Entrevistas

A escola que ninguém espera

Anna Ortega & José Lucas Publicado em: 11 de novembro de 2022

Foto do projeto Escola_Em_Casa, de José Lucas, 2020-2022

“O que vocês estão sentindo hoje?”

“Tédio”, diz um menino. “Sono”, fala outro com a mão segurando o queixo. “Além disso, quais outros sentimentos?”. As perguntas são de José Lucas (20), fotógrafo brasiliense que tem visitado salas de aulas de todo país para documentar os efeitos da pandemia na educação pública. Diante das turmas, Lucas se reconhece – estava ali, um ano atrás, neste mesmo lugar, vivendo o ensino médio durante os anos de Covid-19. 

Em entrevista, José Lucas nos conta sobre o processo de viajar a diferentes cidades do Brasil para conhecer e registrar os sentimentos de estudantes durante o retorno às aulas presenciais. A ideia do projeto Escola_Em_Casa, iniciado em 2020, era não elaborar apenas um registro fotojornalístico da situação das escolas, mas construir coletivamente retratos com as turmas e professores, criando uma escola, muitas vezes, surreal. “E se todo mundo dormisse na sala, incluindo o professor? E se a aula fosse no meio do corredor?”, se perguntam ao fazer uma imagem.

“Não chego dentro da escola já segurando a câmera ou fotografando. Tenho cuidado porque acho que essas imagens do projeto não são feitas só por mim. Queria que elas fossem realizadas pelas pessoas que vivem a escola também”, conta Lucas. Hoje estudante de Artes Visuais na Unb, o artista desenvolve um fotolivro do projeto, que reúne a série de fotografias e também trechos do que ele chama de Caderno de Sentimentos Presenciais, feitos pelos alunos.

Foto do projeto Escola_Em_Casa, de José Lucas, 2020-2022

Como surgiu o projeto Escola_Em_Casa?

José Lucas: Ele surgiu a partir da minha vivência enquanto estudante no terceiro ano do Ensino Médio e de uma necessidade que senti de registrar como minha escola estava em meio ao isolamento. Era um momento da Covid que a gente sentia muito medo. Então, em um primeiro momento fui até a minha escola, porque queria registrar o vazio dela. Isso foi quase cinco meses depois do dia 13 de março, quando a escola enviou no grupo do Whatsapp um aviso que a gente não ia ter aula ‘amanhã’. Só em julho retornamos às aulas virtuais pelo Google Meet, muito depois das escolas particulares.

Aqui em Brasília, a Secretaria da Educação criou uma plataforma chamada Escola Em Casa, que era o programa por onde a gente assistia as aulas. O que me motivou foi a vontade de registrar o que eu estava vivendo, porque eu já tinha uma proximidade com esse tema, fotografando manifestações de estudantes. Comecei a registrar o virtual, tirando print screens. Peguei o ritmo de fazer um print de toda aula que eu tinha e quando me dei conta já tinha uns 100.

A gente ficou quase dois anos sem ir lá presencialmente. Como não tinha presença, todos os murais dos alunos estavam parados no tempo. Nessa primeira etapa fui registrando o vazio, elementos da natureza vegetal que começavam a surgir nos espaços, coisas deixadas pelos alunos que não eram mexidas. Ao mesmo tempo, fotografava o virtual, a Escola_em_Casa.  As underlines no nome do projeto vieram porque para mim existia essa dualidade entre presencial e online, como se tudo aquilo na escola tivesse acontecido em uma outra dimensão.

Lembro até de escrever algo assim: “A lousa virou paint/ e o mouse e o teclado viraram pincel atômico/ da sala ampla, para um celular menor que a mão/ do ônibus para a escola, do wifi para plataforma/ mesmo matriculado, o passe livre bloqueado/ a amiga que não posso ver/ o ano que não posso perder.” Quando as escolas retornaram, começou a segunda etapa do projeto: os Sentimentos Presenciais.

Como você decidiu fotografar outras escolas além da sua? E a ideia de ir para todas as regiões do Brasil?

JL: Comecei a postar as primeiras imagens no Instagram e muitas pessoas se identificaram. Daí conversei com a diretora e perguntei se não teria outra escola que eu poderia ir e ver como estava. Via todo mundo usando álcool gel o tempo todo, medindo temperatura, usando máscara. Fui registrando esses elementos que indicavam a passagem da Covid.

