Ensaios

Fotografia de resistência e o apartheid sul-africano

Ana Paula Vitorio Publicado em: 29 de maio de 2024

Manifestação em protesto contra o assassinato de Chris Hani, 1993. Foto: Jodi Bieber. Gentilmente cedida pelo site South African History Online.

Maio de 1994 marcou o fim do processo de transição do regime apartheid para o governo democrático na África do Sul. Foi no dia 10 daquele mês que Nelson Mandela realizou seu primeiro discurso como presidente do país, que esteve sob controle segregacionista de 1948 a 1990. A institucionalização do apartheid ocorreu a partir do final da década de 1940, com a eleição do Partido Nacional Africâner, responsável por implementar leis como a de Registro Populacional, que permitia ao governo classificar pessoas com base em raça e cor; a Lei de Emenda às Leis Nativas, que restringia e controlava o movimento de africanos na África do Sul; e a Lei de Áreas de Grupo, que autorizava a remoção forçada e a separação física de pessoas segundo critérios raciais.

A data que oficializa o fim do regime segregacionista também consagra as mais de quatro décadas de resistência contra o apartheid na África do Sul. A fotografia praticada neste período, cujas circunstâncias criativas lhe impuseram atributos específicos, desempenhou papel importante nos processos de luta sul-africanos. Conforme Okwui Enwezor (1963-2019), curador e historiador de arte nigeriano, foi a fotografia a principal mídia capaz de desestabilizar o regime. Além de se valer do poder do testemunho como forma de expor e neutralizar imagens propagandistas higienistas, ela foi responsável por moldar, no país, uma prática artística de oposição que se pautava pela autorrepresentação.

Conhecidas como ‘fotografia de resistência’ ou ‘fotografia de luta’, as práticas fotográficas contra o apartheid – apesar de quando assim chamadas serem comumente atreladas a ações radicais de imersão em áreas e situações de conflito como as do Afrapix – podem ser observadas assumindo diversos e estratégicos contornos ao longo de toda segunda metade do século 20. [1] De uma perspectiva histórica, além do coletivo que efervesceu nos anos 1980, são exemplos significativos dos movimentos traçados pela ‘fotografia contra o apartheid’ na África do Sul a revista Drum e a trajetória e obra de Ernest Kole. Distintos entre si, esses três casos evidenciam a maneira multifacetada com que a segregação racial sul-africana foi combatida em termos visuais.

Fundada a partir de objetivos literários e paternalistas, a revista Drum acabou se tornando, por força das circunstâncias, espaço para o desenvolvimento da fotografia como documentário social na África do Sul. Depois de um início desastroso, em 1951, marcado por ensaios visuais colonialistas que falhavam em envolver o seu suposto público (formado por negros que viviam em áreas urbanas), a revista passou por mudanças de proprietário, equipe editorial e fotógrafos. Foi na nova fase (iniciada após o fracasso da terceira edição, ainda em 1951) que a Drum passou a dedicar-se aos projetos responsáveis por torná-la referência na discussão sobre a história da fotografia sul-africana. Historiadores como o inglês Darren Newbury, por exemplo, creditam o desenvolvimento do ensaio fotográfico humanista na África do Sul aos trabalhos realizados na revista naquele período.

Atuando como uma espécie de “fórum crítico para fotógrafos emergentes”, como descreveu a curadora norte-americana Clare Bell, a Drum reuniu profissionais que, mesmo impedidos de contestar diretamente as práticas de segregação do governo sul-africano, se propuseram a registrar suas próprias experiências e as de suas comunidades. Foi esse o caso de importantes nomes da fotografia sul-africana que iniciaram suas carreiras profissionais na revista e lá atuaram nos primeiros anos da publicação. Entre eles destacam-se nomes como Alf Kumalo, Peter Magubane, Bob Gosani, Ernest Kole e Jürgen Schadeberg, todos parte da primeira geração expressiva de fotógrafos nascidos no país.

Miriam Makeba. Foto: Jürgen Schadeberg. Publicada na revista Drum. Gentilmente cedida pelo site South African History Online.

