A fotografia cativa
Publicado em: 25 de janeiro de 2022Em março de 2019 Tamara Lanier entrou com uma ação contra a Universidade de Harvard e o Museu Peabody por “apropriação, posse e desapropriação indevidas de imagens fotográficas” de seus ancestrais escravizados, Renty Taylor e Delia, filha dele. Depois da morte de sua mãe em 2010, Lanier começou a pesquisar informações sobre Papa Renty. Uma pessoa conhecida chamou sua atenção para a existência dos daguerreótipos de seus ancestrais, que Elinor Reichlin, membro da equipe do Peabody, havia encontrado em 1976. Se o público tem o direito de ver pessoas fotografadas em situações de cativeiro, a população negra será para sempre apresentada como “escrava”.
A pesquisa preliminar de Reichlin revelou que, em 1850, Louis Agassiz havia encomendado esses daguerreótipos sob o manto da autoridade oferecida por sua posição na Universidade de Harvard. A fotografia estava apenas começando nessa época, e ele usou o projeto para provar sua teoria poligênica: de que diferentes raças humanas tinham evoluído de maneira distinta e de que as pessoas brancas eram superiores às demais. Por isso, as placas daguerreotípicas de Renty e Delia (junto com demais tiradas de outras pessoas escravizadas – Drana, Alfred, Jack, George Fassena e Jem – na mesma sessão) são diferentes de outros daguerreótipos solicitados por senhores de escravos, que tinham como objetivo retratar a escravidão como uma forma benevolente e paternalista da dominação branca. Essas imagens tinham um propósito diferente: capturar em placas de prata a “verdade” inerente da superioridade branca. Desnudar Renty, Delia e os demais diante da câmera fazia parte do plano de Agassiz e de seus colaboradores: fazer com que aquilo que consideravam a verdade nua e crua da inferioridade negra ser impressa diretamente dos corpos para a placa fotográfica, sem a interferência de roupas nem de outros acessórios que costumavam ser usados em estúdios. “Se é um choque ver a nudez frontal completa no começo da fotografia estadunidense”, escreveu o pesquisador e curador de fotografia Brian Wallis, “é ainda mais surpreendente vê-la sem as convenções da vergonha e da fantasia sexual”.
Até que Lanier se manifestasse e afirmasse que esses eram seus ancestrais, os daguerreótipos eram considerados propriedade privada da Universidade de Harvard. Que suas múltiplas tentativas de entrar em contato com representantes das instituições da universidade tivessem sido ignoradas revela a gravidade e a resistência da vida institucional após o fim da escravidão. O fato de Harvard ter menosprezado Lanier faz lembrar a observação de Walter Benjamin, filósofo alemão de origem judaica, de que quando a história é escrita pelos vitoriosos em detrimento das vítimas e dos sobreviventes, os espólios se tornam “tesouros culturais”. Apenas à parte vitoriosa é permitido reivindicar como seu aquilo que foi tomado dos outros. Essas pessoas foram privadas de sua liberdade e de seus direitos e continuam vivendo sob as condições institucionais que fazem suas queixas não serem ouvidas. As instituições acadêmicas deveriam basear sua reivindicação de propriedade na justiça dos vitoriosos?
Em março de 2021, a ação de Lanier foi arquivada por uma corte de Massachusetts. Ainda que um recurso esteja pendente, a corte confirmou não apenas que os daguerreótipos pertencem a Harvard, mas também os termos e riscos do caso. A decisão da corte se concentrou na questão da propriedade – a quem o daguerreótipo de Renty Taylor pertence? No entanto, Harvard assumiu a “propriedade” dessas fotografias por meio de uma lógica cultural de riqueza, posse e apropriação que descende diretamente da escravidão e preserva sua presença duradoura na nossa era. Contra essa lógica, proponho que façamos perguntas diferentes. E se insistirmos em tratar Renty como a pessoa que foi usada contra a própria vontade por outros para obter uma imagem de sua escravização, em vez do objeto daquilo que foi capturado dele? Então, é preciso perguntar onde e com quem Renty vai encontrar a paz e o reconhecimento de seus direitos?
A história da restituição do objeto oferece alguma orientação como uma forma de responsabilização histórica. Isso nos ajuda a lembrar que a fotografia é um documento social, em vez de um objeto a ser possuído. Eu argumento que, em seus contextos sociais, tanto a captura do daguerreótipo e a continuidade de sua apropriação e exibição pela Universidade de Harvard constituem crimes contra a humanidade que precisam ser reparados. Os daguerreótipos não são uma propriedade a ser mantida, mas ancestrais que precisam de cuidados. Essa compreensão é a única maneira de avançar se queremos reparar os danos da escravidão.
