Ensaios

Uma outra de si mesma

Jane Batista & Anna Ortega Publicado em: 4 de abril de 2024




Em sua casa na comunidade de Serviluz, Fortaleza, a fotógrafa Jane Batista (48 anos) posiciona o celular sobre o parapeito da janela. Ela escolhe os melhores horários de iluminação, às 11h, ou às 15h, quando a luz delineia seu corpo com sombras. Prepara, então, materiais cenográficos encontrados ao longo dos dias, na praia, no trabalho, em casa, ou na rua, como cascas de ovo, borra de café, leite, espinhos de flores e raízes de plantas. Tudo pronto. Jane fecha a porta e começa sua série fotográfica, iniciada em 2020: O quartinho de horrores.

Diante da câmera, Jane performa, embebida de uma profunda experimentação de si. As fotografias em preto e branco, tratadas em alto contraste, repetem-se apenas no enquadramento. Cada uma parece dar vazão a um eu distinto. Quando se fotografa, Jane imagina que está olhando diretamente nos olhos de alguém. Na série, devolve o olhar a quem a olha, contestando as imagens que são lançadas a si historicamente. E faz isso conscientemente, como um desejo de que a imagem penetre, de fato, em que sempre a encarou ou vigiou. “Eu tento imaginar que estou olhando bem dentro do olhar de uma pessoa. Eu quero que ela sinta que estou olhando para ela”, conta.

Quem deu o nome da série foi um dos filhos de Jane. Por diversas vezes, o mais velho chegava em casa e a artista estava no quarto tirando fotos. Quando via como a mãe estava vestida, não gostava. “Um dia minha irmã chegou em casa e perguntou onde eu estava. Ele disse: a mãe está no quarto dos horrores”, lembra. A sensação de susto, ao ver a artista transformada, é uma das intenções dela ao fotografar. Para além das dualidades em que uma fotografia de retrato pode ser compreendida, como bela ou não, as imagens da artista se situam no que está para além do binário: o horror que é também belo, e o sublime que desnorteia. “O quarto dos horrores é, para mim, uma lindeza. Eu acho bonito”, revela.

Jane trabalha com serviços gerais e aprendeu a fotografar de forma autônoma, por sempre nutrir um interesse em registrar o cotidiano. Há quatro anos, vem se dedicando à fotografia, onde utiliza exclusivamente o seu telefone móvel como ferramenta, tanto para captura como para edição. De forma orgânica, a vivência das mulheres, em especial as negras e periféricas, começou a lhe interessar. Em 2023 realizou sua primeira individual, intitulada Dizer o silêncio, na Imagem Brasil Galeria, em Fortaleza, com curadoria de Aldonso Palácio. Participou também da Bienal dos Sertões, Meu Inventário Verde e da publicação Fotoescritos do Confinamento.

“Tudo surgiu da minha curiosidade, do meu pensamento, e das coisas que observo que não se pode falar porque são cordas e máscaras na nossa vida”, explica. Quando a artista fala do próprio processo, fica evidente um deleite que sente na própria transformação, na montagem e na construção de uma cena em que suas fantasias e imaginações podem se desvelar. No início, realizava as fotografias para si mesma, não pensava em mostrar para o público. “Às vezes postava no Instagram, mas ficava com medo do que as pessoas poderiam pensar”, relata.

A elaboração poética de Jane evoca a pergunta que faz a si mesma ao apropriar-se de objetos do cotidiano: “no que isso pode se transformar?” Essa indagação funciona como um duplo, uma flecha de dois sentidos. Olha para fora, para as imagens que os outros têm de si; e para dentro, no profundo das próprias emoções, em um desejo de mudar a composição original das coisas. “É onde eu posso me libertar. Coloco nele as minhas imaginações naquilo que eu gostaria de ser”, explica.

E o que revela um autorretrato quando o rosto é oculto? A série transita nos limites da liberdade. O enquadramento se repete através de um corpo que nunca é visto por completo. Um rosto que também escapa à visão integral. Há um indecifrável que se mantém, e que sugere que nem tudo está visível, ou pode estar. E que o que não cabe no retrato, está também ali, compondo. Um exemplo é Sem Título (Gergelim 06), em que apenas metade do rosto da artista é iluminado. Os olhos se destacam na imagem e miram fora do quadro, em um olhar fixo e firme. O rosto, mesmo em seu lado obscuro, aparenta estar melecado. A fotografia de enquadramento semelhante ao 3×4, característico de uma identidade, parece ser o contrário: um rosto partido, dual, compreendido daquilo que pouco se vê.