Dos citados, Magubane está entre os sul-africanos que permaneceram na Drum por mais tempo. É ele quem assina um dos ensaios mais emblemáticos da revista, conhecido como exemplo do desenvolvimento da fotografia documental social não só no periódico como no país. Hora do Almoço: Um Ensaio Fotográfico [Lunch-Hour: A Photographic Essay], publicado em julho de 1963, é exemplo da aposta feita pela Drum no desenvolvimento de abordagens visuais que desafiassem a desumanização do apartheid.

Lunch-Hour foi publicado pouco menos de dois anos antes do encerramento das atividades da revista em decorrência do acirramento da censura pelo regime. Nessa época o Massacre de Sharpeville já havia ocorrido (em março de 1960) – cito esse episódio histórico também em Peter Magubane: a fotografia como levante – e a crescente hostilidade enfrentada pelos fotógrafos nas ruas minava as chances de aposta no otimismo como possibilidade criativa. No final dessa que foi uma das décadas mais difíceis para a fotografia no país, as oportunidades de publicação já se encontravam severamente restringidas e os fotógrafos viam-se cada vez mais sujeitos a opressão e violência estatal.

Foi essa a mesma época que Ernest Kole [2] viu-se obrigado a deixar a África do Sul. O fotógrafo exilou-se nos Estados Unidos em 1966, enfrentando uma verdadeira odisseia não só para manter-se a salvo – passou antes pela Inglaterra, França e Dinamarca – como também para garantir que pelo menos parte de seus filmes contendo registros da vida sob o apartheid fosse mantida em segurança para, em momento oportuno, ser levada do país, evitando, assim, a destruição completa de seus arquivos pela censura.

Marco na história da fotografia sul-africana, o fotolivro House of Bondage, de Ernest Kole foi publicado em 1967 – ano seguinte a sua chegada em Nova York. Inspirado em The Decisive Moment, de Cartier Bresson (1952), ele é resultado de um trabalho extensivo realizado pelo fotógrafo em Johanesburgo e Pretória por mais de uma década. Kole conta nas páginas de House of Bondage que a descoberta do fotolivro como artefato criativo teria moldado seu propósito àquela época: “Eu sabia então o que deveria fazer. Eu faria um livro de fotografias para mostrar ao mundo o que o sul-africano branco fez aos negros”.

Contendo 183 fotografias organizadas em 14 capítulos, a primeira edição de House of Bondage teve a circulação proibida na África do Sul em maio de 1968. Crítica fotográfica contundente do apartheid, a obra fez parte, por 22 anos, da lista de fotolivros banidos do país, considerados pelo governo como propaganda subversiva [3]. House of Bondage foi também responsável pelo não regresso de Kole a sua casa. O fotógrafo, que teve a renovação do passaporte negada ainda em 1968, morreu no exílio em fevereiro de 1990.  “Eu sabia que poderia ser morto simplesmente por reunir o material para tal livro e sabia que, quando terminasse, teria que deixar meu país para que o livro fosse publicado”, relata.

Reprodução do livro The House of Bondage, de Ernest Kole, 1967

O fotolivro de Ernest Kole estabelece relações com as obras da escritora e biógrafa norte-americana Octavia V. Rogers Albert (1853-1889) e do escritor, também norte-americano, James Baldwin (1924-1987) [4], não apenas por ser deles um homônimo, mas por emergir como um gesto que evidencia a partilha da experiência de existir sob (e a despeito de) um regime que não nasce ou se encerra com o apartheid sul-africano. Capítulos do House of Bondage de Kole, como As minas – que abriga a emblemática imagem de 13 jovens recrutados para o trabalho nas minas, todos nus, com as mãos levantadas e pressionados contra a parede, a espera de uma inspeção médica – e A serva barata – que testemunha o cotidiano de servidores domésticos que trabalhavam em áreas urbanas dominadas por uma elite branca – são exemplos das encruzilhadas que tornam o fotolivro relevante não apenas como artefato contra o apartheid daquela época, mas também como um revelador da vigência atemporal do julgo racial sobre corpos negros. Essas e outras sequencias do livro mantêm relações complexas de similaridade tanto com imagens que retratam cenas dos períodos de escravização nas Américas quanto com registros contemporâneos feitos em áreas onde habita ou trabalha grande parte da população negra em países como o Brasil, por exemplo.