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Imagine se os familiares de Renty, que provavelmente nunca mais tiveram notícias depois que ele foi sequestrado no Congo e escravizado nos Estados Unidos, tivessem tido a oportunidade de ver a imagem dele junto com milhões de estadunidenses que estavam celebrando a mídia recém-inventada do daguerreótipo. Precisamos questionar os privilégios proporcionados tanto a acadêmicos quanto ao público em geral como espectadores desses daguerreótipos. Em vez de privilegiar o olhar deles, precisamos priorizar os familiares de Renty, tanto na África quanto nos Estados Unidos. Aliás, os daguerreótipos foram inventados e eram usados por milhões de pessoas para manter entes queridos por perto e em casa.
Na década de 1850, Oliver Wendell Holmes, escritor, cientista e ex-reitor da Faculdade de Medicina de Harvard, descreveu o daguerreótipo como um “espelho com memória”. É cruelmente irônico que, durante o mesmo ano em que Agassiz revogou os direitos de Renty e Delia de fazer parte da dádiva desses “espelhos com memória” para seus parentes, Holmes, conhecido por suas teorias racistas e eugenistas, revogou a admissão dos três primeiros estudantes negros na Faculdade de Medicina de Harvard. A universidade não apenas manteve esses daguerreótipos e impediu que seus familiares ficassem com eles, Harvard também deu forma ao princípio de supremacia branca com o qual a fotografia foi institucionalizada e milhões de pessoas foram escravizadas. Ao manter essas imagens como parte de seu capital arquivístico e museológico, a instituição também convida milhões a ver Renty, Delia e os demais não como ancestrais e familiares, mas como pessoas escravizadas.
Hoje estamos diante da necessidade urgente de estabelecer um limite claro entre a pesquisa acadêmica e a perpetuação da violência, que pode ser parcialmente reparada ouvindo as vozes, as queixas e as reivindicações das pessoas que foram excluídas da participação nos debates públicos sobre os regimes que as escravizaram. Além disso, precisamos cuidar da maneira como práticas como a fotografia foram definidas. Temos a oportunidade agora – em meio a uma infinidade de pesquisas e de formas de ativismo sobre a relação entre a fotografia, os museus e a escravidão, e com base no número de casos de restituição – de corrigir a privação imposta a Renty e a seus familiares nos anos 1850. Temos a oportunidade de fazer o registro da presença de Renty em uma placa de prata finalmente chegar ao seu devido lugar: a família dele.
Restituição e responsabilização histórica
Quando se trata da questão da restituição de objetos como parte de um processo de responsabilização da cumplicidade institucional com regimes totalitários – o que, eu argumentaria, inclui a escravização de pessoas vindas da África – não se pode ignorar o compromisso dos Estados Unidos em restituir objetos saqueados da comunidade judaica na Europa pelos nazistas e por outros regimes políticos, em especial do regime de Vichy na França. O fim desses Estados desastrosos foi marcado pela adoção, por parte dos governos do pós-guerra, de um princípio fundamental de restituição. Dois exemplos iniciais são as Leis de Restituição Alemãs dos anos 1950 e o decreto francês de 21 de abril de 1945 que possibilitou que vítimas, sobreviventes e seus herdeiros reivindicassem bens confiscados e saqueados. Criadas nos anos posteriores à Segunda Guerra Mundial, essas leis ainda são usadas para trazer justiça em âmbito internacional.
Um dos melhores exemplos envolve bens mantidos nos Estados Unidos. Em 2017, uma corte francesa ordenou que um casal estadunidense devolvesse uma pintura de Camille Pissarro adquirida em 1995. Sem que os novos donos soubessem, a obra havia sido saqueada de seu dono original, um judeu cujos herdeiros viviam na França. A importância que o governo dos Estados Unidos deu à restituição no fim da Segunda Guerra Mundial é revelada pelas unidades militares especiais de historiadores, curadores, pesquisadores do universo das artes e diretores de museu britânicos e estadunidenses chamadas “Monuments, Fine arts and Archives”. Conhecidas como “Monuments Men”, ou “homens dos monumentos”, essas pessoas são incumbidas de localizar obras de arte saqueadas na Europa, rastrear sua procedência e buscar sua correta restituição aos donos originais, sobretudo judeus.
