Ensaios

Imagens de um Brasil possível

Stephanie Borges Publicado em: 20 de janeiro de 2023

Foto oficial na cerimônia de posse do ministério do presidente da República Luiz Inácio Lula da Silva no Palácio do Planalto. Foto: Tânia Rego/Agência Brasil

Diante do fundo com a aplicação da identidade visual do novo governo, estão organizadas duas fileiras. Na frente, no centro, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva e seu vice, Geraldo Alckmin. À esquerda de Alckmin está Anielle Franco e à direita de Lula está Sônia Guajajara. Na primeira fileira se destacam as presenças de Cida Gonçalves, Silvio Almeida, Margareth Menezes e Marina Silva. Nísia Trindade, Simone Tebet, Luciana Santos e Daniela Caneiro também compõem a linha de frente, enquanto Ana Moser e Esther Dweck se destacam em meio a vários homens engravatados.

Os homens brancos continuam no centro do poder, no entanto, o governo Lula explicita que mulheres, pessoas negras e os povos indígenas ocupam posições chave para a união e reconstrução do país. Não se trata apenas da composição de governo com a maior quantidade de ministras, mas há o cuidado de evidenciar a presença delas.

Colocar em primeiro plano os responsáveis pelas pastas do meio ambiente e mudança climática, saúde, direitos humanos e cidadania, cultura e igualdade racial sinalizam a retomada de um projeto de Brasil interrompido em 2016. Além de ressaltar o pioneirismo de um ministério dedicado aos povos indígenas, a posição de Sônia Guajajara ao lado do presidente sinaliza a relevância estratégica de sua presença para uma imagem de um Brasil plural.

O novo governo mal começou e tem diante de si um legado de destruição e a ausência de dados e indicadores para nortear políticas públicas. Também precisa lidar com o terrorismo doméstico e com um legislativo conservador. A crise econômica e a fome são urgentes, mas a reconstrução do país também passa por uma disputa estética e afetiva. Redefinir o que entendemos como o Brasil é um dos grandes desafios do terceiro mandato de Lula.

Se o espetáculo da cerimônia da posse e o Festival do Futuro ofereceram aos milhões de eleitores de Lula o sentimento de alívio e a impressão de que escapamos de um pesadelo, os ataques de 8 de janeiro nos mostraram que muito ainda deve ser feito para conter a sanha golpista e antidemocrática cíclica em nossa história.

No entanto, o que se torna possível quando pessoas excluídas dos espaços de poder começam a se ver e cobrar cada vez mais presença? O que os brancos podem aprender quando reconhecem as limitações de suas visões do que é a vida nesse país? Que alianças se tornam possíveis contra o fascismo neste momento, ainda que abarquem discordâncias e conflitos?

Cerimônia de posse do presidente da República Luiz Inácio Lula da Silva no Palácio do Planalto. Foto: Tânia Rego/Agência Brasil

Nos primeiros dias de 2023, uma montagem que sobrepunha as fotos oficiais do alto escalão do terceiro mandato de Lula e de Jair Bolsonaro foi bastante compartilhada nas redes sociais, acompanhada de comentários sobre diversidade e representatividade.

As imagens evocaram uma memória de 2020, quando Bolsonaro fez uma pequena reforma ministerial durante a pandemia para que seus aliados pudessem concorrer nas eleições estaduais e municipais. Na ocasião, observar atentamente a fotografia do ex-presidente agravou minha angústia. Aquele grupo de pessoas brancas, a maioria homens, e duas mulheres aliadas à igreja e ao agronegócio, não comunicava apenas uma visão antiga e excludente da “elite brasileira”, mas um resumo de quem o governo Bolsonaro esperava que sobrevivesse a pandemia de Covid-19: os integrantes de grupos privilegiados e seus aliados na manutenção do status quo.

É difícil explicar a pessoas que se veem o tempo todo – na universidade, nos locais de trabalho (especialmente em cargos de liderança), em seus momentos de lazer –, que elas experimentam uma sensação de pertencimento que pessoas não-brancas geralmente só sentem em ambientes e contextos específicos.

Sabemos que espaços de poder foram construídos a partir da exclusão das pessoas negras e dos povos originários. Entretanto, sabemos que a nossa presença é capaz de ampliar o imaginário de possibilidades para pessoas que historicamente não se veem representadas nas instituições republicanas. O registro de nossa participação serve também à disputa pela memória.  

Se em 2016 e 2019 os ministérios de Michel Temer e de Jair Bolsonaro chamaram a atenção pela forte presença branca e masculina, parte da reação se deve ao fato de que outros governos apresentaram composições mais diversas.

Entre pessoas brancas que ainda evitam conversas desconfortáveis sobre o racismo brasileiro, há um discurso de que o tom da pele não é relevante. Há outras características mais importantes em um ser humano que determinam o acesso a inúmeros lugares, como seu caráter ou seu currículo. Quem ainda acredita nisso geralmente convive muito pouco com pessoas negras e indígenas que não estejam em posições subalternas. Desconhecem inúmeros profissionais, ativistas e pesquisadores que podem contribuir para o fortalecimento da nossa frágil democracia.