Caso sem precedentes de uso sistemático do fotolivro como forma de ativismo na África do Sul, House of Bondage desenvolve-se como um relato verbo-visual dos insultos coloniais impostos à vida negra nos contextos urbanos do país. Adotando estratégia distinta dos fotógrafos que atuavam nas trincheiras, Kole fez de seu projeto de vida a criação de imagens que revelassem o apartheid em seu aspecto mais sofisticado, evidenciando “o horror entorpecente e monótono da existência diária de uma pessoa negra” sul-africana, como bem definido pelo ator sul-africano John Matshikiza (1954-2008).

No fotolivro, recentemente celebrado por meio de exposições internacionais e de uma nova edição publicada pela aperture em 2022, Kole não nos poupa da desesperança e miséria enfrentada pelos sul-africanos negros que viviam em cidades como Joanesburgo e Pretória nas décadas de 1950 e 1960. É possível que uma das razões para as recentes e merecidas celebrações seja a capacidade do fotolivro apresentar-se hoje a nós como um espelho infelizmente não datado. Os sistemas de crédito predatórios, viagens em trens lotados, circunstâncias de trabalho brutais, escolas empobrecidas, assédio policial e outras formas de intimidação do estado são realidades hoje intimamente conhecidas não só por sul-africanos, mas por negros que vivem em diversos países da África e das Américas. E se, como o autor afirma no livro, o que House of Bondage faz é tornar perceptível a “experiência extraordinária de viver como se ser negro fosse um castigo”, então mais que o louvável feito de denunciar ao mundo o apartheid sul-africano, o fotolivro de Kole opera como um documento instrutivo que desvela a fixidez perseverante das circunstâncias em que vive a maioria das pessoas negras no mundo.

Em julho de 1981, numa reunião em que participaram os fotógrafos Omar Badsha, Paul Weinberg, Lesley Lawson, Biddy Partridge, Mxolisi Moyo e Lloyd Spencer, foi tomada a decisão de se criar um coletivo de fotógrafos, que viria ser o Afrapix. Foto gentilmente cedida pelo site South African History Online.

Apesar de banido pela censura, alguns exemplares de House of Bondage circularam clandestinamente na África de Sul durante o apartheid e influenciaram as gerações de fotógrafos que atuaram no país a partir da década de 1970, incluindo parte expressiva dos membros do coletivo Afrapix. Conhecido como um dos exemplos mais explícitos de fotografia de resistência ou luta, o coletivo, ativo entre 1982 e 1990, registrou de forma imersiva os conflitos cada vez mais acirrados rumo ao fim do regime no país. Driblando as repressões do governo sul-africano, as fotografias criadas pelo grupo retratavam a repressão das populações negras e mestiças pelo regime apartheid e receberam ampla atenção internacional – o que ajudou a fomentar tanto as pressões externas quanto as mobilizações internas que levariam, mais tarde, ao colapso do governo segregacionista.

Aberto à adesão de fotógrafos negros e brancos, profissionais e amadores, o coletivo chegou a contabilizar 25 membros, entre eles Omar Badsha, Lesley Lawson, Paul Weinberg, Biddy Partridge, Mxolise Mayo, Santu Mofokeng e Guy Tillim. O coletivo concebia o papel do fotógrafo documental como além do testemunho. Por isso, além da cobertura de confrontos e registros de situações quotidianas vividas por pessoas negras sul-africanas, o grupo estabeleceu organizações políticas clandestinas que se integraram ao movimento artístico de resistência.