A restituição também foi mencionada nos Julgamentos de Nuremberg de líderes nazistas por antigos poderes aliados, que tinham como objetivo condená-los por seus crimes contra a humanidade. A categoria “crimes contra a humanidade” teve um papel fundamental nos julgamentos e foi mais refinada nos anos seguintes. Hannah Arendt, a filósofa política alemã de origem judaica, em suas duas obras principais – As origens do totalitarismo e Eichmann em Jerusalém (ambos publicadas nos Estados Unidos, local escolhido para o seu exílio) –, teve um impacto significativo em como o termo é compreendido hoje. Arendt analisou práticas nazistas específicas e explicou o que as distinguia como crimes contra a humanidade. Mas ela também deixou claro que esse tipo de crime não era cometido apenas para os judeus nem apenas pelos nazistas. Arendt defendeu que um Estado cujas leis tinham sido usadas no processo de cometer crimes contra a humanidade tem a obrigação de reparar as bases sociais e políticas de suas leis. A única maneira de fazer isso é acabar de forma definitiva com as consequências duradouras desses crimes.
Como uma pesquisadora de ascendência árabe e judaica que trabalha com a tradição arendtiana, tenho um comprometimento pessoal em garantir que a compensação, restituição e reparação não estejam apenas na esfera das vítimas judias dos crimes contra a humanidade. Essa abordagem excepcionaliza ainda mais os judeus, em detrimento de nós mesmos e de outros grupos marginalizados. Precisamos cobrar das instituições euro-americanas o mesmo padrão de reparação da violência para todas as vítimas.
O status das fotografias
Na pesquisa acadêmica de hoje e na prática dos acervos e museus, é amplamente reconhecido que fotografias não são itens distintos que podem ser “propriedade” ou compreendidos fora do contexto de sua produção – ou seja, as razões pelas quais foram feitas, as relações de poder entre quem fotografou e quem foi fotografado, e as formas iniciais de uso e exposição. Em outras palavras, dadas as diferentes vidas e permanências das fotografias, não se pode supor que uma foto é apenas uma foto. Essa não é apenas uma crença contemporânea. Ao longo da história da fotografia, e sem dúvidas em suas primeiras décadas, quando Agassiz ordenou que esse daguerreótipos fossem feitos, questões sobre a natureza do daguerreótipo, sua propriedade e seu uso correto forem respondidas de formas diferentes por instituições e atores diversos. Nunca foi irrefutável que a fotografia pertencesse à pessoa que a tirou ou às mãos que por acaso seguravam a placa ou a impressão.
Fotos tiradas em circunstâncias de violência não se reduzem ao que está registrado nelas, uma vez que a violência que possibilitou sua criação não desaparece depois que o obturador da câmera faz o disparo. Fotos tiradas em apoio a regimes ou a atos violentos retêm a violência original na imagem; elas mantêm o ato original de violência muito depois que a imagem foi produzida. Diversos artistas, acadêmicos, curadores, diretores de museu, ativistas, políticos e diversas comunidades deixaram isso claro, tentando recuperar, enterrar, tirar de circulação ou restituir objetos, imagens, vestígios e outros itens que foram saqueados ou tomados por regimes violentos e hoje são tratados como commodities estéticos nos museus.
As fotografias são o resultado de um encontro entre pessoas – são objetos sociais – e seu destino não pode ser determinado pelas condições de sua produção original. Se as fotos foram feitas à força e a serviço de um governo violento, seu futuro não pode ser determinado sem que as vítimas sejam ouvidas e que se ofereça justiça restaurativa a elas, a seus herdeiros ou aos sobreviventes desse governo. Participantes do encontro fotográfico, ou seus herdeiros e suas comunidades, a quem foi inicialmente negado o direito de controlar sua própria imagem, devem ser ouvidos e levados em consideração. O que está registrado nas fotos ainda não acabou, a reparação é possível, e a justiça ainda pode ser feita.
Crimes contra a humanidade
Os daguerreótipos de Renty e Delia não podem ser discutidos nos termos legais normalmente usados para as fotografias, uma vez que eles só poderiam ter sido produzidos como parte de um regime que cometia crimes contra a humanidade. A escravidão é reconhecida hoje pela ONU e pelo Direito Internacional (artigo 7, Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional) como um crime contra a humanidade. Mas o regime escravocrata nos Estados Unidos acabou sem nenhum tipo de procedimento similar aos julgamentos de Nuremberg, em que os criminosos foram processados e punidos, e reparações e indenizações ocorreram em seguida. Apesar de esforços terem sido feitos durante o início do período da Reconstrução para compensar pessoas anteriormente escravizadas, esse foi um processo falho e irregular que nunca envolveu as atribuições específicas de restituição e reparação que se seguiram à Segunda Guerra Mundial.
