Imageando possibilidades da demora: o matutar como filosofia
Publicado em: 25 de abril de 2024
As vivências e considerações presentes neste texto partem do encontro dos meus processos criativos com os dos sistemas agroflorestais do semiárido (geográfico e político) brasileiro. É uma convivência iniciada em 2004, em Pernambuco, que desdobrou-se em trabalhos e ações artísticas nos últimos vinte anos, nos quais propus uma modulação outra para as narrativas e o imaginário da região e seus desdobramentos no país.
Essas experiências alertaram o meu campo sensível para um regime de exclusão simbólico que foi consolidado, no Brasil, a partir das relações de poder configuradas no entorno do termo matuto e suas derivações. Uma imagem bastante difundida em filmes, imagens, crônicas, canções, obras artísticas, relações sociais e políticas, que costuma associar o universo do matutar à falta de conhecimento, preguiça, acanhamento e desinformação.
O que me impressionou, ao me debruçar sobre o verbo matutar, do qual a palavra emana, é que ele significa refletir, meditar, pensar demoradamente sobre a vida. Em sua vertente mais pragmática, é sinônimo de criar, conceber, elaborar, cogitar, cuidar, planejar, ponderar e arquitetar. Ou seja, o oposto da imagem do matuto consolidada no Brasil; e, no caso específico do semiárido e do Nordeste, pelos regimes de exclusão resultantes da xenofobia como método de silenciamento.
As consequências da insistência nesta imagem de desqualificação são diversas e afetam o cotidiano de milhões de pessoas. Sentir no corpo seus efeitos me fez iniciar discussões em redes de amigos e criação com o intuito de retirar a matutagem deste enredo sombrio e fortalecer as dinâmicas de imageação, inventividade e transformação disruptiva que existe em seu escopo.
Os diversos debates resultantes deste movimento me fizeram conceber o que tenho chamado de filosofia da matutagem, um encaminhamento possível para as respostas que recebi ao longo de muitas trocas com as populações do semiárido e de outras regiões e espacialidades onde vivem ou circulam povos, coletividades, indivíduos e seres observacionais.
Estou diferenciando povos de coletividades porque as diásporas e migrações colocaram em convivência (nem sempre equilibrada) ou em contato grupos de povos distintos, que eram oriundos de culturas observacionais ou passaram a viver essas práticas. E considero, também, a possibilidade de falar em indivíduos porque os deslocamentos (forçados ou não) e nomadismos nos apresentam seres observacionais desgarrados de suas coletividades, famílias ou povos, mas que seguem mantendo essas características, mesmo vivendo em grandes metrópoles.
Quando olho para o que está efetivamente em disputa na imagem consolidada do matuto, no Brasil, e no matutar como experiência de imageação, percebo que é a experimentação do tempo em suas amplas acepções e infinitas possibilidades de resposta para a nossa existência. Considero as amplitudes temporais não apenas em referência ao matutar como pensar demoradamente sobre a vida (porque sei que as experiências dos povos observacionais nem sempre evocam o pensar como centralidade), mas, sobretudo pelo tanto que existe nas possibilidades da demora.
Em minhas andanças e conversas, percebi que as noções de tempo do matutar não são lineares em seu conjunto e nem homogêneas nas regiões. Elas podem ter traços de linearidade em alguns desdobramentos cíclicos para tomarem outras formas logo em seguida. Noções de temporalidades rizomáticas, intertemporalidades e dinâmicas espiralares estão entre as possibilidades de percepção que atravessam os corpos, comunidades e contextos.
Há um quê de saborear o tempo, outro quê de tempo-meio-parado, mas há uma vertente que espera as coisas se revelarem, aguarda as situações ou ciclos mostrarem o que está escondido. O que precisa ser conhecido, as pistas, os caminhos, as minúcias do funcionamento das coisas. Esta vertente pode ser acompanhada (mas não obrigatoriamente) de situações em que as perguntas são utilizadas como artifício para pescar os fios de respostas. Um segundo recurso usado é o da escuta atenta. É ela quem garante as sinapses necessárias para a decantação das informações recebidas.
Fui percebendo, também, o aprendizado dos meios de coleta dos códigos decifráveis ou não [naquele instante]. É sabido por culturas observacionais que alguns códigos apenas anunciam-se em certos momentos. Em outras fases, eles repetem pequenos rastros situacionais, como vaga-lumes, até que seus observadores conseguem decifrá-los.
