Ensaios

As imagens do eu-testemunho mudaram o Brasil?

Fabiana Moraes Publicado em: 16 de junho de 2023


Noite de 13 de junho de 2013: no programa Brasil Urgente, na Rede Bandeirantes, o apresentador José Luiz Datena mostrava-se transtornado com as manifestações populares contra o aumento nas passagens dos ônibus que aconteciam nas ruas de São Paulo. Enquanto criticava e adjetivava negativamente quem estava no ato, pediu uma enquete ao vivo. Veio a pergunta: “Você é a favor desse tipo de protesto?”.  As imagens mostravam confrontos entre policiais e protestantes e os números iam aparecendo na tela. O “sim” ganhava.

O apresentador, tentando orientar as respostas, passou a repetir que estava com o povo e era contra o aumento de passagem nos coletivos, mas que as manifestações tinham que ser pacíficas. Não adiantou. “Será que nós formulamos mal a pergunta?”, indagou Datena, que pediu para refazerem a questão. Veio então a segunda, na qual surgia uma palavra usada constantemente pela imprensa para classificar atos de movimentos sociais no Brasil: “Você é a favor de protesto com baderna?” Até encerrar a enquete, a tela mostrava 998 respostas “não” e  2.351 “sim”. Datena, aturdido, pediu para que tirassem a pesquisa do ar. 

O recado estava dado. E o recado acontecia em um popularíssimo e muito conservador programa de televisão, vale dizer.

O caso do Brasil Urgente se tornou famoso porque nele foi possível mensurar, no quente, a não obediência comum da audiência, uma espécie de revolta inesperada da recepção. Mas o fato é que, um dia antes, mais duas empresas fortes da comunicação brasileira – Globo e SBT – também lançaram discursos que dataram no mesmo momento no qual foram vocalizados.

Em 12 de junho, a apresentadora Rachel Sheherazade, no Jornal do SBT, também recorreu a adjetivos bem conhecidos para nomear revoltas populares: “Por trás de toda essa confusão há o movimento Passe Livre, que está fazendo, inclusive, uma vaquinha para livrar os arruaceiros do xadrez”. Na Rede Globo, no mesmo dia, o comentarista Arnaldo Jabor, dentro de um estúdio, de terno e muito sério, disse:  (…) “Eles são a caricatura violenta do socialismo dos anos 50 que a velha esquerda ainda defende aqui. Realmente, esses revoltosos de classe média não valem nem 20 centavos”.

As falas de Datena, Sheherazade e Jabor traduziam muito claramente uma divisão entre “eles”, os irracionais, os baderneiros, os talvez vermelhos demais (como sugere o último comentarista), e o “nós”, o que seria o lugar da segurança, do equilíbrio e da racionalidade. “Eles” era o lá fora, o imponderável. “Nós” era a chamada imprensa tradicional, o status quo. Ali, Band, SBT e Globo mostravam que não conseguiam modular o discurso sobre o que estava acontecendo nas ruas – e, inclusive por isso, seriam convidados pelos protestantes a sair delas.

No contexto dessa incomunicação (para usar um termo caro às pesquisas do pensador colombiano Erik Torrico Villanueva), surge uma miríade de câmeras gopro, carrinhos de supermercado, capacetes, notebooks e telefones celulares. Seria com esses equipamentos, entre outros, que o coletivo Mídia Ninja (Narrativas Independentes, Jornalismo e Ação) passaria a atuar na cobertura das jornadas que completam agora dez anos, década na qual o jornalismo brasileiro e mundial se viram confrontados por uma onda de descredibilização formada não somente pela ascensão das onipresentes fake news, mas pelo próprio modelo de uma superada imparcialidade da imprensa.  Entre milhões de pessoas, caiu a grande ficha: frente a um cenário de sofrimento social intenso, o campo noticioso deve ficar isento exatamente ao quê?

Com transmissão em tempo real, direto das ruas, e registro a partir de um olhar de uma primeira pessoa (de várias e múltiplas pessoas), o Mídia Ninja, atrelado à Rede Fora do Eixo, ganhou musculatura nos protestos relacionados ao Movimento Passe Livre e causou uma inflexão sem retorno no sistema emissor-receptor. Poucos dias após as falas de Datena, Sheherazade e Jabor, em 17 de junho de 2013, o chamado Quinto Grande Ato contra o aumento das passagens já contava com mais de 240 mil presenças confirmadas na página do MN no Facebook.