Ainda que a punição de indivíduos não seja mais relevante aqui, o termo “crime contra a humanidade” – introduzido em Nuremberg por Robert Jackson, procurador-chefe nos julgamentos e o juiz associado da Suprema Corte dos Estados Unidos – ainda é relevante entender a necessidade de restituição desses daguerreótipos.
Desde o fim da Segunda Guerra Mundial, acadêmicos de destaque da área do direito e da teoria política tentaram analisar os aspectos éticos, culturais e legais mais amplos dessa categoria. Em seu trabalho, Arendt cita Telford Taylor, promotor-chefe nos Julgamentos de Nuremberg, que enfatizou que esses crimes não são “cometidos apenas contra a vítima, mas principalmente contra a comunidade cuja lei é violada”. Arendt concluiu que é “a entidade política em si que precisa ser ‘reparada’”. Em 2004 o professor de direito David Luban esclareceu que essas ações constituem crimes, não erros, porque “violam importantes normas da comunidade”. Assim, argumenta Luban, a comunidade tem a necessidade e o direito de “vindicar essas normas, independentemente da vítima”.
Arendt esclarece outro ponto fundamental dos “crimes contra a humanidade”: a criação de uma ordem racial cujo objetivo é física e/ou politicamente eliminar grupos de pessoas do mundo compartilhado. Esse ataque organizado à diversidade humana é um ataque, de acordo com Arendt, “a uma característica da ‘condição humana’ sem a qual os próprios termos ‘humanidade’ e ‘raça humana’ seriam desprovidas de sentido”. Como um regime, a escravidão criou um mundo em que pessoas brancas lideraram e controlaram as diferentes esferas da vida, enquanto as pessoas negras foram eliminadas como atores. Mas a maior parte das pessoas brancas não via isso como um crime. Elas não consideravam um crime sequestrar, traficar, comprar e forçar pessoas negras a realizar diferentes tarefas; sujeitá-las à violência física e psicológica; ou tratar seres humanos como propriedade. Isso se devia ao regime da supremacia branca e à crença na inferioridade natural das pessoas negras, conjugados com o patriarcado e a sujeição das mulheres negras em especial – uma ideia que Agassiz tentou defender ao encomendar forçosamente fotografias nuas de Renty, Delia e outras pessoas. Desta forma, até mesmo pessoas brancas que não escravizaram diretamente pessoas negras viam nelas escravos em potencial ou escravos fugitivos que tinham que ser devolvidos aos seus “donos”. Um mundo em que apenas pessoas brancas tinham autorização para determinar quem podia ser propriedade e o que constituía um crime – e no qual o dano causado a pessoas racializadas era imperceptível para o sistema de leis que elas promulgavam – constitui um ataque contínuo à diversidade humana.
Que a cor da pele das vítimas seja o que tornou os crimes contra elas imperceptíveis aos olhos dos habitantes brancos de Columbia, Carolina do Sul, onde os daguerreótipos de Renty e Delia foram feitos, é um dos sinais de um crime contra a humanidade. Tornar esse crime reconhecível e nomeável – em vez de menosprezado e imperceptível de acordo com as leis dos escravizadores – é o que está em jogo aqui.
Agassiz não agiu num vácuo; não se tratava de um pesquisador solitário em busca de um projeto impopular. Ele foi inspirado por seu professor, Georges Cuvier, que trabalhou no Musée National d’Histoire Naturelle, em Paris, e teve acesso ao corpo de Sara Saartjie Baartman, a mulher cói escravizada que foi exposta publicamente com o título racista e pejorativo “Vênus Hotentote”. Cuvier usou o corpo dela como prova de suas teorias de racismo científico. Depois da morte de Baartman, ele realizou uma autópsia do cadáver e “provou” que seus restos eram marcadamente diferentes dos cadáveres europeus. É provável que Agassiz também tivesse contato regular com o dr. Samuel Morton, com quem ele poderia discutir como a nova tecnologia do daguerreótipo poderia ser usada para provar as teorias do racismo científico. O próprio Morton tinha uma vasta coleção de crânios (o “Gólgota americano”), que ele usava na ciência racial da frenologia, provando a superioridade evolutiva de algumas raças sobre outras por meio do estudo craniano. Outros cientistas e escravizadores deram a Agassiz inspiração e orientação ou estiveram envolvidos diretamente na produção dessas imagens daguerreotípicas. Robert W. Gibbs, um médico local, por exemplo, usou seus contatos e suas visitas à plantação para selecionar “indivíduos” escravizados de um “tipo” ideal para as fotos de Agassiz.