Contrariando definições apressadas que dissociam a fotografia de resistência da experimentação criativa, as imagens produzidas pelo coletivo apresentam características formais específicas. Rapidamente legíveis e altamente expressivas, os registros feitos pelos Afrapix frequentemente valiam-se de estratégicas criativas como a exploração de fortes contrastes tonais, perspectivas dramáticas, mudanças repentinas de escala e captura de movimentos bruscos. Como resultado, as fotografias criadas pelo grupo, além de comunicar a urgência do momento e atribuir senso de gravidade ao assunto, ditavam interpretações específicas que implicavam na expansão das imagens para além do quadro fotográfico.

Pauline Moloise, mais duas mulheres e Winnie Madikizela Mandela junto a outras pessoas em luto após a execução de Benjamin Moloise, 1985. Foto: Gille de Vlieg. Gentilmente cedida pelo site South African History Online.

O período de atuação do Afrapix coincide com o acirramento dos conflitos na luta pela libertação do país. Desde a Revolta de Soweto (1976), as manifestações contra o regime ganharam escalas cada vez maiores, enfrentando, em contrapartida, maior resistência do governo, que impunha cada vez mais restrições por meio de estados de sítio. Apesar de nessa época a atenção internacional já influenciar (amenizando) a forma como o estado agia para tentar coibir as coberturas, os membros do coletivo, como seus precursores, conviviam rotineiramente com o medo. Além do risco de serem baleados ou espancados em situações de conflito, eles passavam por assédios que envolviam invasão de seus locais de trabalho e confisco de filmes e câmeras.

Em seus anos iniciais, o Afrapix teve a Conferência Sul-Africana de Igrejas, liderada por Desmond Tutu (1931-2021), arcebispo e Nobel da Paz, como principal incentivadora. A organização oferecia ao coletivo espaço de escritório e apoio financeiro através da compra das suas fotografias. Com a intensificação das ações de repressão às ONGs antiapartheid, o coletivo passou a fornecer imagens para agências internacionais como a Reuters e a Associated Press.

Na fase final de atuação do coletivo, muitos de seus membros, além publicar suas fotografias junto a coberturas jornalísticas, tiveram suas imagens integradas a exposições associadas a catálogos hoje amplamente conhecidos como South Africa: The Cordoned Heart (1989), Beyond the Barricades: Popular Resistance in South Africa in the 1980s (1989) e Hidden Camera: South African Photography Escaped from Censorship (1989). ///

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Imagens gentilmente cedidas pelo South African History Online

[1] Os termos ‘fotografia de resistência’ (resistance photography) e ‘fotografia de luta’ (struggle photography) são usados alternadamente por fotógrafos sul-africanos antiapartheid para descrever um gênero fotográfico que se distingue pela postura política que assume. Normalmente, essas expressões são usadas para descrever práticas fotográficas que documentam situações de conflito da perspectiva do oprimido. Em minha abordagem, estendo o uso dos termos para discutir diferentes formatos assumidos pela fotografia antiapartheid.

[2] Diante das restrições de mobilidade e moradia impostas às pessoas negras por meio das leis de segregação, o fotógrafo, nascido Ernest Levi Tsoloane Kole, alterou a grafia do seu nome para Cole, sobrenome considerado inglês. Reclassificado como coloured ao invés de black, Ernest Cole recebeu permissão para mover-se livremente pelo país e ter um passaporte. Neste e em outros textos, opto pela grafia original em respeito à luta do fotógrafo e à sua família.

[3] Exemplos de outros fotolivros cuja circulação foi proibida na África do Sul durante o apartheid são Magubane’s South Africa, de Peter Magubane (1978), Letter to Farzanah, de Omar Badsha (1979) e Portrait of a People, de Eli Weinberg (1981).

[4] Publicado em 1890, o The House of Bondage da professora e ativista social norte-americana Octavia V. Rogers Albert é uma compilação de narrativas pessoais de ex-escravizados norte-americanos. Quase um século depois, em 1980, James Baldwin publica seu conhecido ensaio Notes on the House of Bondage.

Ana Paula Vitorio é pesquisadora. Doutora em Literatura, Cultura e Contemporaneidade pela PUC-Rio, atualmente é pós-doc no departamento de Linguística e Práticas da Linguagem da University of the Free State (África do Sul).

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