Quando me formei no terceiro ano comecei a enviar o projeto para vários editais, como o Pequeno Encontro de Fotografia e a Maratona de Edição do Lombada. Em um desses encontros, recebi a referência de um projeto chamado Ser Diretor, do Éder Chiodetto, em que ele viajou por diversos estados para fotografar e entrevistar diretores de escolas públicas.

Quando vi esse fotolivro pensei ainda mais que gostaria de ir em outras escolas, e não só falar do Distrito Federal, porque os estudantes estavam vivendo isso tudo não só aqui. Só que comecei a me perguntar como eu faria, sem apoio, e com 19 anos, nunca tendo viajado sozinho. Comecei a traçar lugares para onde eu poderia ir, com base em cidades em que eu pudesse ter estadia. Também fui tentando contato de professores para apresentar o projeto e conseguir as escolas. Nunca foi quantitativo, no sentido de saber quantos alunos deixaram de estudar, ou quantos tinham acesso à internet. Queria mesmo fazer um registro dos sentimentos dos estudantes e professores, que é um documento que não costuma existir. Sempre quis que os registros fossem muito coletivos. Foi nesse momento que surgiu a ideia de fazer um caderno chamado Sentimentos Presenciais, que iria passar pelas escolas.

Poderia contar um pouco de como é entrar nas salas de aula, se apresentar e propor uma vivência? Qual o caminho até chegar no instante de fotografar os estudantes?

JL: Gosto da câmera quando é um lugar mais de uma brincadeira. Ainda estou tentando entender a forma como eu fotografo, porque gosto do lúdico, acho mais confortável. Não chego dentro da escola já segurando a câmera. Tenho cuidado de não sair fotografando, porque acho que essas imagens do projeto não são feitas só por mim. Queria que elas fossem feitas pelas pessoas que vivem na escola também.

Quando entro na sala, converso muito com eles. Pergunto para a turma sobre como nossos sentimentos podem estar em uma imagem. Todas as fotos do projeto são posadas, então acho que aí entra um lugar mais teatral, da performance. Eu e os estudantes tentamos pensar juntos um cenário para o sentimento que eles estão relatando, tentando construir uma cena mesmo.

Eu sempre conto que o caderno passou por outras escolas, de todo Brasil, e peço que escrevam com seus próprios traços. Digo que eles podem amassar, rasgar, colar figurinha, post-it, pegar outras folhas de caderno. A gente faz essa lista de sentimentos e depois faz as imagens. Sempre é divertido e, ao mesmo tempo, a gente reflete que é um registro que vai ficar do que estamos sentindo e vivendo na pandemia. A questão da vacina aparecia muito, principalmente no início. Inclusive, em uma das escolas a gente fez uma foto da professora vacinando com a caneta. A gente pensava na hora nesse tipo de cena. Eu evitava induzir a foto, ou dizer ‘vamos fazer assim’.

Você visitou muitas escolas, em todas as regiões do país. Você conseguiu perceber semelhanças e diferenças nas vivências?

JL: O sentimento de sono foi o que mais se repetiu em toda escola. A gente fez essa imagem de que até o professor dorme – o que é muito engraçado, porque dormir é uma coisa que se evita fazer dentro da sala de aula. Outro sentimento que se repetia era de esperança, foi um dos primeiros sentimentos no caderno. A gente esperava muito que pudesse tirar a máscara. Hoje são outras repetições, como cansaço, tédio, amor, paixão. Saudade apareceu bem pouco, porque a gente não estava com muita saudade. Queria muito mais um futuro, do que um passado.

Cada escola tem suas características. Por exemplo, tinha uma escola em Fortaleza que tinha uma TV na sala de aula, com uma câmera para transmitir para os estudantes em casa. Em Guarulhos, tinha uma escola pertinho do aeroporto. Passava um avião quase aterrisando e os professores paravam de falar. Em outra, os estudantes tinham tablet, que a gente acabou utilizando para fazer a foto por ser um material que eles usavam muito.