A pura verdade
Aos olhos dos homens brancos que planejaram essa sessão de fotos, Renty, Delia, Drana, Alfred, Jack, George e Jem eram considerados menos que humanos – não era sua imagem que o pesquisador de Harvard queria registrar durante a sessão de fotos. Em vez disso, o objetivo era gerar provas visuais que pudessem justificar a escravização de pessoas negras. Essa distinção é bastante importante: Agassiz, Zealy e os demais envolvidos não tiraram fotos de escravos; eles forçaram Renty, Delia, Drana, Alfred, Jack, George e Jem a serem fotografados como escravos. Sob o pretexto de que as fotos carregam uma verdade objetiva, esses daguerreótipos foram feitos para forçar pessoas negras a serem mantidas cativas da escravidão e servir como prova de seu potencial inato para a escravização. Esses homens puderam fazer essas imagens porque essas pessoas foram escravizadas, assim, as imagens capturadas eram de sua escravização. A câmera que encontraram no estúdio do fotógrafo fazia parte do que a pesquisadora negra Hortense Spillers descreve como “as torturas e os instrumentos do cativeiro”.
Por tempo demais, as imagens capturadas de Renty e dos demais foram apresentadas e discutidas como imagens de escravos, ignorando o poder da fotografia de prolongar a condição de “escravo” imposta às pessoas fotografadas – a perpetuação, de acordo com Arendt, de um crime contra a humanidade. Em todas as suas publicações e interpretações, Harvard nega a pura verdade: enquanto os espectadores tiverem o direito de ver pessoas fotografas em cenas de cativeiro – as fotos forem manuseadas como se fossem propriedade do museu – as pessoas negras serão para sempre apresentadas como “escravos”. Esse é mais exemplo das violentas permanências da escravidão.
Mas Harvard contorna a verdade, colocando-se na posição de uma espectadora que pode “libertar” as pessoas fotografadas de seu cativeiro. As declarações feitas pela universidade sobre as imagens colocam a instituição na posição de salvador branco com o direito de “preservar” esse horror de modo que as pessoas não o esqueçam – ignorando por completo os descendentes de pessoas escravizadas e o fato de que eles nunca esqueceram sua escravização, como a solicitação de Lanier exemplifica. Restituir os daguerreótipos aos familiares, que também são sobreviventes desse regime escravocrata, traz muito mais resultados do que as expor para públicos brancos poderia trazer.
As diversas propostas de Harvard sobre a melhor forma de expor as fotos – enfatizando o “olhar recíproco” daqueles cujas imagens foram capturadas, apresentando os daguerreótipos em contextos pedagógicos não como “tipos”, mas como “retratos” – são criativas e engenhosas, mas não lidam com a simples verdade da reivindicação de Lanier. Nessa reivindicação, expressada por uma herdeira que vê Renty como seu ancestral, o paradoxo cai por terra. Renty não precisa ser salvo, e com certeza não por uma instituição que se apropriou de sua imagem. Ele só precisa voltar para casa.
Em casa essa imagem talvez possa ser mantida como as pessoas fazem com imagens de parentes: sendo tocada por mãos, gasta, esquecida, lembrada, mostrada para outras pessoas. Imagens ficam manchadas, são colocadas em gavetas, recuperadas, perdidas, invocada em conversas e usadas para mobilizar um anseio, mesmo enquanto suas cores e seus contrastes desaparecem. Mas a proximidade da nudez da escravidão pode levar Lanier a tocar esse daguerreótipo de modo diferente. A última coisa que os especialistas de Harvard deveriam fazer depois da restituição da imagem é perguntar quais são os planos de Lanier. É exatamente o fim dessa lembrança do direito dos escravizadores de determinar como os descendentes da escravidão podem fazer o luto ou celebrar seus ancestrais que a reunificação de Taylor com Lanier pode conquistar.
Uma decisão de permitir que Renty vá para casa levanta questões a respeito de como isso pode ser aplicado a outros objetos mantidos pelos museus e arquivos de Harvard, e em instituições similares no Ocidente. Mas isso não vai gerar um precedente, uma vez que precedentes já existem. Objetos são constantemente restituídos, incluindo aqueles saqueados pelo círculo de Agassiz. A Universidade da Pensilvânia anunciou seus planos de repatriar crânios humanos da coleção de Morton, incluindo diversos de pessoas escravizadas. Christopher Woods, diretor do museu, declarou: “Uma fase inicial de avaliação rigorosa foi crucial para garantir um processo ético e respeitoso relacionado ao restabelecimento”. A pedido de Nelson Mandela durante seu primeiro ano como presidente de um país livre do apartheid, o corpo de Sara Baartman foi devolvido à África do Sul e cremado ali. Os franceses devolveram os crânios de guerreiros argelinos que haviam sido levados em 1849. Recentemente, o Fórum Humboldt em Berlim anunciou seus planos de restituir alguns Bronzes do Benim, tomados pelas forças britânicas da África Ocidental no século 19. Há mais de 75 anos, o patrimônio judeu é restituído após a expropriação e o saque nazistas. E a lista segue.