Já em Sem Título (Sacos Plásticos 02) e Sem Título (Arroz 01) o rosto se aproxima no enquadramento do autorretrato e, em ambas, a artista olha diretamente para a câmera. São poucas as imagens da série em que esse movimento acontece, o que também faz com que esses autorretratos se destaquem do conjunto. Em Sacos Plásticos 02, o rosto é circundado por elementos que, se não fosse pelo título, seriam indecifráveis. Tornam-se abstratos diante das fotografias de Jane, suas texturas retorcidas saltam aos olhos, e como em outras imagens, anunciam uma experimentação visual sofisticada.

Ela conta que jamais deixaria ser fotografada da forma que ela mesma se fotografa. Há, em seu trabalho, portanto, uma autonomia completa para olhar para si, uma elaboração poética única, em que um extravasar visceral pode vir a ser. As fotografias fazem um diálogo fino entre o que é coletivo e o que é íntimo. Ela provoca também um sistema que a encara o tempo todo, a partir do julgamento e do controle. A câmera, historicamente um instrumento colonizador neste ser olhado, assume outro lugar em O quartinho dos horrores.

Ver o que não se vê

A artista constrói a imagem ao longo dos dias, a partir de um processo de feitura, em que vai e vem do trabalho, coletando objetos, na maioria das vezes orgânicos. Jane procura enxergar em seu cotidiano o que considera que as pessoas pouco notam ou valorizam – seja em um nível material, os ‘descartes’ que utiliza para compor, ou em um nível subjetivo. A construção de suas imagens se dá de duas formas:”um relâmpago”, um insight, em que sabe bem o que deseja mostrar, e em outras ocasiões confia na experimentação. No Quartinho dos horrores, estuda composições, ângulos, cenários, materiais e texturas, diariamente.

No seu livro Decolonizing the Camera: Photography in Racial Time (2019) (Decolonizando a câmera: fotografia em tempos racializados), o britânico Mark Sealy explica que a origem da fotografia reforçou a invenção de um Outro, objeto do olhar, sempre racializado – na qual impera um regime de imagem onde a câmera parece ter autorização irrestrita para captura das identidades e, na maioria das vezes, para o furto das imagens de quem é retratado. O pesquisador considera que “a história escrita pelas lentes da fotografia colonial é um instrumento violento e não confiável”. Jane, no interior da sua casa em Serviluz, faz parte de uma constelação de fotógrafos, fotógrafas e artistas da diáspora africana que praticam um outro fazer fotográfico, onde estabelecem com a câmera uma relação de autonomia e ação. São sujeitos de suas próprias imagens.

Nessa constelação, nomes como Samuel Fosso brilham. O fotógrafo camaronês, mestre do autorretrato, é uma referência também na fotoperformance. Em séries como African Spirits, encarna personalidades importantes da luta política e intelectual, como Angela Davis e Martin Luther King. No fotolivro SIXSIXSIX, o artista se fotografa 666 vezes, indo ao limite do que pode o próprio rosto e o próprio olhar. Parece se perguntar: “até quando, ou onde, eu sou posso ser eu?”. Trabalhos como o de Fosso e de Jane Batista fazem viver o direito à opacidade, reivindicado por Glissant, quando diz “do que disser respeito à minha identidade cuido eu”. O filósofo e intelectual, nascido da Martinica, defende o direito à representação complexa, não dual, nem redutível aos limitantes enquadramentos branco-ocidentais.

Nesta mesma trama de encontros podemos lembrar de Zanele Muholi, fotógrafe não-binárie sul-africane, que trabalha o autorretrato enquanto pessoa LGBTQIAP+. As imagens em alto contraste, os olhares marcantes e magnetizantes da artista, e seu modo de entender a câmera como um ativismo visual, são importantes aqui. Ou, então, Rotimi Fani-Kayode, fotógrafo nigeriano, que no auge dos anos 70, em meio a repressão e a Guerra Civil em seu país de origem, posicionou-se em frente às lentes, articulando o corpo com plasticidade e subversão, em uma série de autorretratos que parecem ter algo de semelhante aos de Jane: o gozo ao fabular. 

