interesse pelo corpo humano nos trabalhos.
As fotos de corpos humanos são quase abstratas. Um pescoço que não é mais um pescoço, é outra coisa, etc. Ele está falando de fotografia, mas quer fazer algo a mais com a linguagem da fotografia, tirar os objetos e os corpos da realidade e os transformar em outra coisa.
Por isso os cortes são tão importantes na produção das imagens. Permitem a ele se distanciar do real. E nas imagens, mesmo nos corpos, é assim também: quase desaparecem, não são mais corpos, ficam vagos.
São poses clássicas, mas desconstruídas.
Totalmente desconstruídas. Considere o caso de Erótica velada (1933). Temos todos os detalhes do momento da foto, que tomou talvez meia hora de produção, e algumas tomadas. Não é muito comparado à quantidade de fotos que é possível tirar hoje, são poucas se formos comparar, mas foram necessárias para chegar à foto final. Você tem todos os estágios de como aconteceu aqui na exposição, as tentativas, o que ele pensou, as decisões de encenação, e a imagem final. É uma imagem bastante estranha, você não entende direito do que trata, se é tinta no braço da modelo, se é sangue, que máquina é essa. Man Ray está sempre procurando a desconstrução da forma e atrás de algo diferente.
Voltando à questão da relação entre pintura e fotografia, alguns nus lembram as investigações dos cubistas.
Sim, o interesse em desconstruir e criar uma nova visão das coisas. Isso também é claro no processo de investigação e produção das fotos. É a mesma tomada, com diversas opções de corte e direção, e a foto final. Uma imagem pode ser colocada em uma nova direção, de ponta cabeça. Man Ray inverte a direção das imagens, é assim mas poderia ser de cabeça para baixo, o que muda toda a imagem. Ele procura estar onde há algo que não foi visto ainda, algo que você não entende, algo que é diferente do que você pensou a princípio.
Nos anos 1920 e 1930 a fotografia ainda procurava um lugar entre as artes ditas nobres. A contribuição de Man Ray parece fundamental para esse reconhecimento.
Sim. Havia artistas trabalhando com o meio, procurando dar credibilidade artística para a fotografia, como Alfred Stieglitz, em Nova York, na galeria 291. Man Ray visitava bastante a galeria, onde fotografia e escultura eram exibidas lado a lado, mas era a única, ou uma das únicas galerias que abria espaço para fotos. Man Ray tinha a mesma preocupação, e ele contribuiu muito para fazer da fotografia arte. Anos depois, passaria a dizer que a fotografia não era arte. Mas é uma provocação, bem no espírito dada. É apenas para chocar e surpreender, e estar onde as pessoas não esperavam que ele estivesse.
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Man Ray em Paris. CCBB São Paulo, 21 de agosto a 28 de outubro de 2019.
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