A ideia por trás da categoria dos crimes contra a humanidade, como ficou claro em Nuremberg e desde então, era criar um precedente legal – que não seria usado para garantir ganhos injustos, mas para impedir que esses crimes fossem cometidos de novo. Esses objetos foram usurpados como parte de um regime que cometeu crimes contra a humanidade. O dia em que Tamara Lanier reconheceu em Renty não um “escravo”, mas seu tetravô, ela convidou membros da comunidade a participar de seus esforços para libertar seus ancestrais do cativeiro num mundo em que o status dessas pessoas como escravas estava sendo prolongado, sua liberdade não estava sendo plenamente reconhecida, e seus direitos, ainda não foram restabelecidos.
Parentesco, propriedade e direitos
Na fotografia das primeiras décadas, quando os daguerreótipos eram feitos, os fotógrafos não detinham os direitos de propriedade sobre as imagens que produziam. Os advogados de Harvard argumentam: “a regra é que a fotografia é propriedade do fotógrafo, não do fotografado, e existem casos citados em nosso relatório que aplicam essa regra mesmo quando o objeto das imagens não consentiu que elas fossem feitas”. Mas isso impõe, de forma retroativa, um conceito da fotografia a uma história complexa composta por reivindicações concorrentes sobre posse e direitos.
Visitantes dos estúdios de fotografia adquiriam daguerreótipos produzidos por sua presença diante da câmera – seus daguerreótipos – e os mantinham como sua propriedade. Em ocasiões muito menos frequentes, os fotógrafos produziam placas adicionais da mesma cena e as guardavam, mas isso era bastante permissível, uma vez que a questão de “quem detém o daguerreótipo” ainda não estava definida. Que fotografias tiradas de outros, incluindo fotos tiradas em seus próprios estúdios, se tornassem automaticamente propriedade do fotógrafo não era uma garantia mesmo quando um caso ia parar nos tribunais.
Por exemplo, em 1860, Louis-Auguste Bisson, fotógrafo oficial de Napoleão III, foi incumbido pelo pintor Adolphe Yvon de tirar a foto do imperador para usá-la como modelo para uma de suas pinturas. Quando se deu conta de que Bisson tinha feito muitas cópias da fotografia encomendada, Yvon temeu que isso desvalorizasse sua pintura. Ele processou o fotógrafo e ganhou. O tribunal determinou que a foto pertencia ao pintor, não ao fotógrafo.
Não trago esse caso à tona como um precedente para determinar legalmente quem detém os direitos das fotografias, mas para nos lembrar que a posse de imagens fotográficas estava indefinida e em um estado de mudança naquela época. E ainda é assim nos nossos tempos, como os debates a respeito de bancos de imagens ou arquivos da violência colonial em antigos impérios ilustram hoje. As fotografias transcendem qualquer ideia de propriedade privada e não podem ser manuseadas nesses termos limitados.
Como tenho argumentado de forma detida na última década e meia em meu trabalho em diversas áreas acadêmicas, fotografias são o resultado de diferentes pessoas que se juntam em circunstâncias diferentes. Essas situações não podem ser avaliadas usando um único modelo, uma vez que o “evento fotográfico” – como chamo essa reunião de pessoas – varia imensamente, de relações de amor, consentimento e troca até exploração, coerção e violência. Fotografias transcendem a questão da simples propriedade porque o objeto em si foi produzido, capturado, circulado e usado de modos que violaram os direitos de outros. Não estamos lidando apenas com o direito de uma parte sobre um determinado objeto, mas com os direitos das outras partes envolvidas no encontro fotográfico.
Depois da abolição, muitos indivíduos e muitas instituições que acumularam riqueza por meio da escravidão não questionaram que isso tivesse sido possível transformando pessoas negras em propriedade, deixando pessoas negras despossuídas e explorando o fruto de seu trabalho. Aqueles que lucraram com a escravidão não foram contestados nas décadas posteriores à abolição, por isso, seus descendentes presumiram que essa riqueza herdada fosse legitimamente sua ou que seu acesso privilegiado a ela devesse ser garantido. Sempre que essa injustiça adentra os tribunais, ela cria uma oportunidade de correção – em prol das vítimas diretas em primeiro lugar, mas também para libertar os herdeiros de criminosos da cumplicidade estrutural e institucional na perpetuação da violência de seus ancestrais ao não interromper os efeitos duradouros dos crimes contra a humanidade cometidos na nossa sociedade. Ao rejeitar o pedido genuíno de Lanier de possibilitar que seus ancestrais saiam do museu, Harvard não apenas rejeita a queixa de uma descendente da escravidão, ela também pede que todos nos recusemos a enxergar os crimes contra a humanidade da escravidão e sua presença prolongada.