No mesmo dia e na mesma rede, o jornalista Bruno Torturra (um dos integrantes do coletivo) postava, com uma dose a mais de heroísmo, uma crítica à grande imprensa: “E bom dia a todos que têm olhos, câmeras e cérebro para cobrir os protestos sem precisar do coletinho de imprensa do Alckmin. Ou melhor, o Abadá da Bala”. Naquele momento, a PM de São Paulo, comandada pelo hoje vice-presidente Geraldo Alckmin, distribuía coletes para jornalistas cobrirem o evento.

Horas mais tarde, um dos jornalistas mais reconhecidos do país, Caco Barcellos, da Rede Globo, seria expulso com sua equipe dos protestos concentrados no Largo do Batata, em SP (depois de muita conversa, conseguiria permanecer no local). A certa desobediência que antes vimos na tela da TV agora se traduzia em atos de dupla dimensão, nos quais tanto se materializava a revolta à política – e aos grandes meios – quanto mostrava, já ali, um caminho tortuoso e perigoso com o qual a imprensa em geral passaria a conviver principalmente no governo Bolsonaro. Afinal, a demonização do jornalismo, estivesse ele de colete ou não, não seria interessante para ninguém. E esta, até agora, vem sendo uma questão pouco trazida nos debates sobre 2013 e as mídias independentes que receberam mais visibilidade ali (lembrando uma famosa frase do cantor Jello Biafra, “Don’t hate the media, become the media”). O artigo Jornalismo de multidão: a resistência da rede indymedia, de Diego Carvalho, faz uma boa análise dessa questão mapeando organizações de jornalismo independente que antecedem o Mídia Ninja.

No dia 20 de junho, o impacto discursivo (imagem e texto) da cobertura em direto, sem edição e feita no front – algo que sempre esteve associado ao jornalismo “raiz”- irrompe exatamente em um momento clássico da cultura brasileira: a hora da novela. Na Rede Globo, a partir das 16h, os protestos passaram a ser transmitidos em detrimento de dois folhetins (Flor do Caribe e Sangue Bom). A transmissão do jogo entre Espanha e Taiti (Copa das Confederações) também foi cancelada. E, ao modelo do Mídia Ninja, o Jornal Nacional foi exibido sem edição. Nas telas das famílias brasileiras, estavam as imagens próximas àquelas vistas nas transmissões menos mediadas das redes sociais. Mas o drama agora não era o das histórias de amor, e sim o das insatisfações populares.

“A TV Globo vem cobrindo as manifestações desde o seu início e sem nada a esconder. Os excessos da polícia, as reivindicações do Movimento Passe Livre, o caráter pacífico dos protestos e quando houve depredações e destruição de ônibus. É nossa obrigação e dela não nos afastaremos. O direito de protestar pacificamente é um direito dos cidadãos”, disse William Bonner, buscando justificar para espectadoras/es aquela menor mediação, que poderia indicar uma mudança de rota da emissora.

“Junho de 2013, a Primavera Árabe, as explosões das mídias sociais…  todas fazem parte de uma mudança de paradigma midiático que é também uma mudança de paradigma de enunciação. Fazer reportagens com o celular na mão, como fez o Mídia Ninja, tornou o eu, o aqui e o agora mais relevantes. Era a pessoa que estava ali na rua, filmando quase como se fosse um vídeo-selfie, dentro das manifestações, no meio das massas. Não que isso não acontecesse, mas se antes era necessário um cameraman, agora havia um corpo único junto com o celular, era a integração entre o corpo humano e o corpo tecnológico”, diz Paolo Demuru, doutor em semiótica e coautor do livro Um bufão no poder: ensaios sociossemióticos, escrito com a pesquisadora Yvana Fechine. Na obra, analisam o populismo de direita com foco no ex-presidente Jair Bolsonaro, este, infelizmente, uma das “mudanças” que surgiram pós-jornadas de 2013 e ainda no pós 2016 (impeachment de Dilma Rousseff).