O episódio da Ministra do Planejamento, Simone Tebet, que mencionou a dificuldade de encontrar mulheres negras aptas compor sua equipe e recebeu listas de intelectuais negras capazes de assumir diversas funções em sua pasta, é sintomático de como parte da branquitude brasileira se sente confortável entre os seus e se exime da responsabilidade de pesquisar, se informar e agir para incluir múltiplas perspectivas de raça, gênero e classe em suas equipes.

Posse das ministras dos Povos Indígenas, Sonia Guajajara, e da Igualdade Racial, Anielle Franco. Foto: Valter Campanato/Agência Brasil

As fotografias dos ministros do terceiro mandato de Lula me trazem alívio por várias razões, mas seria ingênuo tomar a diversidade como garantia de combate à desigualdade social no Brasil. Contudo, a presença de mulheres, negros e indígenas demonstra que a tomada de decisão envolve diferentes experiências do que significa ser brasileiro. É possível acreditar que a complexidade do país e dos desafios atuais serão abordadas a partir de diferentes pontos de vista.

Nosso passado recente faz refletir sobre como a migração de parte do debate público para a internet trouxe desafios ao cenário político e permitiu que algumas cobranças se tornassem mais ágeis e diretas. Uma rápida pesquisa de imagens dos ministros de Dilma Roussef, em 2010 e 2014, mostra uma forte presença de pessoas brancas e algumas mulheres.

O governo empossado em 1º de janeiro tem mais ministras que o alto escalão nos dois mandatos de Dilma. Isso resultado da pressão de quadros partidários e de movimentos sociais. A relevância do voto feminino em 2022 e o debate público influenciam essas escolhas. 

A composição do ministério de Lula em 2023 evoca a frente amplíssima arquitetada para combater o fascismo verde-e-amarelo, assim como o amadurecimento de parte da nossa população desde 2016. A eleição de 2018 configurou um trauma que se agravou ainda mais com o luto incomensurável pelas vítimas da Covid-19. Muita gente saiu desse processo doloroso compreendendo como tudo é político, especialmente a omissão.

Quem se engajou no combate ao fascismo e na campanha eleitoral, se sente apto a cobrar do governo que velhos erros não se repitam. Não se pode pensar em desmontar um projeto de genocídio de negros e indígenas sem a participação dessas pessoas na elaboração e execução e políticas públicas.

Ainda que pessoas negras e mulheres ocupassem alguns cargos e fossem contratadas para a publicidade do governo de Bolsonaro, eram presenças alinhadas com a lógica fascista. O tom otimista da propaganda elogiando a economia contradizia a experiência da maioria da população. As imagens eram elaboradas para transmitir determinadas mensagens, enquanto as decisões do executivo eram bem diferentes.

Existe um Brasil que deseja e precisa se ver. Talvez algumas pessoas se sintam chocadas porque o óbvio precisa ser dito. Ainda mais em termos tão explícitos como no discurso de posse de Silvio Almeida como ministro de Direitos Humanos e da Cidadania: “trabalhadores e trabalhadoras brasileiras, vocês existem e são valiosos”. No entanto, estamos falando de um apagamento histórico da contribuição de negros e indígenas para a construção do país. Chegamos ao fim de um governo que disseminava propositalmente mensagens contraditórias, apostando no caos e na violência física e simbólica.

Sentimos alívio porque saímos da invisibilidade que nos exclui de um imaginário de futuros possíveis. Conseguimos nos ver como agentes na criação de um país mais digno, ainda que isso envolva muita luta política dentro e fora das instituições. Escapamos do enquadramento de um modo de ver elitista, racista e capacitista que ainda nos coloca como pessoas que devem ser tuteladas, catequisadas, segregadas e exterminadas.

As imagens dos primeiros dias do governo Lula podem nos inspirar nas batalhas contínuas pelo Brasil que queremos ver e nos alertar em relação ao que não pode ser esquecido ou ficar impune. No entanto, a negação é tão arraigada em nossa sociedade que os terroristas produziram e divulgaram provas de seus crimes e ainda assim foram capazes de atribuir os atos a supostos infiltrados. Os brancos de classe média nunca são considerados suspeitos e perigosos, nunca se veem encarcerados e punidos injustamente, mas precisam urgentemente ser responsabilizados pelos seus crimes. O Brasil que merecemos também depende disso.

O óbvio parece nunca ser o suficiente no Brasil. Continuaremos a repeti-lo até, enfim, percebermos a mudança. ///

Stephanie Borges é jornalista, poeta e tradutora. Seu livro de estreia Talvez precisemos de um nome para isso (2019) venceu o IV Prêmio Cepe Nacional de Literatura. Publicou ensaios nas revistas ZUM e serrote.