Esses daguerreótipos de Renty e Delia não são propriedade de Harvard. Mesmo depois de serem restituídas a Lanier, não serão propriedade dela: eles estarão sob sua custódia ou tutela. Esses daguerreótipos não deveriam ter sido feitos. Mas ele foram e existem. Então, devemos pensar neles como pensamos sobre um membro da família que precisa do cuidado de seus parentes.
A questão de parentesco aqui é primordial. Lanier e Harvard não são partes iguais disputando a posse de um terreno. Esses daguerreótipos de Renty e Delia foram capturados em um mundo no qual, como descreve Hortense Spillers, a “carne [estava] à venda, a carne [era] tratada como um meio de troca”. Ao descrever a transição de escravização para liberdade, Spillers conta o “tato” como o primeiro sentido a ser envolvido depois da libertação: o toque pode ser a primeira medida do que significa não mais estar acorrentado. Quando posso declarar meu corpo meu próprio espaço e quando você recebe minha permissão implícita para colocar as mãos em mim, acho que faz diferença.
Não sabemos e não precisamos saber os detalhes que culminaram nas pessoas fotografadas posarem diante da câmera total ou parcialmente nuas para supor que elas não deram seu consentimento para aparecer nas imagens, para aparecer para si mesmas, para aparecer para os brancos que traficaram sua carne ou para aparecer para nós nuas. O que sabemos é que esses daguerreótipos são resultado de violência e não podem ser tratados como fotografias comuns.
Essa é uma foto em que removi Alfred propositalmente para mostrar o “local isolado”, o estúdio do fotógrafo (Zealy) em que Renty, Delia, Drana, Alfred, Jack, George e Jem foram forçados a entrar. Na completa nudez forçada aos fotografados, ele conseguia esconder apenas a parte superior do encosto de cabeça. Lanier afirma que Harvard não tinha o direito de continuar tocando seu tetravô, de forçá-lo a estar seminu diante de outros, de violar o contato entre parentes e substituí-lo pelo olhar público. Sob a escravidão, afirma Spillers, “o parentesco perde o significado, uma vez que ele pode ser invadido a qualquer momento arbitrário pelas relações de posse”. Negar a Harvard os direitos de propriedade ao que foi roubado de seu tetravô e seu parente é uma forma de reparar o vínculo para Lanier, violado pela longa permanência da escravidão. “Se o ‘parentesco’ fosse possível”, afirma Spillers, “as relações de posse seriam enfraquecidas”. Se não naquela época, agora.
Expandir os debates sobre abordagens éticas de acervos formados sob regimes violentos obriga os museus de hoje a “lidar com os pedidos de restituição de artefatos e a repatriação de restos humanos”, como afirma a pesquisadora de estudos museológicos alemã Larissa Förster. Essa distinção é fundamental no caso de Renty e Delia, uma vez que restringir a questão para se concentrar apenas na restituição de itens de museu é aceitar os termos impostos pelo museu, e os termos imposto pelo cativeiro. Lanier, ao dizer “esse é o meu ancestral”, e não um bem do museu, também exige repatriação. Renty e Delia foram forçados a fazer parte de um acervo de museu, e Lanier exige que sejam repatriados ao seu lugar de direito: entre seus familiares.
Essa demanda encontra justificativa no fato de que esses daguerreótipos que se tornaram objetos de museu não poderiam ter sido feitos sem que antes Renty e os demais fossem sequestrados pela escravidão. A luz refletida de seus corpos nus e capturadas nas placas daguerreotítpicas também foi raptada. Qualquer explicação técnica ou científica do procedimento do daguerreótipo não pode ignorar que eles não existiram sem que esses sujeitos fossem forçados a ter uma parte de sua pele nua exposta à luz e refletida na superfície sensível dessas placas. Esses daguerreótipos são, em sentido literal, os vestígios de sua presença, sua escravização forçada e sua nudez involuntária.