Apesar da primeira pessoa, aquele “jornalismo de baixa resolução e alta fidelidade”, como postou Torturra no momento dos protestos, foi feito à base de coletividade, inventividade, tecnologias e gambiarras, elementos comuns, aliás, para a maioria da população brasileira.  As imagens, muitas vezes produzidas pelas dezenas de colaboradoras e colaboradores espalhados pelo país, distanciavam-se do “padrão Globo de qualidade” e tornaram-se os registros mais fiéis de um dado momento das jornadas e, como vimos, dobraram em certa medida até mesmo um discurso ideológico dos setores menos afeitos ao que entendiam como “baderna”. Mas, como sabemos, não demorou muito para o que estava desmanchado no ar se materializasse em uma proposta de mudança que na verdade procurava recuperar um Brasil considerado perdido, no qual, por exemplo, o legado da escravidão era completamente naturalizado.  O citado status quo reivindicaria o espaço ocupado pelo Movimento Passe Livre e outras demandas dos setores progressistas.

Apenas um ano após o Mídia Ninja riscar um lugar na forma e no consumo do texto e do audiovisual do jornalismo brasileiro, uma pesquisa já sugeria como o campo iria estranhar, é claro, o questionamento de seu próprio lugar como produtor de representações. Entre março e novembro de 2014, o pesquisador Igor Waltz quis entender como aquela autodenominada mídia livre, nascida em 2012 para cobrir movimentos como a Marcha da Maconha e a defesa dos índios Guarani-Kaiowá, estava sendo recebida. Como ele aponta, ali estavam sob questão muitos dos “valores, práticas, ritos e crenças inerentes à comunidade interpretativa dos jornalistas”. 

“Será mesmo que as pessoas na hora que estiverem frente a uma questão absolutamente vital para elas, uma decisão de Governo, vão procurar na Mídia NINJA ou no Globo, Estadão, Folha? Ou vai olhar para todos eles e extrair sua própria conclusão?”, perguntava-se a editora de um jornal diário.

“O jornalismo tradicional teve que se ajustar a uma mudança midiática e consequentemente de enunciação que trouxe à tona alguns valores e práticas discursivas entrelaçadas entre si. Por exemplo, a questão da transparência. Por isso Bonner insiste em falar que vão mostrar as coisas ‘assim como elas são’. É uma ideia forte das redes, a da verdade nua e crua. Isso mesmo quando sabemos que é um ponto de vista. O tradicional teve que se ajustar à mudança do paradigma no qual o centro do discurso está no eu. Mas a mudança também foi ética e interacional: ela envolveu a questão do contato, da presença do corpo. É um contágio emocional, e a narrativa que será construída vai acontecer nesse sentido.  As imagens que passaram a ser mostradas na Globo, sem edição, foram bem pensadas. Elas diziam que a rede estava ‘só mostrando’, sem distorcer. Passavam essa ideia para esconder o papel que a própria emissora tinha para moldar os sentidos dos protestos naqueles dias,” comenta Paolo Demuru.

Um termômetro desse momento no qual as coisas mudam para muitas vezes permanecerem iguais: naquele mesmo dia 20 de junho de 2013, no centro do Rio de Janeiro também ocupado por protestantes, era preso o catador de recicláveis Rafael Braga, a única pessoa cativa e condenada no contexto das manifestações.  O caso de Rafael, que se tornou símbolo da seletividade racial do sistema penitenciário brasileiro, nunca foi transmitido ao vivo pelo jornal da emissora, apesar de ter se arrastado durante anos.

Rafael, aqui, vale como referente para toda uma série de eventos que também irromperam nas ruas brasileiras nos anos subsequentes ao 2013, todos voltados a fustigar mudanças e/ou soluções: os protestos contra os assassinatos de Claudia Ferreira (2014), Marcos Vinicius da Silva (2018), Agatha Felix (2019), Evaldo Rosa (2019), Miguel Otávio (2020), Paulo Victor da Silva Oliveira (2022), para ficar em poucos exemplos. Pode-se dizer que eles não levaram milhões às ruas. Mas aquilo o que os sustenta e que seguem vistos como temas demasiadamente “localizados” (“identitários”?) já levaram milhares à morte e à ruína. Suas imagens, repetidas, entraram no repertório do que é tanto violento quanto naturalizado no Brasil. Não rendem votos – a não ser que o caminho seja o do extermínio dessas presenças. Não rendem interrupção de novela. Não rendem especiais multimídia e séries analíticas. Requerem um outro nível de pensamento e ação coletivos que dispensam heroísmos.

Me vem a questão: depois de 2013, o que mudou, de fato, nas imagens do Brasil? ///

Fabiana Moraes é socióloga, jornalista e professora da UFPE. Autora de seis livros, entre eles  O Nascimento de Joicy, Nabuco em Pretos e Brancos e A Pauta é uma Arma de Combate.

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