O fabular crítico, conceituado por pensadoras como Sadiya Hartman, aborda a ideia de “recuperar o que permanece dormente”. O estúdio-ateliê da artista cearense é esse espaço livre, onde as memórias podem fluir, inclusive as de infância. Podem também existir nas imagens de Jane sussurros que nos ajudam a perceber uma outra história da fotografia, distanciando-se da história colonial, e também da história da arte branco-brasileira, como lembra o pesquisador e curador Igor Simões, em que pessoas negras e indígenas foram reduzidas ao lugar de objeto de olhar, como tema.

As fotografias guardam semelhanças com a cena dramática, imbuídas de teatralidade, e de uma efemeridade que nunca mais será a mesma. É significativo esse aspecto também: a artista pode ser uma Outra, não dos outros, mas de si mesma. Há uma catarse em imagens como Quimera 02, em que um ser de três olhos, com a língua para fora, olha o espectador. A fotógrafa também se aproxima de elementos religiosos, como a bíblia e o terço, em imagens que nem o rosto ou o olhar aparecem. Podemos pensar: “o que chega antes de seu rosto?”.

Em diversos autorretratos, um pano cobre seu corpo. O tecido que a embrulha dá várias voltas, sugerindo uma certa contenção. As texturas saltam aos olhos em todas as imagens, e parecem táteis: os espinhos, as cordas, os lençóis e os papéis. Já em imagens como Raízes, a artista deixa o olhar em evidência, fundindo-se a camadas de terra que parecem torná-la uma grande árvore, ramificada e enraizada. São vários os retratos em que Jane assume um corpo e um olhar que a fazem transcender.

Alimentando outros imaginários

Interessante observar que os materiais escolhidos por Jane para cobrirem seu rosto, como arroz, feijão e milho são feitos daquilo que podem lhe alimentar. São escolhas intencionadas que lembram também um ativismo visual, bem contado por Hartman e por Tavia Nyong’o, em que se questiona a necessidade de mais imagens de violência de populações negras. Fotografar com o que se alimenta lembra o próprio trabalho de Rosana Paulino, que ensina, desde os anos 80, que a fotografia – vista através do arquivo – tem o poder de machucar, mas também de recriar e colaborar com a cura das feridas do racismo e do colonialismo. “Você pode estar curada, sem nenhuma cicatriz, mas sempre que você volta no passado, seja dor ou alegria, ele vai espinhar você”, Jane comenta. 

Em African Cosmologies: photography, time and the other (Cosmologias africanas: fotografia, tempo e o outro), Mark Sealy direciona nossos olhos ao poder da fotografia neste esforço de recontar. “Os fotógrafos da diáspora têm um impacto nas epistemes tradicionais – profundamente colonialistas. Estão amalgamados em um processo de refazer, desfazer, repensar o trabalho que as imagens fazem na história e na cultura”, diz o pesquisador.

Nesse caminhar para outros fazeres, Jane encontra no autorretrato, na cena e na performance, um lugar que é seu, um território próprio. Ela conta, inclusive, que muitas vezes chora ao performar, pois deixa as emoções escorrerem. É daí que surgem suas imagens. Não tem medo do que pode vir a ver – ou vir a ser. É como se o seu processo fosse também esse: ultrapassar os silêncios e os medos. Várias das fotografias parecem conter, no interior das imagens, elementos do onírico, do sonho, do escuro onde algo se revela. “Todo dia a gente mata um pedacinho da gente que quer nascer para o mundo, que quer viver da maneira que deseja”, diz a artista.

As fotografias de Jane sugerem que o pavor fique com quem a olha, e que o desconforto permaneça. Não saber o que sente diante de uma fotografia pode ser uma qualidade. Jane é inventiva e sua relação com a fotografia transcende o caráter de registro, documento ou verdade.

“São muitas Janes colocadas para fora. E eu sei que tem mais Janes escondidas dentro de mim”, revela. A artista se conecta com seus sonhos, desejos e medos através da fotografia. Quando aperta o botão do celular, e o temporizador marca dez segundos, seu quarto se transforma em um tempo-espaço de liberdade e intimidade, onde tudo é possível. Ser e não ser. ///


Anna Ortega é repórter, interessada na escuta e escrita de processos artísticos. Trabalha com jornalismo cultural e cobre temas relacionados a direitos humanos e educação. Tem textos publicados em veículos como UOL, Revista Select, Nonada Jornalismo e outros. É também artista e fotógrafa.

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