Considerando esse histórico, Harvard deveria ter renunciado imediatamente a qualquer alegação de propriedade sobre essas imagens. Mas a universidade ainda tem a oportunidade de incentivar pessoas negras a consultar seus arquivos e restabelecer as relações de parentesco que estão em seu poder, além de trabalhar para garantir que todo o corpo docente e discente aprenda com Lanier. Harvard tem hoje a oportunidade não apenas de restituir e reparar, mas de expandir sua missão pedagógica e acadêmica nessa direção. Nenhuma propriedade mantida em detrimento do vínculo de parentesco é necessária para isso.
Restituição como reencontro familiar
Quando Renty, Delia e os demais foram forçados a entrar no estúdio de Zealy, essas pessoas não encontraram um fotógrafo que queria interagir com elas para produzir sua imagem. Encontraram outro escravizador, investido no regime escravista, para quem não havia nada mais óbvio do que o fato de que eram escravas e deveriam ser forçadas a submeter seu corpo para perpetuar seu flagelo. (O próprio Zealy era um escravizador, que mantinha seis pessoas negras em cativeiro e as considerava sua propriedade.) A sessão inteira no estúdio do fotógrafo, que envolveu diversas pessoas brancas, foi dedicada a produzir evidências visuais de que Renty, Delia e os demais eram quem os escravizadores e usurários queriam que fossem: escravos.
Isso foi possível porque o regime da escravidão dependia da criação de uma sociedade de iguais que reconheciam não apenas o direito das pessoas brancas de escravizar pessoas negras, mas também o potencial que cada nova tecnologia tinha de reafirmar esse regime – uma sociedade de iguais cujos crimes contra a humanidade são, para os autores desses crimes, considerados imperceptíveis, “naturais”. Essa imperceptibilidade é materializada nesses daguerreótipos; desde a sua criação, pede-se que os espectadores reconheçam “o poder absoluto dos senhores sobre o corpo de seus escravos”, aqui obrigados a posar nus.
E a imperceptibilidade do crime aos olhos dos criminosos ainda persiste, como é ilustrado pelas expectativas de Harvard e do Museu Peabody de que Renty, Delia e os demais continuam oferecendo provas científicas com seus corpos – agora a serviço da “missão educacional” de Harvard e do autodidatismo da instituição. Como a artista negra Carrie Mae Weems afirmou, esses daguerreótipos representam a maneira como “a parte inglesa dos Estados Unidos – os Estados Unidos brancos – via a si mesma em relação à figura negra”. Isso é evidenciado não apenas no que pode ser visto nos daguerreótipos, mas na negação obstinada da instituição em reconhecer Lanier como herdeira de Renty e sua parente.
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A restituição significa ouvir diferentes lugares e pessoas, prestar atenção à procedência dos itens nos nossos museus e questionar sua condição de “propriedade privada”. A restituição pede que esses itens de museus sejam considerados ancestrais de comunidades das quais foram tirados, parte de uma vida-mundo que foi destruída por meio do processo de colonização, escravização ou pilhagem. Essa foi a premissa da Lei Federal de Repatriamento e Proteção de Túmulos de Nativos Estadunidenses de 1990 (NAGPRA), e é repetida no mundo todo. Como dois artigos recentes sobre o repatriamento dos Bronzes do Benim ilustram, as obras de arte mantidas em museus não são propriedade para aqueles de quem foram tiradas, elas são seus ancestrais: as manchetes dizem “‘Não são propriedade’: as pessoas querem que seus ancestrais voltem dos museus britânicos” (The Guardian) e “No Ocidente, os bronzes saqueados são peças de museu. Na Nigéria, ‘são nossos ancestrais’” (New York Times).
Renty nunca possuiu o daguerreótipo que foi feito dele. Obviamente, se tivesse sido consultado, ele não deveria ter sido escravizado, e esse daguerreótipo não teria existido. O que foi tirado dele está cristalizado na própria imagem fotográfica – um vestígio de sua presença, uma inscrição de sua carne interagindo com a luz, que Harvard continua tratando como uma peça de museu. “Ele é meu ancestral”, afirma Lanier, não seu “meio de troca”. Lanier reivindica a restituição do objeto, mas espera a repatriação dos vestígios de seu ancestral.
Publicado originalmente na revista digital Boston Review em setembro de 2021.
Tradução do inglês de Alyne Azuma.
Ariella Azoulay é escritora, curadora de arte e cineasta. Professora da Universidade de Brown, nos Estados Unidos. Autora dos livros Civil Imagination: A Political Ontology of Photography (2015) e Potential History—Unlearning Imperialism (Verso, 2019), entre outros.
Tags: Direito de imagem, escravidão, Havard, Imperialismo, Peabody Museum