Em minhas experiências como artista-curadora, um processo criativo que destaquei por articular com sagacidade a relação código-decifro é Variações Sobre Ostinato Percussivo, da escritora e artista interdisciplinar baiana Sanara Rocha. Criando as propostas Da memória e do Sangue e Mulher Fantasma Pescando Fósseis Memória Sobre As Águas, ela adentra nos mistérios de um dos enigmas mais discutidos pelas religiões de matriz africana, no Brasil: a permissão das mulheres para conduzirem os tambores do sagrado dentro dos terreiros de Candomblé.
Pude ouvi-la em dois momentos: quando a entrevistei para a minha obra Nos traquejos do tempo [Vibração 03] e quando fui curadora da exposição Poéticas de presença para ciclos em migração (2023), em que ela apresentou Da Memória e do Sangue (Parte II). Nas duas ocasiões, a artista ressaltou o cultivo da paciência ao mover-se nas entrelinhas do tema para construir um acervo de imagens das mulheres que conduzem tambores do sagrado.
A construção do arquivo recebeu incentivos de um mestrado e um doutorado (em andamento), em paralelo às práticas artísticas de arte sonora, escrita e performance. Sanara articulou metodologias de escuta atenta e investigação de narrativas interrompidas pelos esquemas de silenciamento; e vem administrando intensas negociações, permissões físicas e metafísicas, longos períodos de espera e uma organização de pistas que estão sendo reveladas nos tempos possíveis.
As imagens são elementos da investigação, mas a centralidade da vivência está na autoridade do gesto percussivo conduzido por estas mulheres. Este gesto usa a manifestação-imagem como um de seus rastros de presença, mas não se limita a ele para consolidar uma existência. É interessante ver, na trajetória de investigação proposta pela artista, que as imagens produzidas – e não produzidas ou destruídas anteriormente – são pistas de um debate mais sério sobre a transmissão, oralidade e permanência de imaginários que afetam o nosso cotidiano no país e necessitam de atenção.
Neste sentido, o período de decantação dos sistemas de decifro é significativo porque nem sempre os cenários nos chegam com sinais vocabulizáveis. O não-vocabular também é uma presença – e não estou falando sobre silêncio aqui. Silenciar, inclusive, é diferente de não-vocabular; dois portais do possível nas esferas da matutagem. Um terceiro portal é uma situação limítrofe entre o não-dito e o silêncio, que também abriga experiências disruptivas de tempo e muitos vestígios de quem somos.
Há, ainda, os traços que remetem aos múltiplos manuseios dos sentidos, léxicos e meios de elaborar as respostas da vida ou os movimentos que devemos conduzir nos planos cotidianos. Eles podem aparecer tanto na transformação das linguagens quanto em um amplo repertório de entonações, pausas, timbres, movimentos de corpo, sorrisos e metáforas. Confesso, inclusive, que o sorriso como código de tempo, no campo da matutagem, é para mim um dos enigmas mais intensos, mesmo pouco considerado como símbolo de transmissão de recados observacionais.
Em suas derivações, ele carrega junto com os demais elementos uma série de conjuntos simbólicos que não fazem parte do acordo comunicacional que estabelecemos para sobrevivência nas capitais brasileiras, cuja cultura da pasteurização-imitação e o repúdio à invenção como possibilidade de tangenciar o absurdo, o devaneio, as possibilidades dissidentes e o não-compreendido segue firme.
O que me interessa nesta diversidade de linguagens é que elas guardam, em suas elaborações, um universo próprio de procedimentos e mistérios, o que as torna essenciais para a sobrevivência das etnosferas existentes em território brasileiro. Sem elas, nossa capacidade de imagear fica comprometida porque existem relações não-visíveis de equilíbrio. A deslegitimação das potências de uma região desregula os ciclos sensíveis, subjetivos e criativos do resto do país e, por consequência, do continente e do planeta.
Quem traz uma metáfora maravilhosa deste contexto é a videoartista e cineasta paraibana Carine Fiuza, em sua obra Preciso falar do futuro além-mar [2022]. Filmado em Super 8 e com atuação de Norma Góis, o vídeo experimental evoca por meio de diversas sutilezas gestuais os efeitos das migrações nos fluxos de liberdade dos corpos negrodescendentes que habitam o Brasil.
A mudança de fases proposta pela artista, evocando processos contemplativos, movimentos e passagens que parecem distintas, mas se entrelaçam à medida que percebemos suas relações de equiparação, é emocionante. Os movimentos da atriz rebatendo um espelho, amparados por um discurso da Benedita da Silva, é um dos exemplos mais fortes das interrelações existentes entre percepção, respiro, criação, escuta, presença, terra, deslocamento e poder nas rotas atlânticas.