Algo que chama atenção nas imagens é que, apesar de tratarem de um tema muito concreto (a vivência de estudantes durante a pandemia), elas se distanciam de uma abordagem estritamente documental, ou fotojornalística. Muitas das fotos dos estudantes tem até um aspecto da “performance”, de uma encenação. Foi uma intenção desde o início?

JL: Sim, é inimaginável colocar quatro fileiras de mesa, uma em cima da outra, em uma sala, né? Gosto da ideia de ir até o limite, do exagero. Não queria fazer uma abordagem mais fotojornalística, porque já estavam fazendo isso. Parando para pensar, não tenho nenhuma foto “mais documental” do professor dando aula, por exemplo.

A questão do exagero sempre aparece. Ao invés de pegar um livro para fazer a foto, a gente pegava todos que tinham trazido naquele dia. Eu também não escolhia quem iria fazer a foto, geralmente eles falavam pra turma ‘quem que vai ser?’ e todo mundo ‘ah, vai ser ele, vai ser ela’. Eles também davam muitas ideias, como a proposta de todo mundo deitar no corredor da escola. Acho que o exagero traz muita informação sobre a sala de aula. Todo mundo está ali junto, querendo passar de ano, se vendo todo dia, e todo mundo provavelmente com um sonho.

Uma outra escolha foi fazer a maioria das imagens na vertical, pensando em uma verticalização das coisas, até pelo nosso uso dos celulares. Trazer o flash foi desde o início também, porque quando visitava a minha escola, no isolamento, eram aqueles espaços vazios, escuros.  O flash era quase uma lanterna e acabou formando a identidade do projeto quando começaram as aulas presenciais.

Além dos estudantes, você fez retratos também de outras pessoas importantes no cenário escolar, como professoras, merendeiras e diretoras. O que a visão dessas pessoas trouxe para o projeto?

JL: Eu percebi que não eram só os estudantes vivendo isso. Nas minhas aulas virtuais, os professores mesmo relataram como estava sendo difícil para eles. Indo às escolas, quis conversar com outras pessoas que mantinham elas vivas. Inclusive, se eu não conseguisse escola em algum estado, eu ia até a casa de um professor. Sempre nas turmas, eu dizia para o professor que ele poderia participar, mas eles geralmente preferiam falar depois. Foi por isso que comecei um caderno para circular entre os professores. Deixei em Porto Alegre e ele vai rodar em outros estados por correio, até para chegar em lugares que não fui.

Você parece ter um carinho e atenção aos escritos e desdobramentos do caderno. Ele também torna o projeto não só fotográfico. Por que você considera ele importante?

JL: O caderno tem o registro histórico do que a gente tem vivido, não só na educação pública. Dentro do caderno, os estudantes falaram de questões além da pandemia, como transfobia, assédio, aborto, governo, SUS. Tornou-se um espaço de desabafo, de abertura. Alguns professores ficaram até curiosos sobre como os estudantes tinham escrito, como que eu tinha conseguido. Não sei muito bem, acho que pode ser por a gente ter uma idade muito próxima. De alguma forma, eles se identificavam comigo e se sentiam confortáveis. Não era uma obrigação, e tinha a curiosidade de ver o que os estudantes de outros estados tinham registrado. Muitos queriam participar, mas não sabiam o que colocar, e daí colavam uma figurinha – e isso também diz alguma coisa. Por mais que seja um adesivo dizendo “love”, “rock”, “férias” (risos), essas interações já eram participações.

Foto do projeto Escola_Em_Casa, de José Lucas, 2020-2022

Você está desenvolvendo um livro do projeto. Poderia contar mais sobre como está esse processo?

JL: A ideia é ser um livro, feito em um caderno brochurão, brasileiro, tradicional, igual ao Caderno dos Sentimentos Presenciais. A proposta é ter um pouco do Caderno, das imagens e relatos gravados de colegas e professores. Também vai ter uma exposição em Brasília no ano que vem. Penso também em fazer uma edição coletiva das imagens, enviando um link do Google Meets para os estudantes que quiserem entrar e acompanhar. O lançamento está previsto para março de 2023 e espero poder enviar pelo menos uma cópia para a biblioteca de cada escola que participou. ///

Anna Ortega é repórter interessada na escuta e escrita de processos artísticos, em especial os que têm como suporte as artes visuais. Também é fotógrafa.

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