Isso é interessante porque as dinâmicas dos corpos e dos lugares, às vezes, estão enunciando algo comum no cotidiano social brasileiro, mas, nas entrelinhas, o chamado é para evidenciar episódios cujas interlocuções subjetivas, sinestésicas e operacionais constroem relações que não obedecem à ordem sistêmica colonial. A voz de Benedita-Carine ecoa isso forte no filme e serve para a vida.
É tanto que, em um contexto efetivamente matutante, o medo de diferentes existências manifesta poucos sinais. Se isso ocorre, os seus efeitos só aparecem quando a região ou coletividade é submetida a constantes ataques de instituições de controle de imaginários, que quase sempre atuam via movimentos de estreitamento moral, grupos partidários, estratégias religiosas de contenção e afins. Sem a presença desses sistemas ou quando suas ações não sobrepõem à força da qualidade observacional do matutar, o fluxo comunicacional com os ciclos criativos locais é mantido.
Um exemplo que acompanhei presencialmente foi com o Povo Xokó, em Sergipe, em 2016. Eu estava nutrindo o processo criativo do projeto Mandalla e fui convidada para acompanhar o Encontro dos Agricultores Experimentadores, em Aracaju, que teve um dos intercâmbios no Porto da Folha. A região é banhada pelo Rio São Francisco e fica na divisa com Alagoas. Um espaço familiar para mim, que cresci tomando banho no rio sempre que visitava minha avó materna na cidade de Penedo, alguns quilômetros rio acima.
Eu não sabia é que a região do Porto da Folha ainda tinha léguas de mata nativa que esteve sob a guarda do Povo Xokó por décadas, até que lutas por posse de terra quase dizimaram seus habitantes e, como consequência, língua e outras esferas do imaginário indígena. Na visita que fizemos, o Cacique Bá relatou que, dentro das ações de retomada das terras, a reconquista da área de mata nativa foi essencial para reencontrar o idioma.
Em gesto político singular, eles decidiram não usar a língua mapeada e ensinada por pesquisadores brancos. O processo de reconstrução tem sido feito com estratégias coletivas de escuta, observação, percepção e sonho. Bá contou que a comunidade articula imersões sazonais na região de mata nativa para sonhar a língua e, à medida que seus sinais aparecem, a comunidade vai criando estratégias de sistematização.
Percebi neste encontro que, embora o Povo Xokó esteja envolvido em uma situação social e comunitária permeada de práticas católicas e que existam movimentos externos de repressão rondando a região, o compromisso com a reconquista do imaginário Xokó, no Porto da Folha, é assegurado como prática de liberdade.
Um traço que também percebi nas ações da artista pernambucana Eliana Amorim. Natural de Exu, sertão de Pernambuco, ela me ensinou que o nome da cidade remete à ocupação dos povos indígenas Ançú. Há um segundo relato que o conecta com a presença, na terra indígena, da espécie Inxu ou Enxu, abelhas negras cuja força reativa nocauteia os oponentes.
Eu, que associava o nome Exu às migrações quilombolas para o alto sertão de Pernambuco, precisei reconfigurar a imagem da região. Acompanhar as vivências, intervenções, foto-performances e instalações de Eliana foi fundamental porque ela não estava falando sobre algo (…). Ela cresceu em contextos observacionais e materializa debates e aprendizados familiares, coletivos e intercâmbios em suas obras de arte contemporânea, sem negociar a potência dos imaginários.
A foto-performance Preparação para ouvir ancestrais (2021), uma segunda foto-performance-ritual Invocando o Sagrado Memórias Em Transe (2021) e as instalações Assentamento (2021) e Laboratório de pesquisa e criação: Cozinha (2022) consolidam uma articulação narrativa das sabedorias das mulheridades do alto sertão muito refinada.
Os trabalhos costuram os elos entre construção cotidiana e ritualidade, usos de raízes (nas diversas amplitudes da palavra) e suas colorações na produção de estados de transcendência, a observação dos ciclos naturais na construção dos processos instalativos e o uso do silêncio como segredo e proteção. É um trabalho de imagens fortes, cercadas de muita vibração extraquadro, que só se manifesta no espaço instalativo.
Estas imagens são fruto tanto da intensidade da região, manifestadas nas escolhas estéticas de Eliana, quanto de uma irmandade criada entre ela e a também artista Maria Macêdo, que documentou a foto-performance-ritual e outras ações da pernambucana. Há aspectos das obras, contudo, que são sentidos somente por pessoas que têm ou entram nas frequências vibratórias do que está sendo transmitido – e não há receio em afirmar isso. Há informações que vão chegar para alguns que não vão chegar para outros e tudo bem.
As místicas da agroecologia, minhas andanças e vivências com outros grupos matutantes e observantes brasileiros reforçaram bastante esta compreensão. Outro aprendizado ímpar, que veio no esteio de vivenciar o matutar, é o de mostrar as intuições que chegam para coletividade e ponderar junto a consistência das percepções, agregando os retornos.
Lembro de conversar com Eliana a respeito disso e ouvir sobre as diversas conversas que ela teve com mulheres de Exu sobre as coisas que sentia nas performances. Esta é uma das fases mais bonitas da experiência matutiva porque abre espaço para o amadurecimento dos sistemas de escuta. Escutas externas, internas ou entre-escutas. O ato de ruminar os atravessamentos criam canais de elaboração do vivido, sonhado e sinalizado no cotidiano.
Outro ponto bastante peculiar nos povos observacionais é a escuta de seres do entorno (animais, vegetais, minerais), das emissões sônicas e vibracionais do cosmos, da estrutura espacial (movimentos das estradas, dos fluxos da paisagem) e dos passantes e viajantes. Estes últimos garantem um intercâmbio de observações que é fundamental para modulações de enredos. A aparente frivolidade das conversas de calçada e cafezinhos na mesa do bar são, na verdade, espaços de retroalimentação dos ciclos de partilha.
São nestes cenários em que as hipóteses levantadas semeiam as estruturas discursivas que sustentam as fases de produção de imaginários. O que vinga transforma-se em conhecimento. O que não vinga, em vez de ser descartado, segue vivendo como info-latência à espera de novos sinais para transmutar sabedorias em outras esferas temporais.
É neste sentido que afirmo ser essencial o respeito aos povos, culturas e seres que matutam e suas práticas de imaginação. Existe, nas dinâmicas de vida que nos acompanham, uma sagacidade perceptiva que nos torna capazes de intuir a chegada de novos sistemas de funcionamento, transformações nas línguas, elaborações de vocabulários e estratégias de tecer fios que sustentam maneiras multidissidentes de existência.
O sentido de prever [que decupando em células rítmicas transforma-se em pre-ver] amplifica o significado de antecipação dos sentidos das setas do tempo. Previsão. Pre-visão. A importância de perceber o que vem antes das coisas manifestarem-se como experiências palpáveis.
Aqui é preciso dizer que, dentro da filosofia da matutagem, a materialização palpável e os sistemas de observação colocam a visão em um lugar não-convencional porque o corpo-individual, o corpo-coletivo e suas entre-formas enxergam dimensões que os olhos não veem. O ver é deslocado de seu sentido biológico para um campo de percepção dos movimentos da vida que passam, entre outras coisas, pela capacidade dos nossos inúmeros sentidos orientarem as decisões cotidianas.
Nas inúmeras vivências que tive ruminando as sistemáticas da matutagem, notei que seus traços também manifestam-se na capacidade de povos observacionais geolocalizarem-se bem em lugares cujas marcações visuais possuem regras distintas daquelas vigentes em certas áreas das grandes metrópoles. Há espaços nas cidades em que a circulação é parecida, mas é cada vez menos comum. Não há muitas placas de rua no meio da Caatinga, do Cerrado e ou da Floresta Amazônica.
Existem formas, contagem de entradas, a estrada da árvore cortada ao meio, a fita amarela pendurada na entrada que, se retirada, reordena os sentidos dos caminhos. Nestes locais, é na intuição e na escuta do espaço que o rumo é decidido, muitas vezes. O corpo vai porque sabe a trilha – e chega. Os resultados podem ser tangíveis, mas seus mensageiros nem sempre são. A mágica da matutagem reside em fisgar as instruções para elaborar estes rumos, enquanto os demais códigos estão sendo trabalhados nas multidimensões temporais existentes.
Em outro circuito, que se aproxima da experiência do Povo Xokó aqui relatada, o uso de uma infinidade de linguagens oníricas também recodifica o sentido de Previsão // Pre-visão. Ele anexa as miragens, visões e percepções visuais, oriundas da alteração das frequências vibracionais do corpo, ao conjunto de vivências que saem das convenções do ver. Isso é importante porque o tempo dos sonhos, miragens e visões não é linear; e nem sempre o visto vai guiar o que miramos nas nossas estratégias de negociação. O que norteia é o que estamos entrevendo sem ver. A pedra jogada hoje que acerta o pássaro mirado ontem, para os que entendem.
Por fim, quero encerrar os diálogos deste texto com a prática artística de Maria Macêdo. Ela é uma artista contemporânea que trabalha as noções de agricultura da imagem não somente como conceito, mas por ser a filha mais nova de uma família agricultora do semiárido cearense e saber no corpo o significado efetivo de agricultar. A força de suas práticas vem de um repertório simbólico somente possível a quem vive as muldimensões do que evoca.
Gosto muito de Feitiçamentos da língua (2019), Para reflorestar uma terra seca ou como construir Fortalezas (2020) e Dança para um futuro cego (2021). Maria elabora nestes três trabalhos um caminho de tecituras do sentir que manifesta seus incômodos com as insistentes tentativas de invalidar os conhecimentos dos lugares aos quais pertence.
O Ceará foi um dos estados do Brasil que teve, no século 20, campos de concentração para evitar que grupos sertanejos, em êxodo pelo abandono e ausência de políticas públicas de convivência com a estiagem, chegassem à capital. Em Mandalla, processo criativo que iniciei comentando neste texto, eu abordo estes processos de contenção, e o aprendizado dele me ajudou a perceber muito bem os movimentos de Maria Macêdo.
Ela usa os imaginários férteis da região em que vive para debater os métodos de represamento que visam impedir ou deslegitimar o acesso e a livre circulação de pessoas pertencentes a coletividades não moradoras das metrópoles. Em Feitiçamentos da língua, trabalha os imaginários de transposição para outras esferas através da escrita e ocupações. Para reflorestar uma terra seca ou como construir Fortalezas (2020), uma videoarte gravada em uma de suas primeiras visitas a Fortaleza, a artista propõe um exercício de plantio de sementes na beira do mar.
A metáfora da inadequação das sementes à água salgada, aos movimentos das ondas e ao solo inapropriado para o cultivo, junto com o movimento repetido de seu corpo em tentativa de plantio, enunciava um conflito muito oportuno sobre a diferença de saberes dos territórios. A observação para a convivência é um dos traços mais instintivos do matutar e requer um mapeamento cuidadoso das adversidades, que podem ser climáticas, financeiras, políticas, materiais (no sentido dos recursos palpáveis) ou estarem no âmbito do represamento da aplicação das ideias observadas.
Em outra via, Dança para um futuro cego é um dos pontos mais intensos da sua primeira fase de expansão como artista contemporânea que “encontra nas vivências na terra o caminho que guia o seu fazer artístico enquanto artista agricultora retirante, fertilizadora de imagens”. Uma obra performática que transmuta os símbolos do cariri cearense em uma poética de autoridade. Em seus estudos para a obra, a artista escreve:
há uma coragem infinda no desejo de imantar da terra a força de vida que faz o nosso caminhar sereno
tem dias que a vista fica embaçada e o cinza da cegueira que pavimenta a cidade confunde a cabeça
tem dias que a bença vem do verdoso do mato que nasce rasgando o concreto se parindo com a floresta que pulsa onde os olhos não podem ver
tem que sentir no solo dos pés
dançar vida sobre as ruínas desse mundo tem sido o feitiço daqueles e aquelas que foram induzidos/as a desertificação pela colonialidade.
o grande moinho mastigador de gente
seguir “abrindo com as mãos afiadas o caminho”
instaurando virulência nas frestas, habitando as fissuras
dobrando o tempo
eu não quero recriar esse mundo
(…)
Propor não recriar o mundo. Perceber a existência de mundos outros já em andamento desde que “esse mundo” foi criado é um sinal de respeito às muitas respostas que o universo, em infinitudes de arranjos, abarca e manifesta em cada espaço dentro e fora do país. Este é, talvez, um dos aprendizados mais profundos do matutar, um dos legados mais valiosos das existências observacionais. Sintonias que movimentam esferas de complexidade tão sutis que os sistemas de controle não conseguem capturar. ///
Ana Lira (Caruaru, Pernambuco – 1977) é artista visual e sonora, rádio artista, fotógrafa, curadora, pesquisadora independente, escritora e editora baseada no Brasil. É graduada em Comunicação Social, especialista em Jornalismo Cultural com ênfase em Teoria e Crítica de Cultura. Dedica atenção a dinâmicas envolvendo sensibilidades cotidianas, sistemas e vivências de escuta. Possui uma prática baseada em parcerias e articulações com coletividades por mais de 20 anos. Nestas iniciativas dedica-se a fortalecer práticas colaborativas de criação que observam as entrelinhas das relações de poder que afetam nossa comunicação, as tessituras do cotidiano e a forma como produzimos conhecimento no mundo.